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sábado, 26 de setembro de 2009

Ocupação: arrumador





Como só escrevo às vezes, para mim, sem determinação, não ocupo espaço. Nas bibliotecas.
Nesta, na encosta da Mouraria, retomo, entretanto, com grande prazer, os hábitos de arrumador, que acrescentaram algum sentido, durante 17 anos, à minha principal actividade profissional. Tal como antes, espero que ninguém me tome por um sovina guardião de livros, ciumento dos entusiastas da leitura.
Quanto tempo me restará para ler, depois de arrumar este fundo? Os dividendos dessa leitura e do convívio com os leitores serão os meus "trocados" de arrumador. Com que vou adquirir a minha dose diária de bibliodependente. O tal vício ainda impune, de que fala Michel Crépu, em complemento do silêncio dos livros, de George Steiner. Sobrevivência no absurdo.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Camarinheiras do Meco ou conversa de diminutivos Enterneceram-me as camarinhas. Sempre, desde o tempos da Nazaré. Pérolas da duna. Negócio de crianças que as traziam à venda em açafatinhos. Peixeirinhas, sentadas no paredão, ali por entre a colónia balnear e a fila de triciclos de O Melhor Gelado Ribatejano. Camilo Gomes e Emília Mecheira assinavam a receita de fabrico. Entre as duas gulodices, eu preferia os dois tostões de camarinhas, servidas num caquinho para a palma das minhas mãos. O rebordo do fundo da tigela , que escorregara da mão sem querer. Tal era a fome de quem lambiscava o derradeiro humor da sopa. Senti-me conciliado com um Setembro antigo, quando redescobri as camarinhas, com as minhas netas, nas dunas do Meco. Ensinei-lhes como se colhiam e saboreavam. Dei graças de ateu, pelo facto de ainda estarem lá. Lá! Observem a foto. Podia ser qualquer duna entre a Galiza o Guadiana. É sobretudo um sítio diverso do meu pesadelo : alguém mandou betonar toda a faixa litoral portuguesa. Por via, para via, dos automóveis, sim senhor. E da segurança dos votantes, aspas-aspas. Sim, a Marta é canhota, habilmente. A Sofia? foi retirada da imagem. O foco são as camarinhas. E a memória das coisas desvalidas.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

SETENTA ANOS DEPOIS
  1. Aos poucos vai a Europa diluindo as arrogâncias e humilhações que determinaram a mortandade da Segunda Guerra. Nestes últimos vinte anos, temos feito alguns progressos pro-dignidade, embora os arsenais não se esvaziem e os guerristas proliferem. Como se o tempo nada tivesse ensinado à cada vez mais ameaçada espécie humana. A tal que a salvar-se ou extinguir-se, depende dos tratos que continua a infligir ao Mundo.



    Nascido em 44, convivi ainda com meses de guerra viva e tive consciência, por terceiros, da miséria a que poderíamos ter chegado. Até ir para a escola primária, tremia de pavor, antes de adormecer, com a figura do que quer que se chamasse guerra. E na minha família ainda sobejava, pouco embora, na arca, talha e salgadeira.

    À saída do ensino primário, já me haviam afeiçoado a ideia de justiça pela guerra, embora nunca me tenham explicado como. A história gloriosa penetrava-me a fantasia infantil. Passei ao lado de beligerâncias, sem ter compreendido bem porquê. Assisti ao rompimento de impérios, sempre na convicção de que no dia seguinte haveria uma iluminação de consciências redutora de todos os conflitos. Mantenho a ideia de que a humanidade poderia organizar-se sem exércitos nem milícias.

    Setenta anos depois. Meus pais haviam casado em Junho, pelo S. Pedro. Na geração dos meus avós fora-se ou não às trincheiras. A mortandade de Espanha nas conversas de namoro. A invasão da Polónia dois meses depois.