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sábado, 29 de outubro de 2022

Escrevivências 2.18 A de Arlete

 

 (Continuação)

 Alívio. O gorjeio dos verdelhões, debicando as bagas dos alfenheiros, libertou-o daquele sonho descabelado. Isso: coisa sem-pés-nem-cabeça.

 Disparate!

 Quando é que alguma vez ele recebeu um dicionário, trazido pelo padre que ia dizer missa à capela da Quinta dos Anjos?

 A bicicleta?... 

E que veio ali fazer o Sancho da Quinta do Mocho?

Quantas fábricas e fabriquetas cresceram e faliram nos terrenos daquela quinta.... Nada ficou do primitivo espaço agrícola.

 Que noite! 

Embora, de facto, tenha faltado ao concerto…E por isso devia uma justificação à A... 

Cinquenta anos mais tarde, na Academia das Ciências. Coros de Natal. Impedimento de última hora. Cancelou-lhe a ida.

«Grd desgosto, qda A. Morreu William, dps conto», acabou por lhe enviar em SMS. Certo de que ela, a preparar-se para a atuação, já não tinha podido atender o telemóvel

 ***

Deitou mãos à enxada para a inadiável tarefa. Ainda não  fora das suas forças, a calcular pelo procedimento das outras vezes.

 Ali, mais palmo menos côvado, ao fundo do quintal, enterrava amigos muito especiais. Junto à sebe dos alfenheiros.

 A Neige que mudara a família para aquela casa, por sugestão do Artur. 

O Pantufa, tirado de uma série infantil e da primeira ninhada da NeigeTinha um gémeo, levado para a Besteira. 

O Camarada, perdigueiro dos tempos da Revolução… Do reboliço! 

Depois, nos chochos anos oitenta, o Yuppie, emproado, com farfalhuda gravata castanha. De quem o enfezado Idée fixe fazia gato-sapato, …

Sherpa… o Mogli... Nomes dados pelos filhos, então  escoteiros.

 Quase quarenta anos, de vida e de cães naquela casa.

 Nota marginal: o gémeo do Pantufa, de que nunca se conheceu  nome nem apelido, acabaria por desaparecer nos matos da Quinta dos Anjos. Ainda é possível falar com  uma testemunha de tal facto.

 O anonimato do bicho resultava de uma disputa entre o casal dos velhotes que o acolheram. Ela, que ficasse Dragão! Ele, não, Ferrari!… Levaram-se de razões. Sem se dar por chamado, o cachorro virou-lhes as costas. Na pegada de um empregado da Quinta. Tratador de cavalos, freguês diário da taberna da Besteira.

 Ali, debaixo dos alfenheiros, há quinze anos, abrira cova para o Mogli

Movido por um estertor libertário, saltara o muro do quintal e teria lesionado o fígado, contra o empedrado do passeio. Opinou então o veterinário…

Poucas semanas depois, trouxeram o William.

 Bonito cachorro, cor de mel, cruzado: “serra da estrela”, outro tanto de “pastor alemão”. Inteligente, atento a qualquer sinal. Em adulto, a mestiçagem tornou-o atraente para os passantes da rua. Davam-se ao trabalho, os entendidos, de discriminar características de uma e outra raça, tão evidentes na estatura, fisionomia e pelagem. 

D. Maria, a velha empregada, repetia que o animal tinha, além de uma boa figura, maneiras distintas.

 Perfeitamente capaz de cumprir, à risca, o encargo que ela lhe deixava, com uma guloseima, acabado o serviço diário: «Faça favor de guardar as coisas dos donos».

William era sobretudo o cão da avó que o repartia, para umas festinhas, com as netas. «Os cães também são gente, meninas! »E agora, como vão elas aceitar que o animal chegou ao fim? Ainda bem que não assistiram à agonia.

Abrir-lhe cova revelou-se muito mais difícil do que para qualquer dos outros. Ai o tempo! Foi preciso cortar, à machada, inúmeras raízes de alfenheiro, engrossadas por década e meia de vida do William. Tão intrincadas como as voltas deste texto.

 Entretanto, chegara, por correio eletrónico, a resposta à mensagem:

 “Não tens que pedir desculpa. Lamento o motivo que vos impediu de ir. Foi um bom concerto. O salão estava cheio.
Em relação ao William, com certeza que morreu feliz, visto que em vida foi muito amado pelos seus donos.

Um abraço
           Arlete”.


 

  

 

domingo, 23 de outubro de 2022

Escrevivências 2. 17 O dicionário de grego


 

Pedala com velocidade, segurança e juventude. Reconhece o espaço: terra batida, lisa, bermas bem drenadas. Sem ervas nem lixo. 

Regressa: ao fundo, o portão. Pouco lhe falta para sair da Quinta.

 Preocupa-o a bagagem. Aquela encadernação luxuosa vai mal atada ao suporte da bicicleta. Poderia ter vindo a pé, trazido a pasta de cabedal. Nela acondicionaria  o dicionário, sem se preocupar com a integridade do calhamaço. Pára. Ajusta molas e corda ao bojo do livro, evitando a mínima beliscadura.

É preciso passar por casa da A…Onde mora ela ?Hoje. Ontem….Há quantas décadas? Era por  ali!

***

Extravio ou estrago do livro tinham de ser assumidos, a dinheiro. Sublinhara o padre, ao entregar-lho. Não se esquecera de que o ciclista tinha exame de Grego na terça-feira seguinte.    

    Não ficava para a missa?

E por que havia de ficar? Fora ali pelo dicionário, sem qualquer compromisso  religioso. Conforme esclarecera ao fazer o pedido de empréstimo no Seminário.

Seria talvez o único dicionário de grego-francês-grego, na Cidade. A menos que no liceu…

Não, não havia lá nenhum exemplar. A biblioteca era pobre.

   -Mais uma razão para teres cuidado… E vires regularmente à missa!

Sentiu o rubor. Faltaram-lhe as palavras. Salvou-o o sorriso do interlocutor:

  -Até domingo. Assim que o exame terminar, vais logo fazer a devolução à biblioteca do Seminário. Mantém-te calmo durante a prova...

Simpatia.

***

 

Teria sido a última vez que esteve na Quinta dos Anjos.

Recusou todas as outras oportunidades de lá voltar, ao longo de décadas. Mesmo quando, nos anos noventa, o Cunha do Retiro dos Vencidos o apresentou ao guarda da Quinta.

Gostaria de tirar fotografias às casas? Às árvores Sobretudo ao prédio!

Que entrasse sem problemas, bastava mencionar quem o autorizara.


Na manhã seguinte, pegou na máquina e subiu pela ladeira do Cabeço. Sentou-se ao portão. Desta vez, não à espera do autocarro para o Liceu.

No  mesmo sítio onde o Sanchinho…Que seria feito dele?

Desculpa , Sancho. Tem paciência! Não tens vergonha?


Pôs-se a deitar contas à vida. Ao tempo, à alegria breve dos desejos.

De onde lhe chegava John Lennon: Starting Over   ?

Subitamente, sentiu-se liberto da tentação de fazer aquela visita de fotógrafo. Não! Nunca, nunca mais, entraria na Quinta!


Quem é que se lembra hoje do Sanchinho?

Vagamundo das noites . Das noites pouco imaginosas e fartas em vinho. Aliás,do menino D. Sanchinho da Quinta do Mocho. De mão estendida, à saída da missa, na Quinta dos Anjos?  Costela de Fidalgo....   Farpela de pedinte. 

Profetizava a  desgraça dos poderosos. A seca e fogo de pinhais , vinhas e olivedos...

Lembrando aos devotos que rezassem pela alma dos que tinham sido mobilizados  para Angola. Que a guerra estava para durar. Não se deixassem ir em conversas.

Sanchinho louco!

***

Guiou a bicicleta até à casa da A...

Devia-lhe uma justificação, por não ter podido ir ao concerto de Natal. Sempre lhe agradara a simpatia da…

Da Arlete! Isso mesmo! Recordou-se do nome da lourinha, colega da primária.

Em sonhos sempre lhe fugiram os nomes dos figurantes. Sombras recorrentes, mas sempre anónimas!

 E tanto que ele prezava aquele convite da antiga coleguinha. Agora membro de um coro numa igreja de Lisboa.  

Impossível ir. 

(Continua)