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domingo, 26 de fevereiro de 2012

O RAPTO

Para a Tilinha, outra vez

O meu irmão António...com o seu feitio calmo e tolerante”. Nota memorial da tia Piedade.

Realmente o meu pai não era homem de esquentar a cabeça. Inveja a minha.

Um Verão, na eira do Cabeço, ao confirmar, pela avareza da debulhadora, a perda na seara do trigo, pôs-se a contar revezes da vida de taxista. Com as bolandas do passado, distraía as do momento. Como se do aperto no peito brotasse algum alento. “Coração ao alto”, costumava dizer.

Direi por ele. Com o desgosto de não ser capaz de fazer justiça aos seus dotes de contador.

Começo de Junho. Meu pai fazia serviço nocturno de escala obrigatória. No Largo do Padre Chiquito, rescendiam os alfenheiros.
Dormitava no carro, embora de ouvido alerta ao telefone... “Menina, dê-me o um, quatro, quatro! É da praça dos automóveis?”, coisas que lhe tinham ficado dos tempos do teatro, no Cruz de Cristo.

Havia noitadas em que ninguém precisava de um carro. Como se não bastasse ao desgraçado de turno não ter descanso na sua cama, ainda acabava “por não matar o borrego”, quer dizer, ganhar ao menos para o café da espertina.

No Inverno, era um martírio: “Ficava para ali um calabrês todo inteiriçado numa manta, um gelo... À espera de quem?” Calabrês, na gíria de meu pai, andava abaixo de traque de cão.

Quando a sorte corria, sempre pingavam uns escudos, para a gasolina. Das mal iluminadas travessas da Cidade, surgiam clientes retardados. Homens ressuscitados dos bordéis, logo ali, à Rua das Linheiras; jogadores de batota, se lhes sobrava abono para a corrida; distraídos, ou viciados, conversadores de café, que só aceitavam a obrigação de regressar a casa, quando os empregados do Central lhes lembravam: “Vamos fechar: Boa noite, meus senhores!” Por vezes, um médico, chamado à pressa à cabeceira do doente... Uma parteira.

Um jovem. Com o ar de quem poderia estar a ser seguido, esgueirou-se até ao fundo do Largo, aproximou-se hesitante de um dos poucos carros, no estacionamento dos particulares. Nítida atrapalhação na escolha das chaves. Sentado ao volante do veículo de um conhecido comerciante da Cidade, não conseguiu ligar a ignição... Roubo não se afigurava, pelos vistos, só que o rapazote nunca mais ia conseguir pôr-se em marcha!

Farto de tentar, aproximou-se do motorista de plantão na Praça. Como se tivesse necessidade de dar uma satisfação. Meu pai confirmou as suspeitas: “Preparem-se, que já lhes digo de que cepa era o bisnau”

- O carro não quer pegar...

- Mas o senhor não é o proprietário, pois não?

- Não. Bem… Mas emprestaram-me as chaves, os documentos…

Engasgava-se, havia ali enigma que a meu pai não cheirava tão bem como as árvores do Largo... Salvo erro, o jovem nem sequer ainda teria carta de condução.

- Peço-lhe duas coisas...
- Duas?
- Primeira, que não faça conversa a ninguém do que viu aqui. Se isto chegar aos ouvidos do meu...
- O senhor é filho do...
- Do tenente Freitas da GNR.

Alguém cortava o fio da narrativa:

- Esse tenente Freitas era enxertado, ó s´ Toino Caréu. Uma vez ...

Meu pai não se deixou passar: “Essa conta você a seguir”.

- Entendidos!. Fique descansado. E qual era o outro pedido?
- Que me vá fazer um serviço a São Domingos. E isso também tem de ficar entre nós...

Ao fundo da Calçada de S. Domingos, recebeu meu pai pedido de paragem. Que aguardasse, de faróis apagados. Deixando a porta do carro aberta, o jovem desapareceu no escuro, apressado.

Reparou então o motorista que se encontrava nas traseiras da residência do proprietário do carro que ficara no largo do Padre Chiquito. Não foi longa a demora.
De uma azinhaga, volveu o rapaz abraçado a uma rapariga de rosto coberto por um véu.

“Limpinho! Estava metido num rapto.” Parece que o jovem Freitas tinha mais sucesso com a rapariga do que com o carro do pai dela.
“Metemos pela estrada de Santa Clara, fui deixá-los na Ribeira, à porta de uma antiga criada dos pais da rapariga. A marosca já devia estar combinada. Mas, oiçam lá, isto agora começa a dar prò torto...”

O cliente estava curto de finanças.
“Ficou-me a dever parte do serviço... Já digo quanto”.
Deixá-lo! Alguém havia de pagar. E assim foram os pombinhos aproveitar o resto da noite.

Dois dias mais tarde.

“Quando cheguei à Praça, todos os meus colegas me vinham com o mesmo aviso: ‘tás tramado com o tenente Freitas! Ora eu nem à minha mulher tinha falado daquelas andanças... O casalinho dera com a língua nos dentes”.
Ao que diziam, o tenente irrompera no largo do Padre Chiquito, aos berros. Queria saber quem tinha sido o chofer escalado para o serviço nocturno. Fazia ameaças. Tinha telefonado duas vezes a perguntar pelo meu pai. Metido numa alhada.

- Como é que você, seu ordinário, se presta a fazer o que fez?
Meio mundo parou na rua, para ouvir as razões do militar. Lojistas e clientes abandonaram os balcões, queriam dar fé do desacato. Com o Beja?! Que lhe movia um processo, que fazia, que acontecia... Pois qualquer pessoa via, além do mais, que quer o rapaz quer a rapariga eram menores...Portanto.
- Foi cúmplice!

“Ele, completamente desembestado, e eu sem saber como esfriar a cabeça para lhe retorquir a preceito.”

- O senhor tenente retira a palavra ordinário e eu respondo-lhe. Não retira, nada tenho a acrescentar.
“Ah, mas falta aqui uma parte. O fulano tinha deixado dois guardas à esquina do Correio do Ribatejo. Escolta armada, ao menor deslize, ia engavetado!”

Quando o meu pai lhe mostrou a têmpera, o oficial começou a quebrar. Passou a dar ouvidos. “De vez em quando, abespinhava-se, mas eu puxava-lhe o bridão. A páginas tantas, passou o olhar pelo pagode que gozava a função e bichanou-me ”:

- Fale mais baixo, homem! Já basta de escândalo!

Contudo, terminados os esclarecimentos, o tenente voltou a encher-se de pesporrências. Tinha de sair dali, com os galões desembaciados. Acenou aos soldados da escolta e garganteou-lhes:

- Voltem pró Quartel, que a gente deixa cá o homem.

E, sobranceiro, para o meu pai:
- Passe bem!

“Não sei de onde me veio aquela vontade de desancar o fulano. Assim que ele me voltou as costas, disparo-lhe:
- Ó senhor tenente, espere aí por favor, o seu filho ficou-me a dever vinte e cinco tostões do serviço”.
O militar fez que não era com ele. Seguiu rua Direita abaixo embalado pelos tacões.

Passaram-se meses, talvez um ano. Noite dentro, o tenente Freitas desembarca, na estação de Santarém, acompanhado da esposa, do filho, e da nora com um bebé nos braços.. “ A rapariga, essa, pegou logo às primeiras. Pouco tempo depois do rapto, já andava na cidade, casada e de barriga aos queixos.”

Não havendo, na estação, outro carro de aluguer, teve de ser o meu pai a conduzi-los. Depressa, compreendeu que a fera do tenente Freitas não passava de um avô babado, a desfazer-se em gracinhas com o bebé.
Terminado o trajecto, o militar fez questão em ir primeiro encaminhar a família pela escada, só depois veio pagar.
- Então, ó chofer, tem aqui o custo do serviço, mais duas moedas. Esta é a dívida do meu filho e esta é a gorjeta.
- Senhor tenente, não me leve a mal, só recebo a dívida do seu filho. Com essa moeda faça o favor de comprar rebuçados para o seu netinho.

“ E sabem vocês que mais? Passados estes acontecimentos, vieram-me contar que, finalmente, o filho do tenente Freitas andava a tirar a carta de condução”.