Aquele francês levou-me a palma, na tabacaria do hotel. Em Marraquexe.
Na véspera, tinha perguntado à empregada se me arranjava um livro de Tahar Ben Jelloun. Que voltasse na manhã seguinte. Teria o livro, ser-lhe-ia fácil mandar vi-lo de uma livraria do centro da Cidade. Tomou nota do título.O autor não era muito procurado pelos turistas, ali no hotel. Mas, se não era excessiva curiosidade da sua parte, a que se devia o meu interesse? Sabia eu que as jovens marroquinas devoravam as suas páginas?
Traziam-lhes a ideia de libertação. Da falocracia de pais, irmãos, maridos, namorados... mas também, da repressão uterina de mães e avós, que não é flor do Jardim das Delícias!
«Sonham com um companheiro que as ame, deixando-lhes intocável a dignidade que Monsieur Ben Jalloun insufla nas suas personagens femininas. Sabe, só agora a maioria das nossas meninas começa a reclamar amor para o casamento.»
Muito me ensinava a empregada da tabacaria. Em Portugal, sim sou português, o vizinho do norte, já tudo tinha mudado, neste domínio. As mulheres, no salto de uma geração, ficaram senhoras de si. A virgindade, por exemplo, deixara de ser aquela obsessão... E a rapariga da tabacaria contou-me das mães marroquinas a ter de garantir aos pretendentes genros que o corpo das filhas se mantém igualzinho ao caroço da tâmara... Sorrimos.
E mais não diria eu à jovem da tabacaria, embora não me faltasse vontade, atendendo ao sugestivo esconde-esconde da sua djalaba... Sentiria ela o calor da manhã, por baixo daquela leve drapagem de seda branca?
Não lhe explicara ainda o motivo da minha preferência pelo livro do escritor marroquino. Havia pouco a dizer. Apenas lera um artigo dele, num Courier da UNESCO. Precisamente, num número especial, sobre o Amor. Ela também lera. A revista vendia-se na tabacaria. A outra razão, foi ter tido um falso encontro com o livro, numa livraria em Paris. O título seduzira-me do fundo de uma montra. Mas era domingo, a loja estava fechada, e eu tinha mais em que pensar. Bem vistas as coisas, já lá iam dois anos. O livro perdera a novidade. «Ah! mas não se esqueceu mais do título?...» Que bonitos olhos berberes!
Na manhã seguinte, antes de abandonar o hotel, para o meu circuito turístico de Marraquexe, parei na tabacaria. No entanto, a empregada, agora de coleantes jeans e fresquíssimo top, decepcionou-me. Não pela graciosidade, confirmada pela toilete alternativa, mas por ter vendido o livro a um senhor francês. A um francês?! Não me diga que nos confundiu? De modo nenhum. Se alguma coisa tinha em comum eram os cabelos brancos. Queria ela dizer grisalhos, eu que desculpasse. Por ter ficado sem o livro prometido? Não, por ela ter falado em cabelos brancos. Ora!...
Fora por um maço de Gauloises, o Francês, topara o livro em cima do balcão, folheara, encantara-se com duas ou três passagens... Em resumo, quase exigira que lho vendesse. Queria voltar ao quarto do hotel, despertar a companheira com a leitura de algumas frases apaixonadas. Então, e só por isso, você deixou ir o livro? É que ele confidenciou estar em verdadeira lua-de-mel, que a sua copine é jovem, sonhadora... Completei para comigo: E o gajo já não tem paleio... Au revoir, M’moiselle!
Meia hora depois, encontrei um cinquentão derretido com uma pré-balzaquiana, no hall do hotel. Saboreavam, tête-à tête, o ‘meu livro’. Lá estava o título a tentar-me outra vez, como na montra da livraria parisiense. A leitora não era de menor tentação. Ombros esplendorosos. Que inveja não devia fazer à maioria das embiocadas marroquinas.
Praça Jemaa el Fna, duas horas mais tarde. Com toda a sua magia. Mesmo que ficasse aqui o resto dos meus dias, nunca alcançaria o tesouro cultural destas gentes. Deixa lá os japones gastar quilómetros de filme, desfruta com os sentidos. Contadores de histórias rodeados de garotos, que lhes puxam pela língua; actores de teatro popular, exibidores de cobras e macacos, aguadeiros policromos e estridentes, vendedores de tudo e de nada...
De repente, o calígrafo de escrita voadora. Com seus frascos de henê... Algumas jovens turistas deixavam-se tatuar na fronte, nas mãos... Como as mulheres berberes. Mensagens de desejo, anúncio de coração livre... Aquilo passa, a tinta sai, ao fim de três dias, explicou-me um dos muitos circunstantes, sem parar de mastigar um pau de alcaçuz. E de enxofrar o olho para as clientes do calígrafo. A tinta sai!
Espera aí, mas... aquele é o Francês mais a estátua semovente, que andam a excitar-se com o ‘meu livro’...
Exacto. A jovem também pretendia oferecer-se ao afago do calígrafo. Delirante, sentou-se no banco, à frente do artista. Parece que tinham combinado lavrar, a henê, uma mensagem, na sua pele apetecível. Ela oferecia o ombro, imóvel, cheia de sol. Redobraram os olhares lazarentos dos machos marroquinos, apertando o círculo.
O artista e o companheiro da jovem procuravam qualquer coisa no livro. No meu livro! Ia o calígrafo copiar palavras de Ben Jelloun? Evidente. Trato feito, cálamo em voo tangente. Aproximei-me para ler.
Querias! Um dístico em caracteres árabes torneava o ombro da jovem. O que estaria ali escrito? Traduziu-me o mastigador de alcaçuz: … est toujours le dernier.
Do título do livro de Tahar Ben Jelloun: Le premier amour est toujours le dernier. O livro que eu não conseguira comprar em Paris.
Andei o resto do dia, em Marraquexe, a ironizar sobre a paixão grisalha do Francês. Depois, apaguei o episódio, durante mais alguns anos... A tinta sai!
Sem procurar, encontrei, ontem, o livro de Ben Jelloun, na Fnac do Chiado. Afinal era de contos, e não poesia como eu julgava. Agora ou nunca. Antes de me dirigir à caixa, reparei, não estivessem ali o Francês e a sua tatuada copine...
Comprado! Leio e releio: Le premier amour est toujours le dernier... Et le dernier est toujours rêvé...E último é uma sonho, uma sombra, do primeiro. diria eu.
Sintra, Novembro de 2000