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sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

CONTAS Do RECADO As pedras

Pedras

soltas e só

para além do olhar

pedras em cinza

deserto.

Porquê este plaino

em silêncio?

Day after... implosão 

de montanha

nuclear desgovernado

escórias de abusiva mineração...?

Minguante luar

 faz sobressair lajedo. 

É o palco  vazio onde chega 

a voz de conhecido ator anunciando a última 

representação .

Ficamos até ouvir:

"Acta est fabula".

Caem mais pedras.

Rio de Mouro, 15 dezembro 2022








domingo, 11 de dezembro de 2022

ESCREVIVÊNCIAS 2. 21 O MIGALHEIRO DE NATAL

 

 

O MIGALHEIRO DE NATAL

«Que é a vida, s’ Toino?», atirava-lhe o Domingos, quando entrava na taberna.

«Oh!... É uma vela de sebo a apagar-se», gemia.

Deixemo-nos hoje de lamúrias, António Metaneiro, que temos  obra à nossa espera. Nem mais, o prédio da Quinta.

 A residência dos proprietários  era a mais imponente da Portela. Um edifício de dois andares, farto de janelas.. Entrada principal, abrindo-se a sul -depois de quantos degraus? - por um arco de pedra, apoiado em mainel, ao centro. As águas do telhado: duas mestras, a nascente e poente fechadas por duas tacaniças. Chaminés.

 Mas tudo se dilui… Neste absurdo que me prende a uma casa onde nunca entrei. Lastro de paisagem em renúncia.  Flocos alvacentos,  laivados de vermelho terroso e cobalto. Num horizonte de verde-pinho.

***

Quem tinha tudo aquilo na cabeça era o António Metaneiro.

Vinha de uma família de metaneiros (1), nados e criados  na Quinta.  Pais, irmão e irmãs lá deixaram dedicação, saber, suor e pragas.

***

António. Enfermiço, agarrado à pinga. Entretinha-se com biscates em madeira: Ora peanhas para as candeias de azeite e candeeiros a petróleo ora galheteiros, caixas de costura, saleiros….

Objetos de  venda difícil, dada a resistência à compra de coisas passadas pelas  mãos de um tuberculoso. 

Tomava como matéria-prima tabuinhas toscas de caixote de sabão, cedidas pelo Gil da mercearia. Ou desperdícios  de  carpintaria da Quinta.

:***

Uma manhã, ao balcão da taberna, o Domingos tinha o António Metaneiro. Serviu-lhe a dose do costume, para mata-bicho: um traçado de aguardente e abafado.

Escorrida a pinga, o bebedor  confirmava a retirada do seu copo  para longe do uso dos outros bebedores, por via do contágio. Que fosse passado a cloreto e guardado debaixo do balcão. 

Já lhe bastava a ele! Nem  ao maior inimigo queria pegar aquele mal.

Felizmente só tinha amigos, gabava-se. Muito embora.

« Então e  hoje, o que leva aí na talega?»

Abriu e colocou em cima do balcão três peças cheirando a tinta fresca. Azul, branco, vermelho. 

«Como vês, Domingos, consegui! E cesteiro que faz um cesto…» 

Estariam à escala?  Tinha de construir uma bitola, para poupar tempo e material.

Arranjara compradores, melhor dizendo,  compradoras, no dispensário em Santarém. Haveriam de surgir mais encomendas. Talvez até o patrão do Domingos autorizasse a venda daquilo ali na loja. Iria deixar um exemplar para amostra. 

Era o prédio da Quinta, sem tirar nem pôr. Do lance de escadas, na entrada principal, aos para-raios!

***

Agora a porca torce o rabo. Como vou eu talhar na escrita o que o Domingos me garantiu ter visto afeiçoado pelas mãos do Metaneiro?

Talvez com a ajuda da Maria Afilhada.

***

Encontrámo-nos num almoço de confraternização de parentes, há uma dúzia de anos.

Mesmo alegando roubada de memória, ajudou.

A mãe era lavadeira na Quinta. Para não a deixar   sozinha em casa, levava-a consigo. Por lá passou a infância, descobrindo  cantos e recantos

«Ali também era a minha casa... Gostava que fosse. estão a ver...?

« A MINHA CASA

Tem lareiras e fogões a minha casa...»

Assim começara uma redação, na Escola, quando a professora pediu que descrevessem a casa onde moravam.

 Continuando, a garota chamou a si: a cozinha grande e farta, despensa e copa conformes. Salas e salões, escadarias, mármores, lambris...muitos quartos  quadros e retratos. Aromas de ceras e perfumes de banho…

Estarrecida,  pausava a leitura em voz alta, para ver o efeito na audiência.

«A tua, casa, Maria!! » gritou-lhe  a professora.

Risota na aula. Que  vergonha!!! 

«Olhem que ainda hoje tenho lágrimas nos olhos!!! Pois não! Aquele nunca podia ser o meu casulo. Havia na sala crianças descalças. Estava-se no inverno.»

 ***

Voltemos à   taberna... 

O Metaneiro não tardou,  para mostrar o molde.  

«Trinta e duas  janelas ... conta, Domingos!  Toda a gente sabe, o prédio tem mais uma janela do que os dias do mês.»

Agora, mãos à  obra. Ia fazer os seus migalheiros!!!!

Ou seja, mealheirosSiga a conversa.

************

Nascera e residira na Quinta dos Anjos mais de trinta anos. Como a doença não cedesse, António teve de sair para, com a mãe,  se fixarem na última casa habitável nos fundos da azinhaga da Besteira. Quase a chegar ao Cervato. 

Se nem o pinhal da Quinta nem o sanatório o haviam curado, deixassem-no, ao menos, ali morrer em paz, no isolamento do olival.

Com os olhos vidrados no prédio da Quinta, riscava, cortava, colava, pintava os migalheirosComprassem-lhos, sem asco. Soubessem apreciar cada miniatura, desde a barra azul do rés-do-chão à alvura das paredes. 

Apreciassem o rigor do entablamento, as inclinações do telhado, o alinhamento de chaminés e águas furtadas. A minúcia dos cunhais, cantarias, varandas.

E tirassem proveito das poupanças ali guardadas. 

Moedas ou até notas. Inseridas por uma ranhura horizontal, aberta a meio do trapézio da agua furtada do tardoz, caíam no bojo do prédio.

Viessem horas de aperto, bastava deslizar o fundo  para retirar a quantia em falta.

Se para os gastos chegasse. 

Os migalheiros do António Metaneiro. 

 ***

Naquele ermo, o doente e a mãe viviam sobretudo das dádivas do proprietário da Quinta. Com as quais ela  procurava pagar a renda da casa, comida, alguns medicamentos… E, antes de mais, vários carregos de vinho por semana, da taberna da Besteira. 

Reserva e compaixão da vizinhança, frente aos vaivéns e à desdita da velha Maria Metaneira

Pano sujo das escarnicadeiras, aquele martirizado viver de mãe e filho. 

Diziam que o Metaneiro se lhe desfazia em pedidos de perdão por coisas contra os costumes e a moral pública.

Nunca se descobriu o contorno entre verdade e infâmia naquilo que o António teria dito ou naquilo que os vizinhos lhe teriam posto na boca.

***

Constava ter mandado, em vésperas de Natal, oferecer, ao patrão dos Anjos, uma das mais perfeitas miniaturas  do migalheiro . Com um bilhete que ninguém leu… 

Que o destinatário arrepiasse caminho. Quanto a mancebias, ostentações marialvas e esbanjamentos da fortuna…Seria tão bonito se o patrão  deixasse de ser o «velho gaiteiro» e prezasse   mais os seus.

Num mundo ao contrário,  o beneficiado pregava virtude ao benfeitor.

 Nota: 1)- Metaneiro, aqui alcunha profissional. Designava trabalhador encarregado do abate e recolha dos metanos, as ramarias, para manutenção das matas.

 

 

 

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

ESCREVIVÊNCIAS 2. 20 O homem dos potes



 O homem dos potes

E o homem dos potes aqui me tornou. Com um atraso de....

Mas, primeiro, quem era ? De onde vinha? A que propósito ou despropósito? 

Sabe-se lá hoje! E décadas?

***

Conta tu, Domingos!

«Passos de bestas na areia da azinhaga. Vim à porta. 

Duas, arreatadas uma a outra, escondiam o dono. Pela carga, logo  compreendi: era o homem dos potes !»

Vinha aí o vendedor de potes, como todos os anos, quando a azeitona amadurecia e o sol quebrava.

Espantava que as suas garranotas aguentassem  tantos barros no lombo? Sem escoicinhar.... Nem desobedecer às vozes do condutor: Sempre certas nos batimentos dos cascos. Sempre em parelha.

 Mais uma venda à vista:

«Aí, primas

Quem não queria ter uma vasilha para adoçar azeitonas ? Para garantir  conduto pelo inverno fora.

Vinham aqueles três, sabe-se lá....

«Dos Alentejos!» 

****

 E cheguei a isto, digo eu, porque, em boa hora, me convidaram a largar o telemóvel e ouvir

"O homem da gaita", do Zeca Afonso.

A gosto fiquei , A gosto os meus ouvidos registaram a toada daquelas tamanquinhas do Zeca.

****

Só me distraí com a galhofa do Domingos:

"Vocês não acreditam!... O gajo seguia para a Azoia... Póvoa...Alcanhões.... Pela azinhaga.

O nosso Trrritrrró, ainda lhe gritou:

«Dê a volta pela estrrrrada nova, homem de Deus!

Qual quê!... Meteu por ali mesmo, direito a Vale de Lobos. 

«Já 'tão a ver o resto... Ai que estojo

 Quem conhecia o atalho daqueles tempos arriscava concluir a narrativa.

Não era caminho, era um córrego. Despedrado,  escorregadio. 

Onde se punha um pé logo se esborrachavam os queixos....

Deixá-lo ser casmurro. Há de arrepiar caminho.

***

Não tardou...

Aos berros... Quem estava na taberna confirmou o previsto.

« Bestas malvadas!  Só me apetece dar cabo delas!Estou desgraçado, Amigos!»

Tinha de ser! Embicaram  as azémolas. Adornaram e..

Perdera-se quase toda a mercadoria.  Na borda da azinhaga, ficou um montão de cacos.

Ora porquê? 

«Mas ouviu-se  o quê, compadre?»

« Ouviu-s...um rai' que parta dum sei lá o quê... Coisa maléfica que aluou as bestas.»

***

Que aquilo aluara as bestas, repetiu-se por lá durante décadas .

Aquilo era, só podia ter sido, o homem da gaita!  Bolas! Já por ali andaria...

E  bruto eu sou por nunca tal me ter ocorrido!

Aditamento:

Quando o meu irmão leu este relato tardio do desmemoriado que eu sou, alertou-me:

«Ponto de ordem ao contador...»

Faltava a opinião do Trrritrrrró....

Manel Direitinho,   assistiu a tudo calado. Quando acabou a lamúria do vendedor arruinado, saiu da taberna. Ia ver com os seus olhos.

Esteve no local com o Zé Lázaro. Observaram discutiram e, em conclusão:

 Os potes, sim senhores, os potes  é que se atiraram ao chão! Fartos de andanças no lombo das bestas .

Zé Lázaro manteve-se agarrado à ideia de  coisa ruim...

E, na manhã seguinte, atravessou o pinhal do Gato, para se pendurar numa oliveira .

***

Ponto de ordem aceite, meu irmão. Obrigado.

Rio de Mouro , 2022

.











































segunda-feira, 21 de novembro de 2022

ESCREVIVÊNCIAS 2. 19 Um dedal de vento

 

"Por um dedal de vento..."


Por agora resistiria a encafuar-vos já na Quinta dos Anjos. Até porque não sei como tratar o  tema de hoje.

 Então, voltamos ao sota ervanário? Ao meu trisa Emídio, herói do meu pai-menino, por quem soava alarme, sempre que o velhote empurrasse a bengala para lá dos limites. Vedado sair do picadeiro casa-taberna da irmã-casa ou esgueirar-se para a horta…

Ouvissem-no e logo ele voltava às suas expedições de coletor de ervas. Localizando e colhendo com cuidados de mestre, as ervas das suas mezinhas. De mestre, sim senhor. Mestre Feijão!

Não, amigos: Por hoje mais não digo acerca do Serpa Pinto. Porém hei de completar-lhe a crónica, se me ocorrer. 

Resigno-me a continuar o despejo do saco da Quinta, só depois me entregarei a outros alívios. Sim, é verdade, as memórias podem tornar-se flatulências. Não haja dúvidas. O desejável é que as vidinhas não tenham sido mal digeridas. Estômagos rijos, fígados de santo precisam-se!

*

 Cresce o meu pai mais uns palmos, não muitos , que de família herdara a franzinice. Enrola-se no varino do seu avô Joaquim Henriques…

 «Aonde vais, António?», pergunta-lhe a avó Mariana. Àquela hora?!

 Deixar para trás o resto da ceia e meter-se à escura friagem da noite?

António: que não ia sozinho,  tanto podia voltar daí a uma hora, como um bocadito mais tarde...

Destino? Quinta dos Anjos, se as contas não saíssem furadas.

 A família entendeu. Tinha-se ouvido foguetório ao fim do dia. Anunciava-se a festa da Adiafa

*

«Pelo menos já cá moramos», disse alguém. 

E digo eu a quem me lê. Não vos tiro desta Quinta!.

 «Até aqui não nos podemos queixar...» , acrescentou outro dos vultos que acabavam de transpor o porto do valado. Intrusos, furtivos... 

Pouco barulho!

 Se a  invasão desse para o torto, só se perdiam as passadas e depressa regressariam à Portela. Ganhariam mais umas horitas de sono. Que o dia seguinte não iria diferir da rotina de empurrar andantes e lancheira Calçada do Monte acima. Pegar às oito, nas oficinas .

Mas, naquela noite, a sorte havia de bafejá-los. A sorte e o calor do baile. Era uma fezada.

 Então, despachem-se, rapazes! Cuidado até ao quartel do pessoal da azeitona.

 Que eram gaibéus, caramelos, bimbos, gente  da Bord’água, da Charneca, arraia de Montalvão?… 

Ignoro de que recanto tinham migrado os apanhadores daquela safra

Gente de fora. Os da terra  não chegavam para as tarefas.

 E saídos da Escola, r cada vez se afastavam mais do trabalho no campo.

 *

«Estamos quase!»,  cochichavam os rapazes. 

Ouviam a concertina. Confirmando a notícia de que só tinham tido conhecimento  no regresso do trabalho na Cidade. Adiafa da azeitona  na Quinta dos Anjos. 

Já os avós contavam ...Mas isso será conversa para outra altura.

Tivessem os intrusos sabido mais cedo, teriam preparado as coisas de outro modo, sem irem assim ao calhas.

Bem conversadinhos, por algum dos trabalhadores locais –o Sílvio, o Antero, o Guilherme Barra...-,  os organizadores da função não recusariam entrada aos  da terra. 

Tanto mais que a questão era sempre a mesma: por que haviam as raparigas de dançar umas com as outras, à falta de parceiros suficientes? 

Bom, vamos lá andando, que com sorte…

 

Continuavam a abrir caminho na noite cega e fria. Espicaçados e pelas tojeiras agressivas. Matagal dos Anjos!

Rodearam o quartel do rancho com devidas precauções. No alpendre, onde se caldeirava, assava-se chouriço ou toucinho. 

Que, pela Adiafa, havendo oferta do petisco, do vinho e do abafado, dar ao dente e regar a goela era a melhor forma de agradecer a liberalidade do patrão. Mais uns vivas, umas pulhas, uns descantes … Por fim, bailarico.

Sem excessos!

Recomendavam os velhos. Não era a noite do fim do mundo.

 Mas a geada, a alegria, o petisco, a pingoleta puxavam pelo desejo. De abraçar a música e o par.

 Então e eles, os visitantes.?

Amoitados no escuro, transidos, como fazerem-se convidados? 

Dar a cara? Mas a quem ir assim, do-pé-para-a-mão, revelar o desejo de participar no rodopio?

Por mais que as raparigas estivessem interessadas em mudança de par e conversa mais saborosa, não era provável que os homens da família fossem pelos ajustes. 

Não se avistando ninguém da terra, só havia uma saída., virar costas. Ir para vale-de- lençóis .

 *

Alto lá! Querem  ver que...

Abre-se uma porta a poucos metros dos intrusos. Lá dentro, adivinhava-se a animação. 

Que querem estas, agora?

Raparigas palradoras, a queixarem-se da falta de rapazes. Uma voz, mais velha, a quebrar-lhes o fervor: sabia muito bem o que as cachopas estavam a pedir. 

Gargalhadas. 

«Mijem que vos passam os calores! Mas não se arranhem no mato.» 

Mais gargalhadas.

 E assim teriam todas elas  feito, até à última gota, se…

 *

Os pretendentes dançarinos, ajoelhados no chão, a uns metros, acotovelavam-se. Pschiu! 

Continham a respiração.s E o riso. Meu pai “ferrava a dentuça na gola do varino”… Iam aguentar-se, ao som de tais repuxos?

Que remédio! À menor fungadela, armava-se logo uma grande balbúrdia. Deixassem escorrer! Não estavam ali. Nem eles nem elas. 

Só que…

Como diria o doutor Feijão. “Por um dedal de vento….

Descuidou-se uma das mijonas. E o estampido perdeu-se no  pinhal.

 

Ah pernas, para que vos quero! Disparam os metediços, diretos ao valado por onde tinham entrado.

 

Alarido, sobressalto, calou-se a concertina. Lanternas de palheiro. 

Desafios ameaçadores para o escuro, Na direção dos fugitivos. 

E quem seriam  aqueles filhos da dita?

Voltassem que haveriam de levar os chifres amassados. À paulada.

 E uma mulher, esganiçada, apregoava artes de capadora: «Venham cá que eu vos arranco os...»


 

Só pararam na azinhaga da quinta dos Pinheiros. Fora de perigo. 

Alguém perguntou:

«Porque fugimos, caraças?»  «Ninguém fugiu, poças! Viemos foi atrás dum traque!»

Outro sentenciou  calmamente:

"Por um dedal de vento, não se vai perder um alguidar de tripas.”

 Máxima do doutor Oliveira Feijão (1) . Professor da Escola Médica de Lisboa. Sábio, respeitador das forças da natureza e par do Reino. O povo repetia-o: “Por um dedal de vento” 

Pouco mais conheciam do valor cívico, intelectual e empresarial  do patrão da Quinta da Mafarra.


2010/2022.

Nota biográfica

1) Mestre Feijão

https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Francisco_Augusto_de_Oliveira_Feij%C3%A3o

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

CONTAS DO RECADO.

UM SMARTWATCH 

Sorriu e aceitou a minha prioridade, na passagem de peões. Para o velho que sou, é ouro uma simpatia destas. E vinda de um jovem desconhecido...

Que logo encostou o carro e chamou:

-Senhor! Senhor!

Ia apressado, para a calista. Peço desculpa, Fábia, era mesmo podóloga que eu queria dizer….

Quando um indivíduo deixa de ser capaz de domar as unhas dos pés...Ai! Ai!

O jovem continuava a sorrir. Repetia um sorriso de quem?

- O senhor está igual. Mais uns cabelos brancos ...  Na mesma!  Há anos que não  o via .

Embora  atrasado e sempre na defesa, quanto a este tipo de encontros, prestei-lhe mais atenção .

Não, nunca tinha estado com aquele jovem!

Consciente de  que um sorriso pode não ser uma ponte 

-Sou o Ricardo!

Ricardo?... Só me ocorreu  o Agua-Ruça. Que não era para ali chamado.

-Então o Ricardo conhece-me do... Centro de Saúde, não é?

Anzol mordido. Deixa ver o que isto vai dar. Ó Fábia não se ria, . escute o resto, se faz favor.

Pois era mesmo do Centro de Saúde. Quem havia de dizer?! Com mais uma palavra e o Ricardo confirmava:

- Exatamente! Centro de Saúde da Amadora. Lembra-se do meu pai... O Vítor Pereira? Toda a gente o tratava por Vitimho. Era segurança.

Dois trampolineiros à compita, pensei.

Do pai?... Bem, tinha  uma vaga ideia. Não nos podemos lembrar de tudo.E como é que esta conversa vai acabar?

A vida dá voltas. 

O  pai Pereira reformou-se. Pensão de miséria. O filho foi para a Suíça ,  que isto por aqui não dava.

-Saiu-se bem Ricardo?

Que sim. Estava agora de férias. Vinha ajudar o pai.

Daí a uns dias inaugurariam uma ourivesaria no Cacém. Mesmo ao lado dos Correios. Tinha facilidades em colocar ali relógios de boas marcas 

- E o senhor está desde já convidado. Aqui tem...

- Relógios, Ricardo?! Que boa ideia! Só que. no próximo sábado, estou ocupado. 

E desejei que o negócio fosse próspero.

Fiz o gesto de me despedir. Estavam à minha espera.

Que antes, ele , Ricardo , certo de que o pai apoiava a decisão,  me oferecia um brinde de promoção da Loja.

-Aqui tem, abra. Vai gostar. Tem netos? Quatro?!...

Aí, entristeceu. Brindes para todos não prometia...

Abri a caixa, a peça em nada me atraía . E agora ?

- Isto não é um relógio, é um smartwatch 

--Claro, Ricardo!!! Daqueles que até têm escova de dentes....

O sorriso ficou amarelo. Eu exagerava. Mas tinha medidor de tensão, muito importante na minha idade...Tinha podómetro...

Ponto final  Estava na altura de eu  sair de cena:

-Ai não, amigo! Pegue o seu relógio que tenho a podóloga à minha espera.


Consegui chegar a horas, sem o smartwatch suíço.

Trago -lhe uma história fresquinha, Fábia !


(Continua)


.





sábado, 29 de outubro de 2022

Escrevivências 2.18 A de Arlete

 

 (Continuação)

 Alívio. O gorjeio dos verdelhões, debicando as bagas dos alfenheiros, libertou-o daquele sonho descabelado. Isso: coisa sem-pés-nem-cabeça.

 Disparate!

 Quando é que alguma vez ele recebeu um dicionário, trazido pelo padre que ia dizer missa à capela da Quinta dos Anjos?

 A bicicleta?... 

E que veio ali fazer o Sancho da Quinta do Mocho?

Quantas fábricas e fabriquetas cresceram e faliram nos terrenos daquela quinta.... Nada ficou do primitivo espaço agrícola.

 Que noite! 

Embora, de facto, tenha faltado ao concerto…E por isso devia uma justificação à A... 

Cinquenta anos mais tarde, na Academia das Ciências. Coros de Natal. Impedimento de última hora. Cancelou-lhe a ida.

«Grd desgosto, qda A. Morreu William, dps conto», acabou por lhe enviar em SMS. Certo de que ela, a preparar-se para a atuação, já não tinha podido atender o telemóvel

 ***

Deitou mãos à enxada para a inadiável tarefa. Ainda não  fora das suas forças, a calcular pelo procedimento das outras vezes.

 Ali, mais palmo menos côvado, ao fundo do quintal, enterrava amigos muito especiais. Junto à sebe dos alfenheiros.

 A Neige que mudara a família para aquela casa, por sugestão do Artur. 

O Pantufa, tirado de uma série infantil e da primeira ninhada da NeigeTinha um gémeo, levado para a Besteira. 

O Camarada, perdigueiro dos tempos da Revolução… Do reboliço! 

Depois, nos chochos anos oitenta, o Yuppie, emproado, com farfalhuda gravata castanha. De quem o enfezado Idée fixe fazia gato-sapato, …

Sherpa… o Mogli... Nomes dados pelos filhos, então  escoteiros.

 Quase quarenta anos, de vida e de cães naquela casa.

 Nota marginal: o gémeo do Pantufa, de que nunca se conheceu  nome nem apelido, acabaria por desaparecer nos matos da Quinta dos Anjos. Ainda é possível falar com  uma testemunha de tal facto.

 O anonimato do bicho resultava de uma disputa entre o casal dos velhotes que o acolheram. Ela, que ficasse Dragão! Ele, não, Ferrari!… Levaram-se de razões. Sem se dar por chamado, o cachorro virou-lhes as costas. Na pegada de um empregado da Quinta. Tratador de cavalos, freguês diário da taberna da Besteira.

 Ali, debaixo dos alfenheiros, há quinze anos, abrira cova para o Mogli

Movido por um estertor libertário, saltara o muro do quintal e teria lesionado o fígado, contra o empedrado do passeio. Opinou então o veterinário…

Poucas semanas depois, trouxeram o William.

 Bonito cachorro, cor de mel, cruzado: “serra da estrela”, outro tanto de “pastor alemão”. Inteligente, atento a qualquer sinal. Em adulto, a mestiçagem tornou-o atraente para os passantes da rua. Davam-se ao trabalho, os entendidos, de discriminar características de uma e outra raça, tão evidentes na estatura, fisionomia e pelagem. 

D. Maria, a velha empregada, repetia que o animal tinha, além de uma boa figura, maneiras distintas.

 Perfeitamente capaz de cumprir, à risca, o encargo que ela lhe deixava, com uma guloseima, acabado o serviço diário: «Faça favor de guardar as coisas dos donos».

William era sobretudo o cão da avó que o repartia, para umas festinhas, com as netas. «Os cães também são gente, meninas! »E agora, como vão elas aceitar que o animal chegou ao fim? Ainda bem que não assistiram à agonia.

Abrir-lhe cova revelou-se muito mais difícil do que para qualquer dos outros. Ai o tempo! Foi preciso cortar, à machada, inúmeras raízes de alfenheiro, engrossadas por década e meia de vida do William. Tão intrincadas como as voltas deste texto.

 Entretanto, chegara, por correio eletrónico, a resposta à mensagem:

 “Não tens que pedir desculpa. Lamento o motivo que vos impediu de ir. Foi um bom concerto. O salão estava cheio.
Em relação ao William, com certeza que morreu feliz, visto que em vida foi muito amado pelos seus donos.

Um abraço
           Arlete”.


 

  

 

domingo, 23 de outubro de 2022

Escrevivências 2. 17 O dicionário de grego


 

Pedala com velocidade, segurança e juventude. Reconhece o espaço: terra batida, lisa, bermas bem drenadas. Sem ervas nem lixo. 

Regressa: ao fundo, o portão. Pouco lhe falta para sair da Quinta.

 Preocupa-o a bagagem. Aquela encadernação luxuosa vai mal atada ao suporte da bicicleta. Poderia ter vindo a pé, trazido a pasta de cabedal. Nela acondicionaria  o dicionário, sem se preocupar com a integridade do calhamaço. Pára. Ajusta molas e corda ao bojo do livro, evitando a mínima beliscadura.

É preciso passar por casa da A…Onde mora ela ?Hoje. Ontem….Há quantas décadas? Era por  ali!

***

Extravio ou estrago do livro tinham de ser assumidos, a dinheiro. Sublinhara o padre, ao entregar-lho. Não se esquecera de que o ciclista tinha exame de Grego na terça-feira seguinte.    

    Não ficava para a missa?

E por que havia de ficar? Fora ali pelo dicionário, sem qualquer compromisso  religioso. Conforme esclarecera ao fazer o pedido de empréstimo no Seminário.

Seria talvez o único dicionário de grego-francês-grego, na Cidade. A menos que no liceu…

Não, não havia lá nenhum exemplar. A biblioteca era pobre.

   -Mais uma razão para teres cuidado… E vires regularmente à missa!

Sentiu o rubor. Faltaram-lhe as palavras. Salvou-o o sorriso do interlocutor:

  -Até domingo. Assim que o exame terminar, vais logo fazer a devolução à biblioteca do Seminário. Mantém-te calmo durante a prova...

Simpatia.

***

 

Teria sido a última vez que esteve na Quinta dos Anjos.

Recusou todas as outras oportunidades de lá voltar, ao longo de décadas. Mesmo quando, nos anos noventa, o Cunha do Retiro dos Vencidos o apresentou ao guarda da Quinta.

Gostaria de tirar fotografias às casas? Às árvores Sobretudo ao prédio!

Que entrasse sem problemas, bastava mencionar quem o autorizara.


Na manhã seguinte, pegou na máquina e subiu pela ladeira do Cabeço. Sentou-se ao portão. Desta vez, não à espera do autocarro para o Liceu.

No  mesmo sítio onde o Sanchinho…Que seria feito dele?

Desculpa , Sancho. Tem paciência! Não tens vergonha?


Pôs-se a deitar contas à vida. Ao tempo, à alegria breve dos desejos.

De onde lhe chegava John Lennon: Starting Over   ?

Subitamente, sentiu-se liberto da tentação de fazer aquela visita de fotógrafo. Não! Nunca, nunca mais, entraria na Quinta!


Quem é que se lembra hoje do Sanchinho?

Vagamundo das noites . Das noites pouco imaginosas e fartas em vinho. Aliás,do menino D. Sanchinho da Quinta do Mocho. De mão estendida, à saída da missa, na Quinta dos Anjos?  Costela de Fidalgo....   Farpela de pedinte. 

Profetizava a  desgraça dos poderosos. A seca e fogo de pinhais , vinhas e olivedos...

Lembrando aos devotos que rezassem pela alma dos que tinham sido mobilizados  para Angola. Que a guerra estava para durar. Não se deixassem ir em conversas.

Sanchinho louco!

***

Guiou a bicicleta até à casa da A...

Devia-lhe uma justificação, por não ter podido ir ao concerto de Natal. Sempre lhe agradara a simpatia da…

Da Arlete! Isso mesmo! Recordou-se do nome da lourinha, colega da primária.

Em sonhos sempre lhe fugiram os nomes dos figurantes. Sombras recorrentes, mas sempre anónimas!

 E tanto que ele prezava aquele convite da antiga coleguinha. Agora membro de um coro numa igreja de Lisboa.  

Impossível ir. 

(Continua)

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

O CASAMENTO DA NETA

 Isto vai ser um acréscimo  à Escrevivência 16. Para me libertar das sombras do trisa Emídio, sempre apoiado no que ouvi ao meu pai. No seu testemunho de menino, nos recontos que lhe repisaram.

Comecemos pelo casamento da nossa tia-avó Piedade. 

Francisco Hipólito levaria, um sábado,  a filha ao altar, como já tinha   acompanhado a Gertrudes  e a Otília. Ou sejam, as minhas avós materna e paterna. Confiara  a Gertrudes ao Joaquim Marona e a Otília ao António Henriques Beja, um Caréu.

 Piedade casou com João Pena. Oficialmente nesse  sábado.

 Mas as coisas não foram assim  tão simples... !

Estavam de serviço os funcionários do Registo Civil. Pontuais e zelosos no cumprimento republicano das novas incumbências de anotar quem nasceu, se consorciou, desquitou... Ou viajou para a terra do Nada. Porém o Padre...

 Pela Quinta dos Pinheiros, aguardava-se o regresso dos noivos. Aprontava-se a boda. 

Algazarra!

O  rapazio,  postado de sentinela no entroncamento com o macadame, avistara as carroças do lado de Santarém. Irrompeu pela azinhaga abaixo até ao casal do tio Francisco Hipólito. 

- Já aí vêm! Estão a chegar!

- Estão, quase , ti' Emídio!

Serpa Pinto ficara a cuidar das suas ervas . Na certeza de que a neta viria abraçá-lo, mal saltasse do estribo da carroça.  

Piedade ocupara-se sempre do avô. Ia procurá-lo à horta. onde o velho perdia horas em bravatas com os Antigos... E quem eram eles, os Antigos? «Gente que tu já não conheceste, filha!» Acompanhava-o, em garota, para além do valado do casal. Com ele aprendera das ervas e dos pássaros. 

Entraram no pátio as carroças com os noivos.  E ficou no ar a pergunta: Por que vieram com tanta antecedência?

Os noivos sorridentes, abraçados ao Avô Emídio. Palmas! Corrupio para a casa do forno.  As coisas estavam atrasadas. Fosse porque fosse, tinham chegado mais cedo.  

Bem, a mesa já estava posta, à sombra das figueiras.

- Vivam  os noivos! Confeitos! Confeitos!  - berravam rapazes e raparigas. 

Tinha ali "parido a galega"!

E confeitos não lhes faltaram. arremessados às mancheias, para o chão. Que se arrepelassem na disputa da colheita. Até no meio dos bonicos.

Ah! Mas não vamos falar dos comes-e-bebes nem de cantorias, dichotes, vivas e pulhas. Ouçam a música e envolvam o pé  no baile. 

Que até o Avô Emídio deixou o arrocho em que se apoiava, para ir  buscar a noiva. Festa é festa! «Arrebenta aqui a nossa alegria!», berrava uma velhota. 

- Mas o que tens tu rapariga?

- Já vai ver, Avô. 

Não demorou muito a saber-se.

A porta da igreja estava fechada. E  pelo sacristão chegara o recado do padre. Teriam de voltar no ia seguinte e assistir primeiro à missa. Não era isso o combinado!

Ora aqui começava o desentendimento na família Hipólito. O pai repetia que já estavam casados. A Lei! Clareza republicana, asseverava Francisco Hipólito.

 Lei é Lei! Altar é Altar! Não dormiriam juntos, sem a bênção  do Senhor, garantia a mãe da noiva!...

«Isso é o que se vai ver!...», num entredentes do Avô. 

A maioria das vozes apoiava a posição da mãe. Tinham tempo para ir para a cama! A partir do dia seguinte!
    João Pena dava murros de raiva numa parede. Não!
    Piedade, aos soluços, repetia: Não!

E a festa chegava ao fim. A noiva ficaria por  ali, o noivo sairia com os pais. Caso arrumado!

 -Precisas de acalmar, rapaz! Dá cá mais um abraço!
O Avô já arranjara  pretexto para a combina.

A noite desceu sobre  árvores e casas. 
Serpa Pinto ficou no seu banco do costume. Tinha de se encontrar  com as estrelas. De ouvir os noitibós, a coruja e os mochos na escuridão do pinhal da Quinta dos Anjos... 
Esperou.  Ouvia a neta soluçar.

 A casa sossegava. O avô levantou-se.

Na cozinha.
O que fazia ali, perguntou a filha.
Então não estava à vista que fazia um farnelito para a deita? Fossem descansar em paz.  Não lhes  bastava o  desgosto da Piedade?! Só porque o padre roera a corda...

Passou pela adega, deu a volta à casa e entrou na sobeira do seu quarto...
Diziam que passou a noite na tarimba do palheiro. Onde o noivo, noite pesada, se foi encontrar com ele. 
-A Piedade está à  tua espera no meu quarto.  Deixei lá uns preparos .
Uma infusa de água fresca, toalhas... Umas merendeiras com carne... Uma botija de vinho. --Noite feliz, filhos!

     Júlia mal pregou olho. Cedo se apercebeu de que a filha não estava no quarto.

     - Como passaste a noite, minha desavergonhada?
    - Como, minha mãe ?   A desarrumar  as ervas  do Avô!!!

Quando o ervanário voltou ao seu quarto, não queria acreditar na barafunda. Como é que aqueles patifórios lhe tinham conseguido derrubar a prateleira das ervas?
Ora... Que o Destino lhes corresse de feição!

O ervanário repôs em ordem as suas riquezas:
... cidreira, tília, pimenteiras,  poejos ...
 O meu pai alongava sempre a lista do avô Emídio; agrimónia, urgebão, losna...

Mais não sei! Cuidado com as ervas!

 Rio de Mouro, 24 de agosto de 2022

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Escrevivênvias 2.16 Um ervanario vadio, sota na Quinta dos Anjos


 

Pois, Carlos, não se fala mais desse verde dossel de atalantes, o Pinheiro da Júlia Boleeira. De acordo, ficou uma clareira no céu. Mas acabou: nem uma lágrima! Seja pinheiro ou leite derramado.
Vamo-nos então em buscas de ervas humildes, simples, como lhe chamavam os mestres da arte de com elas coloquiar. E não me limito a insignes doutores botânicos.
Da humilíssima erva-buinha, que fazia a Rosa do Ginja invetivar uma hipotética mãe desnaturada: «Deixaste morrer o teu menino com lua/ e tinhas erva-buinha a crescer na tua rua…» Tratar-se-ia da tasneirinha, Senecio vulgaris?
 E saber, se já não tenho a quem perguntar, quando os documentos não me respondem? 
Também sobre a doença da lua não conto com fiável informante. Adultos aluados? Burros e burras? Esclarecidos estamos... Mas bebés definhando com lua?… Pudesse eu consultar por email o meu trisavô Emídio… Que há de ser o tema enviesado de hoje, se … lá chegar.
 Ou partamos em busca do chucha-mel, a que a minha mãe, pragmática sabedora de mezinhas, sem rezas, dava o nome de seca-ossos
Chucha-mel, ou chupa-mel? Dizíamos nós, não era Rebelana? Quando dela espremíamos, flor a flor, uma gotícula de néctar. 
Não penses que não me deu trabalho identificar esta ripícola das nossas valinhas. Aqui t’a deixo: escrofulária-nodosa
Nem mais! Quebrar o viço das folhas frescas, a uma chama viva, e colocar sobre a ferida. Vulnerária. Cuidado com estas memórias tardias. Sobretudo, não me responsabilizo por experiências medicinais.
A arnica?
 Era vê-la salpicar de amarelo os matos do pinhal da Quinta dos Anjos. Também não confirmo nem desminto. Disseram-me.
 Tojo, rosmaninho, tomilho, pelo menos três variedades de cistus ( purpureus, hybridus  e a aromática ladaniferus, isto é a esteva) recordo vividamente. Arnica, não excluo. 
Insistia Fernando Belchior que as estevas tinham ali chegado pela mão do seu pai, trazidas minúsculas sementes, dos lados de Alcanede. De facto, só existiam mesmo no Alto dos Anjos, dentro e fora da Quinta.
Ervas que saravam. 
As mulheres aprendiam a distingui-las nas mondas e ceifas e assim lhe iam interiorizando as virtudes. Sem esquecerem a arruda, que se dava bem nas encostas incultas das Lobas.
Porque os granjeios levavam imparavelmente ao sumiço das espécies. Daí todo o cuidado em localizá-las e colhê-las. Nas matas das quintas, na beira de azinhagas e serventias, na Linha de Água, nos combros da Vala de Cabanos… 
Com a mecanização, a química agrícola, o betão e o alcatroamento foi o fim.
 Olha-me agora para eles a falar em salvaguarda da biodiversidade. ‘tá bem, abelha!
Alguns homens também se tomavam por ervanários. Os ferradores, os alveitares, os boieiros e pastores… 
Mais exato: o meu trisavô Emídio, por alcunha o Serpa Pinto e o meu tio Joaquim Marona. Cada um no seu estilo, veremos.
Em carta de Setembro de 1874, datada de Vale de Lobos[i], o nosso antepassado vizinho, Alexandre Herculano refere a recolha das ervas medicinais como tarefa de subsistência, confiada a rapazotes, da família assalariada rural.
 Barrão entre barrões, infatigável na modernização da sua quinta, ainda lhe restava tempo para voltar a refletir sobre política socioeconómica, desde a época revolucionária de 32-34. No horizonte, esperavam-no apenas mais três  anos de vida. Herculano fazia o balanço final.
Quando eu frequentava a Escola da Portela, oitenta anos após estas cartas de Herculano, muitas das suas observações eram ainda localmente pertinentes. Leia-se a nota final.
Rapazes iam pelos campos na coleta de espécies medicinais. Uma tarde, Coquelim saiu mais cedo do seu primeiro emprego, na ervanária da Viúva Costa Carneiro, para vir indagar, junto da minha mãe, onde encontrar o fel-da-terra, a fim de suprir uma falta na loja. 
De outra vez, Maria Colaço interrompeu a brincadeira do filho, António, o Bisoiro, para que ele lhe fosse às Lobas, por um molho de arruda. 
Que lhe regularia o seu calendário íntimo? Ou porque estava faltando na mistura das defumações? [……]
 ***
Desse modo o meu antepassado Serpa Pinto teria adquirido formação de base e  mestria com as quais, até fechar os olhos, terá zelado pela saúde da vizinhança. À falta de melhor, pois claro. Ficou por esclarecer que ligação teria tido com o Doutor Oliveira Feijão, o senhor da Mafarra.
Trata-se então do meu trisavô Emídio da Silva (1840-d.1919). A sua filha Júlia foi a terceira mulher do meu bisavô Francisco Hipólito e com ele teve a minha avó Otília e a tia-avó Piedade. Além de lhe ter criado também a minha avó Gertrudes, orfã do segundo casamento.   

Este trisa Emídio chegou muito tardiamente ao meu conhecimento. Já por finais dos anos oitenta. Quem era a pessoa mais antiga da família, na lembrança dos meus pais? O seu bisavô Emídio, adiantou o meu pai.
  Emídio da Silva servira até muito tarde, como sota, na Quinta dos Anjos. Sota era posto na hierarquia de boieiro. Logo abaixo do maioral, o responsável pelo trato e labor do gado. Só recentemente, com a Maria Alzira aprendi um pouco mais sobre tal personagem. Que a nossa amiga dá como chegado ao cargo de abegão.
 Vinha-lhe a alcunha do hábito de, à primeira maleita de pessoa ou animal, virar costas, muitas vezes sem dizer água vai, e perder-se tempos infinitos na busca de ervas curativas. Alguém, lido em notícias das explorações africanas do major Alexandre Serpa Pinto, viu, naquelas andanças estouvadas do boieiro, coisa semelhante a Como eu atravessei África do Atlântico ao Mar Indico, viagem de Benguela à contra-costa…
Meu pai representava-o muito tropeço, em constante volteio pela Quinta dos Pinheiros e Quinta dos Anjos movido pela preocupação de se fornecer de ervas. Selecionava, secava, emolhava e sempre ia vendendo, para os últimos copitos. Escorropichados na taberna de uma irmã, estabelecida onde depois se veio a instalar a mercearia do Melro. 
Guardava as suas medicinas penduradas nas paredes e no teto do quartito que o genro lhe reservara. E garantia que ali eram tão boas ou melhores que na botica. 
Moravam na Quinta dos Pinheiros, no foro onde depois foi o “Bairro Azul”.
Não me alongo mais sobre  meu avô Serpa Pinto. Voltarei, prometo.


[i] “No actual estado de cousas, o ensino obrigatorio não passa de mais um flagello para a pobre familia obreira, que lhe opporá constantemente uma resistencia passiva, mas invencivel. Afigura-se-me que toca as raias da crueldade dizer—«manda á escola teus filhos»—ao homem que habitualmente dorme vestido na esteira de tabúa, na casa de telha vã, onde, se géa, tiritam de frio elle, a mulher e os filhos, porque a roupa falta; que, se chove, não tem fato para mudar, e ás vezes nem sequer lenha para o enxugar; cuja alimentação é de ordinario ruim, quando não insufficiente; e que, como se isto não bastasse, sente com frequencia apertar-se-lhe o coração ao dizer-lhe o lavrador, no sabbado: «Para a semana não ha que fazer.»
 D’esses filhos que lhe pedem para a escola, um, dois, os mais velhos, são pastores ou ajudas; sustenta-os, dá-lhes agasalho o lavrador, e os seus pequenos salarios mais de uma vez vão supprir esta ou aquella falta urgente da familia: outro leva a comida ao pai, que trabalha a um ou dois kilometros de distancia, o que facilita á mãi exercer algum mister retribuido: os de seis a nove ou dez annos discorrem descalços pelas estradas ajunctando nas pequenas cestas os excretos que na vespera ahi deixou o transito dos animaes, miseravel industria, que, todavia, no fim do anno produz o valor de alguns cruzados, que resolvem uma ou mais difficuldades da dura vida do obreiro: outro, pouco maior, vai á fonte, á lenha, ao recado; chamam-no para guardar aves domesticas, para colher ervas ou flores medicinaes, para afugentar os passaros que damnam os fructos ou as searas, para dez ou para vinte serviços analogos.
 
 E todos esses serviços tem uma retribuição, que se incorpora nos recursos da familia e lhe cerceia o numero das privações. É humano, é justo; digo mais, é moral aggravar a miseria do trabalhador, tornar mais escura a noite do seu viver em nome da luz interior? Bem desejaria eu tambem tecer a minha olympica á escola obrigatoria: as phrases, os periodos, as estrophes andam já vasadas em fôrmas: basta haver novidade na invenção das suturas. Veda-m’o a consciencia. Esperarei que ou a escola se ageite a estas condições da familia obreira, o que vejo longe, ou que, melhorada a situação d’essa familia, a escola deixe de significar para ella um intoleravel imposto.”
 In The Project Gutenberg EBook of Opúsculos por Alexandre Herculano – Tomo IV by Alexandre Herculano, http://www.gutenberg.org/cache/epub/17177/pg17177.html
25 novembro 2010