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terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Pelo Natal, todos



Pelo Natal todos
Se chegam
Quem não se chega 
À nossa porta
É aconchegado
No nosso coração
Na nossa memória
Todos

Dizia mais ou menos a minha mãe. Quando me falava de uma manjedoura, berço da Justiça e da Alegria. Embora de pobreza.

Ela, que nada sabia da grande manjedoura
Onde se enfartam os cavalões
da troika
E se aviltam os seus aurigários.

domingo, 1 de dezembro de 2013

O Ferro-velho mais o Só Um dente



Não há muito mais a dizer sobre os bisas Caréus.
Trapeiro que me anunciei, terei, todavia, para concluir, de continuar a falar de trapos.

Antes, deixem-me, ligar o som dos ferros-velhos, dois ou três transeuntes irregulares, colectando, na saca de linhagem, desperdícios, pelas azinhagas da Portela. Ouçam:

É o ferro-velho!
Há pr’àí ferro velho queiram vender?
Peles de coelho?
Trapo?
 Metal?
Chumbo…?
Cera ou lã
Sarro!

Não garanto crédito à ordem dos elementos do pregão, conquanto assegure, com as mãos no lume, que “Cera ou lã” se ouvia –ciròlâ; sarro merecia um apelo à parte.

A passagem do ferro-velho gerava expectativa. Permitia a retirada condigna de materiais e objectos em fim de vida, sem o que ficariam inúteis pelos desvãos dos casais. Se as searas consumiam em estrume a maioria dos biodegradáveis, havia outros que tinham de ser afastados daquele meio. Agora falam todos de compostagem! Olha-me para eles… Se tivessem visto o esterco das fossas, trazido em carros de bois das lixeiras municipais, teriam mais cuidado ao tratar de tais modernices. «Faça uma horta na varanda, aprenda a fabricar o seu próprio composto.» Use correctamente o ecoponto; vá, não pergunte o que ganha com isso. Não ganha você, ganham os que lhe aprazaram estas urbanizações.
Como eu admirava aquele regenerador: o velho ferro-velho. Sim, reparei: repito  a palavra velho. No dia em que começaram a voar, entre carrascos e oliveiras, sacos de plástico, anunciou-se o fim deste agente social.

Trapo? Roupa usada, não ia normalmente parar à saca do ferro-velho. Refazia-se em casa – por pudor de se entregar a costureira ou alfaiate – a menos que a qualidade do tecido e a confecção da peça sucedânea o justificassem. Ou guardava-se para remendos – fundilhos, joelheiras, punhos e colarinhos, palmilhas…. Em último caso, aproveitava-se para mantas.

Vem isto a propósito de outro passante dos casais da Besteira: o tecelão do Arneiro das Milhariças. Metia aos córregos da azinhaga, em Vale de Lobos, com um burro alforgeado com obra acabada; no regresso, carregando trouxas ou sacas de matéria-prima. Andava a maior parte do dia visitando fregueses pelos arredores. Recolhendo tiras de roupas velhas. Rasgadas ao serão de Inverno. Voltava semanas mais tarde, com a encomenda, devidamente prensada no tear. Designávamo-lo por alcunha, ou nunca se lhe reteve o nome ou isso não pesava nas relações estabelecidas. Criatura completamente desdentada, mas a quem sobressaía, sobre o maxilar inferior, uma risonha raiz de incisivo. Era o Só-um-dente.
Solavancava-se tranquilo, sentado, à mulher, em cadeirinha, sobre albarda e alforges….Não permitia o bojo da carga que burricasse escarranchado.

O ferro-velho, o tecelão do Arneiro das Milhariças. Ecologistas, muito antes da palavra ter sido usada. Ai não, não pedantizo com uma de avant la lettre, mas por que não gente pr’à frentex?

E é dentro desta cultura da poupança – tanto ela nos ensinaria na crise dos nossos dias – que eu me vejo, pelos dez anos, na posse de uma samarra, talhada do varino do nosso bisavô Caréu.
Conforme já dito, andara tal abafo pelas costas do meu pai. Primeiro, por empréstimo; dele se apropriando por morte do proprietário. Agasalhara-o ainda em Pernes e nas gélidas noites dos primeiros anos de taxista.
Depois, depois de fervido num caldeiro, enxuto a preceito e aberto pelas costuras, foram os panos do varino levados ao Adriano Mendes ou ao Pedro, alfaiates, da Portela. Qual deles meteu naquilo tesoura para dali me acatitar a primeira samarra. Peça que me durou entre os dez e os doze anos. Quando, acanhadota nas mangas, passou ao meu irmão.

Vejo-me, no braço direito,  por algumas semanas, com o  fumo, do luto da nossa bisa Júlia. Rasgo negro, sobre lã cor-de-camelo. Quatro utilizadores, a bem contar! E, em fim de linha, foi a samarra desfeita em tiras e levado pelo Só-um-dente ?

Com as derivas, sinto-me obrigado a deixar para a próxima o outro trapo.