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quarta-feira, 15 de março de 2023

TELEFONAR AOS ANJOS

 

 


«Que falta aqui me faz …» 

Minha mãe aludia a uma ausência. Geralmente de pessoa ou animal – gato, cão… –, dada a sua frugalidade quanto à posse de objetos. Só os necessários. Não havia, não eram precisos...

Exceto… o telefone! Só haveria um lá por casa, uns vinte anos mais tarde.

Contavam-se pelos dedos das mãos de um maneta as casas que se podiam dar a tal luxo, em toda a Portela. Nas nossas proximidades, e numa urgência, a Quinta dos Anjos não recusava o uso do aparelho. Porém andasse o Diabo ao largo.

***

Primavera de 1949.

 Sentado na cadeira de bunho, a um canto da cozinha, olhos nos reflexos das chamas nos azulejos da chaminé.. Ordem de ficar ali quieto, calado, até que a minha mãe, de costas para mim, junto à chaminé, acabasse de dar comida ao meu irmão. Nós, jantaríamos depois de ele adormecer.

Hora inquietante. Já o Sol baixara  para lá do Cabeço, afundando-se atrás da Quinta dos Anjos. Rondavam as trevas enoveladas no olival do Cerrado.

 «Mãe, o que é aquilo?» Era o noitibó a exigir: 

“Morre! Morre! Morre!...”

 Horrível voz da noite.

Medo! Medo de estarmos ali sozinhos entre sombras e latidos de cães. Pior, quando a minha mãe deixava escapar o lamento:

 «Por onde andará o teu pai a esta hora?»

Por onde?

Alegria, se regressasse antes de eu me deitar. 

Normal era bater à janela, para lá da meia-noite, depois do serviço aos últimos comboios. Chofer de praça. Saía de manhã, com a cesta do almoço… e do jantar. 

«Só se veja quem só de deseja!» 

Ouvi muita vez à minha mãe. 

Dava tal premissa matéria para um estudo sobre a Solidão, considerei mais tarde.

 

Não suporto mais a prisão da cadeira de bunho. Levanto-me para fechar a porta do corredor, donde a luz do candeeiro a petróleo já não consegue limpar o escuro. 

Aproximo-me do meu irmão, no intuito de lhe acariciar os caracóis, mas sou afastado. Devia deixar o menino tranquilo, parecia  que  não estava bem. Alcançasse antes o púcaro da água, esquecido por minha mãe no poial das bilhas. Ficasse depois ali ao lado deles, à mesa de pinho. Com juízo.

O grito!

Meu irmão roxo, esticava-se no colo da mãe...

Logo aquietou, para começar a empalidecer. 

Mais gritos. Minha mãe corre para a rua com o menino nos braços. Pede socorro na  noite, virando-se para os lados donde esta pudesse vir. 

Que eu gritasse também! Acudam! Acudam!

Quem nos ouviria?

Rompeu da escuridão a voz da Ilda, saltou o Mário o muro que, então, separava os nossos dois quintais. Duplicavam-se os gritos, chegavam pessoas de mais longe. O Filipe Sapateiro e a Clarisse, a Ângela e o Herculano Salsa.

O menino ia morrer!

Desmaiado. Trouxessem da cozinha um pano molhado para lhe pôr na testa!

Ouve-se a Ilda, por cima do meu berreiro. Que o irmão fosse telefonar aos Anjos!

Valeria a pena?

Já o Mário corre esbaforido pela ladeira do Cabeço, uma mão no guiador, outra no selim, empurrando a bicicleta. Mal chegue ao cimo pode montar-se e pedalar, ao longo do outeiro, até cruzar a estrada nova, descer à Quinta dos Anjos. 

Chegará alguém a tempo de salvar o meu irmão?

[…]

Filipe Sapateiro, que até ali, não abrira a boca e discreto se retirara para junto do nosso portão, anunciou sonora e tranquilamente: «Vem aí o Mário!»

Descia veloz, com o farolim da bicicleta a rasgar pelo carreiro íngreme. Dera conta do recado.

Entretanto o meu irmão arribara, ouviam-se-lhe uns gemidos fracos. Que fazer?

Por sorte, o meu pai estava na praça, falou com o Mário e não ia tardar. Ainda bem que o menino já não estava desmaiado. «Graças a Deus», acrescentou alguém.

Então, pegassem um momento na criança, enquanto a minha mãe ia libertar-se do avental e enfiar um casaco.

Aí, voltei a pensar em mim. A quem me deixariam entregue? Também queria ir com o meu irmão!!!

Chegou o meu pai. Que alívio!

Ofereceu-se o Herculano para me  levar a casa da minha avó Gertrudes e dar conta do sucedido. Meu pai concordou e agradeceu.

Caminhávamos de mão dada pela Azinhaga da Besteira.

 «E agora, ti’ Reclano? Ele vai morrer?» 

Voltara-me o choro.

Nem pensar, mal chegassem ao hospital, davam-lhe uma injeção, ficaria logo bom.

A resposta não me tranquilizou. Lembrei-me da saída de um caixão branco de casa dos Salsas. Uma menina bebé? Já não tenho a certeza.

 «Mas há pessoas que morrem, quando  voltam do hospital…»

Herculano apertou-me a mão. Que me calasse. Continuámos em silêncio. Até que : 

«Esta noite a Morte não faz ronda!»

Acalmei um pouco,  mesmo sem entender a frase do meu

 companheiro.

***

E agora, feitas as contas, onde é que diabo meti o meu telefone? 

Por mais que  prometa dar um sítio certo às coisas, ando sempre a perder-lhe o norte.

«Tens de arranjar um telefone para cada bolso» sugere-me o meu irmão, quando lhe relato estes esquecimento de velho..

Talvez tenha razão. Mas para que nos serve um telefone em cada bolso? 

Se não se cuidar do saldo, da bateria…

E, sobretudo, da alma das palavras!

 

O original deste texto foi redigido em 2011. Retomei-o hoje, e não me perguntem porquê.

14 de marco de 2023

domingo, 5 de março de 2023

ESCREVIVÊNCIAS 24 Mágoas Açoriana


 

Do vaivém de cartas -fantásticas fingidas mentirosas - cruzadas sobre o Atlântico, entre os Anjos e a Terceira. Pelas mãos da menina Né e de sua antiga criada e amiga, Helena. Discreta e respeitosa tentativa de leitura.

Por que havia a Menina de lhe pedir ajuda, querendo reviver o  dia do casamento? Passados que estavam nove anos. Continuaria a sentir-se bem nos Açores? Tudo a correr de acordo com os seus desejos? 

Helena mudando de assunto: gostariam muito, ela e os demais do pessoal, de saber se a Menina tencionava vir à festa de Nossa Senhora? Tornou apenas um talvez, sem se compreender se sim se não. Melhor seria, não contar. Estava tão longe, que pena!

Festa na Quinta, em 1950. Hoje já ninguém pode informar sobre presença da menina Né, embora também não se certifique o contrário. No entanto, na memória do povo ficou um reflexo: o filho, o menino Efe. Foi visto e achado em quase todas as actividades festivas, parecia que os familiares se disputavam para lhe fazer companhia. 

Tinha oito anos. Teria viajado com o pai. Se a irmã, Isa, um ano mais nova, não é mencionada, nos festejos, é de admitir que tivesse ficado com a mãe, nos Açores.

Pouco depois, o menino regressou à Terceira. E testemunhou.

***

Não se realizavam desde 1930, as festividades em honra de Nossa Senhora dos Anjos. Né e Helena, em plena mocidade, encantaram-se com a chegada das fogaceiras, ao adro da Capela, por isso ficaram muitos anos a repetir que iriam participar no próximo cortejo. Cada uma com a sua fogaça à cabeça, se o Papá autorizasse, está claro.

Correu o tempo, levou o ânimo do povo,   deixou-lhe  medo. Veio a sombra das guerras, e os festeiros baralharam-se nas intenções. Em 1950, ora! Já não calhavam tais desejos de folia.

***

Nas primeiras cartas dos Açores, Né relatava a Helena como decorriam por lá as festas do Espírito Santo. Estabelecia paralelos: as fogaças da Senhora dos Anjos equivaliam às sopas dos impérios ilhéus. Pão para os pobres.

Agora, Helena apreensiva, a menina Né referia-se à outra função. “Lena, ajuda-me a reviver aquele dia”, lia-se numa das cartas. “O dia do casamento.” Aliás, dos casamentos. Pedia também que lhe esmiuçasse os preparativos das bodas. Tudo. Por exemplo, como se chamavam as divertidas raparigas e mulheres da Portela que, durante semanas, bordaram os enxovais , o dela e o da mana? Na cabeça de Né, subsistia apenas um nome: “Maria dos Anjos… Irmã de um rapaz moço de compras, um tal Eugénio.”

As bodas das duas filhas dos senhores da Quinta. Levadas ao altar, pelo braço do Papá, naquela quinta-feira, véspera de Santo António, de 1941… Ai! Ai! 

Então não foi a uma quarta-feira, 9 de Julho? Era isto que se esvaía na mente da Menina? Aquele dia tão importante? Como se podia acreditar? Por certo que Helena saberia apontar quase todas as coisas dessa altura. De tal maneira foram vividas com alegria pelas pessoas da Quinta, patrões e trabalhadores.

Todos radiantes. Os fatos, os vestidos, as jóias, penteados, chapéus… os fardamentos novos de criados e serviçais. Nem pensar em dizer quem tinham sido os inúmeros convidados, só se atreveria indicar os próximos da família. 

Mais: a acrescentar que houve gente da Portela, afoita na devassa das estremas da Quinta, com o fito de espreitar de longe as noivinhas. Quedaram-se meio escondidos, entre mato, edifícios e carros. Fez vista grossa, quem se apercebeu daquela coscuvilhice. Coitados! Era por bem.

Muitos, não tiveram a sorte de entrever as manas, não puderam comparar-lhes o bom gosto dos vestidos, contudo regressaram jurando que iam lindas. Outros, ficaram-se pela contagem dos automóveis. Intrigados: afinal, para os ricos, não estava a gasolina racionada.

Plena Guerra, lá por fora. Os militares presentes comentavam aqueles horrores. A meia voz, a fim de não inquietar noivos e convivas.

"Graças a Deus e a Salazar".., o senhor Capitão nunca teve problemas até ao fim da Guerra. Algumas vezes esteve temporariamente afastado da esposa, em diversas bases, mas desde que partiram para os Açores, estava tudo como Deus com os Anjos. Ainda bem.

«Lena, tu estavas de cabecinha no ar, com os uniformes de gala daqueles colegas do meu marido, não estavas?» Pois não era razão para menos, Menina.

Lembrava-se Helena de, durante o copo- -de-água, um dos jovens aviadores, empunhando uma taça de champanhe, ter declarado solenemente: «Houvesse justiça no mundo, Vossa Excelência, minha senhora, não se chamaria Dona Maria Romana. Mas sim, Dona Patrícia Romana!»

Protestos militares contra o desconchavo do camarada. Já a Senhora da Quinta, apanhando o propósito do rapaz, dominou um breve rubor e retribuiu sorrindo. «Patrícia entre as romanas?… Muito gentil, senhor alferes.»

«Para terminar, Lena, conhecerás a razão por que se dizia: “Duas irmãs casadas na mesma boda vão roubar a felicidade uma à outra”.

Coisas sem jeito, Menina, ignorância do povo. Como podiam duas manas tão amigas roubar a felicidade uma à outra? Fiquemo-nos por aqui.

Bem melhor seria que a menina Né continuasse a mandar-lhe notícias dos filhos. Estariam uns amores, benza-os Deus. Efe e Isa.

 Para quando o envio de mais fotografias à Senhora? A Mamã não sai sem os retratos dos meninos. Quer mostrá-los às amigas. Pediu ao senhor Fonseca, o chofer, que lhe pergunte, antes de entrar no carro, se «leva também os netinhos». Coitadinha da Senhora, pudesse ela tê-los aqui por uns dias, poucos que fossem… A confirmar-se a vinda do menino Efe, para a festa, vai ser um ai Jesus.

Helena sabe que está a repetir-se: pois muito se tinha rido, por causa  daquele encontro do menino com os cavaleiros… Não guardou segredo, é certo, – fez mal? Toda a gente na Portela acabou por vir a saber.

Contava a menina Né. Tinham ido de automóvel aos Biscoitos…. Biscoitos, Menina? «Nem mais, Lena, uma praia, no norte da Ilha Terceira.» Admiravam a paisagem quando, de repente, o menino Efe meteu conversa com dois jovens cavaleiros. Deslocavam-se para uma toirada à corda. 

Parecia conhecimento de longa data. Um dos rapazes pediu licença para montar o menino na sela. Encurtou as correias dos estribos, ajudou-o a subir, a firmar-se e passou-lhe as rédeas. Não estivessem os pais receosos, não senhor. O cavalo, obedecendo mais à voz do dono do que ao novo condutor, deu duas voltas, a passo vaidoso.

Quem diria, um menino de sete anos! Já nascera ensinado? Que tinha aprendido com o avô. E adiantou, com risota dos presentes: «Ó mamã, quando eu for à Quinta do avô João, posso trazer um cavalo, não posso? Depois vou passear com estes senhores.»

Viria o animal de barco ou de avião? perguntou um dos açorianos. Isso agora…Mesmo assim, ficou assente: logo que do Continente chegasse o animal, iriam todos ao pasto ver os touros. Uma pena o senhor Capitão, na altura, não ter mais rolo na máquina fotográfica.

E a menina Isa? Quando teria Helena a sorte de a abraçar?

Nem sempre Helena aparentava a mesma atenção pelas cartas dos Açores.. Por exemplo, passou ao lado do que lá vinha sobre a Outra.

«Como se atreve o Papá a instalar, de cama e mesa, na Quinta Velha, aquela senhora? A dois passos da nossa casa! Que falta de respeito pela Mamã…. Sim, sim, finge que não, mas está a par de tudo. Eu, eu morria, se fosse comigo.»

Estava, também ciente da ordem dada ao criado das compras. Fosse o Eugénio levar uma carroçada de produtos da horta, das capoeiras e da despensa ao hospital da Misericórdia. Estavam em apuros os irmãos mesários, sem conseguir calar bocas doentes e esfomeadas. Aproveitasse para deixar nos Correios, como de costume, toda a correspondência. De volta, trouxesse os jornais da Senhora!

Ao portão da Quinta, o Zé Melro fez alto à carroça. Contra-ordem: o destino não era a cidade. Seguisse antes pela estrada de Rio Maior e descarregasse na Quinta Velha. «Nem oh, nem meio oh, 'Génio!». Segunda recomendação: liberto da carga, fosse, então, para Santarém, pelos jornais, sem se esquecer de passar pelos Correios e… Acima de tudo: nem pio! Ou despedimento para os dois. Carroceiro e mensageiro. Quem manda pode, pois claro.

«Como teriam chegado aquelas coisas feias aos Açores, meu Deus?»

Finalmente. Poderia Helena imaginar a mágoa da menina Né? Sempre que ficava sozinha com os filhos, por o marido se demorar em serviço em Santa Maria ou S. Miguel. Ultimamente, perturbada até com as suas  mais curtas demoras. Estaria ele de facto numa reunião com o comando americano das Lajes? Nem todas as esposas dos senhores oficiais se dedicavam assim tanto aos maridos. Algumas …

Já se vê, nem precisava de pôr mais na carta, Menina.

Quanto ao mais, quer dizer, assim queixas, queixas concretas, apenas as da falta do aroma do pinhal e dos matos da Quinta. Ah, também qualquer alusão, aos pavões…

Embora isso já  não possa, de momento,vir à colação Fica para depois, muito mais tarde. Quando Helena foi chamada ao quarto da Senhora, e teve ensejo de ler aquela carta chegada com os últimos papéis dos Açores. Valha-nos Deus! 

Deixa lá, Helena – nem sei se ainda vives! – não contes mais hoje. Fiquemo-nos apenas pelas últimas linhas. Repete-as então, se faz favor.

.

«…muito triste, minha amiga. Afoga-se-me o coração numa lagoa de mágoa. Um grande abraço…»

***

Em minha casa, ouviram-se gritos. Convulsivo pranto da Ilda, nos braços do irmão Mário. Uma grande desgraça. Todo o trabalho suspenso, na Quinta. A menina Né! Tinha ido ao encontro da morte.

Ninguém sabia, ninguém sabe, porquê.

Escrito em 2011

 

quarta-feira, 1 de março de 2023

ESCREVIVÊNCIAS 23 Os Anjos da Ota



 Também a mim se me pendurou uma ideia no trapézio. A de meter aqui o Ruy, na pachorra destas escrevivências

Quero ir ao Vale Barco a Malaquejo à Marmeleira / roubar melões jogar ao murro ver nas festas o fogo preso…” 

Mais o dorido refrão: “quero só isso e nem isso quero”. 

Querer e o seu contrário – desquerer?, por descrer? -  simultâneos,  no poema do Ruy Belo. Nosso vizinho de além das encostas de Rio Maior, a ver nascer o sol por cima da Quinta dos Anjos.

Assim eu: quero contar, a mim e a nós, e nem isso quero.

 Neste caso, trazer o conto à última pausa, para dar alma à casa. Ao prédio deixado branco em verde pinho da Quinta 

Oh as casas as casas as casas / mudas testemunhas da vida / elas morrem não só ao ser demolidas / elas morrem com a morte das pessoas”. 

Até à próxima, Ruy. Urge seguir pelo meu pé.

 ***

«Hoje é quinta-feira, Helena… É dia do meu anjo!»

Os anjos da Ota.

Que desassossego. Tanta ansiedade, ao aproximar-se a hora do voo do senhor tenente. Como ficar perto?, Para dizer adeus, mandar beijinhos, correr a…

 

«Sossegue esse coração, menina!» Conselhos de criada.

 

Jota, muito criança ainda, observava as acrobacias da esquadrilha de instrução.

Já o tenente tinha o posto de capitão. Casado com a menina mais velha da Quinta.

 

 Havia momentos em que a sua avioneta passava mais baixo do que os píncaros dos eucaliptos do Cabeço. Os rapazes da Besteira acenavam com boinas e chapéus de palha. Por detrás da escotilha, uma cara sorria, animando o flying cap. A mão enluvada correspondia aos gestos da rapaziada.

 Coquelim, Rebelana, Bisoiro… todos iriam partir aos comandos dos seus aviões. Bastava-lhes enfiar as boinas até às orelhas, engendrar uns óculos «à aviador», com arame de fardo de palha. Fixar na boina caricas, insígnias de heróicas e imaginárias missões. De braços abertos.  que o Bisoiro ficou-se pela desmontagem dos segredos aeronáuticos, quando aquele obsoleto material foi adquirido em leilão, poucos anos mais tarde, pelo sucateiro da Calçada do Monte. 

Não aterrou muito mais longe  o Coquelim, cumprindo serviço militar nas oficinas de Alverca. Na especialidade de combustíveis e lubrificantes de aeronaves. 

E o Rebelana? Contrafeito, mar fora, no Niassa, para Moçambique, isso de certeza. Anos de violência.

Mas também arrisco imaginá-lo sobre os céus de Paris, enlevado apenas pela lábia do Cunha, a quem ele tratava por  Conarias

"Et quelles conneries, mes chers amis!" 

Façanhas de exilado. Até porque, sim, até porque, uma boa conversa pode ser um modo de voar.

 

Constava que, desde o começo do namoro, o aviador aproveitava instrução aos novos pilotos para treinos na zona de Santarém. Repetia Herculano Salsa.

Então, o nosso tenente metia as caranguejolas ao endereço da mata e, quando avistava o prédio, dava ordens de dispersão aos subordinados. 

Juízo! Rigor! Atenção! Nada de exibições. Sobretudo que não fizessem voos rasantes para acagaçar quem andava pelos campos a ganhar o pão. Chegou a haver desmaios de quem entendia aquelas exibições juvenis como sinal do começo da guerra.

O ponto de reunião, seria, passados três minutos, por cima do entroncamento do Saquiteiro. Guiassem-se pelo painel de bordo, pelas estradas e pelo "pinheiro gigante" do Alto da Portela.

Bem prega frei Tomás.

Entrementes, o nosso tenente começava as manobras de namoro.

 Fazia a sua avioneta rodopiar o prédio, curvas cada vez mais estreitas, apertando a tarraxa. Em alternativa, voos picados sobre o terreiro frontal.

 E a menina? perguntassem à Helena. 

Primeiro, nas águas-furtadas, com a ilusão de ter o namorado quase ao alcance da mão, dos lábios…

 Toda a casa se ressentia daquele inferno mecânico, convertido em vibrações de vidraças e baixelas. Mal disfarçada condescendência da Mamã: começava naturalmente assim, o amor! Aparatoso.

 

Paroxismo nervoso do Papá.

Desvairado, a mordiscar surdos impropérios, cuspinhava para todos os lados, encontrasse-se na sala ou no escritório, Sacudindo convulsivo o queixo afilado.

 “È louco, é louco, a minha filha vai casar com um louco” Refugiava-se na cavalariça. Ganiam cães, relinchavam éguas.

 Ficava agarrado ao pescoço do seu cavalo de estimação, olhos fechados, a acariciar o pêlo, até se lhe acalmar aquele involuntário estremeção cervical. Tique explicativo da alcunha: o Pica-pau

Quem se afoitava a chamar-lho? Nem os seus camaradas da Legião Portuguesa.

 

Rapidamente, cumprindo o plano, todas as aeronaves se reuniam para, em formação, se afastarem. Rumo às lombas do Montejunto. Adeus! Adeus!

 Um sorriso tolerante, da Senhora para as criadas. Não viria mal ao mundo, por tal demonstração de afecto .

 

Mas onde ia menina, assim estugada?!

Apanhar o pequeno bornal. Deixado caír, a uma vintena de metros da fachada principal da casa. Não estando visível de imediato, bastava procurá-lo um pouco, mesmo entre arbustos. Trazia bilhetinhos, páginas de um diário… E, pelo certo, aquela rosa.

«Vês, Lena?»

«Ai, menina, sejam muito felizes».

 

O pior, há sempre o pior nas histórias de amor, foi quando uma das chaminés de um fogão de sala se intrometeu no abraço que a avioneta do tenente parecia vir dar às águas furtadas do prédio. Esparramou-se a alvenaria, voaram pedaços de caliça. Era o fim. Senhora dos Anjos! Mãe Santíssima…

 ***

Não te cales já, Herculano!

Bastante descompensado, o piloto conseguiu aguentar-se no regresso até à base. Na cauda da formação, sem qualquer quebra na disciplina do seu pessoal. Como de costume, o nosso tenente fez-se à pista da Ota. Porém com o impacto das rodas, separou-se a asa fracturada, Só a experiência, na manobra de recurso, evitou um mal maior.

 

Chamado ao comandante, nada de disfarces. Responsabilidades assumidas, rosto erguido.

A outra versão do Herculano era a de que, por falha mecânica, afinal só teria algures ocorrido a colisão da aeronave com um chaparro. Um chaparro!

 Nessa não se deixou enredar a comissão de inquérito. Se colisão houvera, fora com superfície caiada, provas evidentes. Portanto: porrada pelo abuso, pagamento das reparações, faça-se lá ideia de quanto, e louvor. Pela perícia, coragem, sangue-frio, mais aquelas coisas que a tropa escreve em ordem de serviço. Tudo lido em parada. Destroçar!

Os anjos da Ota!

 

Tienem angel”, dizia ele, numa tarde na praia da Consolação. Assistíamos a um torneio de chinquilho, junto à fortaleza.

 De que falaria Ruy Belo? Das malhas de aço, cruzando o azul de mar e céu? Dos jogadores, silenciosos, alinhando o olhar sobre os tabuleiros?

 

Não. Estava apenas, com um sorriso largo de toda a terra, lembrando-se das raparigas de Madrid. Dos piropos que lhe ficaram por dizer, a tais chiquillas, nesse tempo de despedida. Distracções de poeta.


 Abril 2011