Alívio. O gorjeio dos verdelhões, debicando as
bagas dos alfenheiros, libertou-o daquele sonho descabelado. Isso: coisa sem-pés-nem-cabeça.
Disparate!
Quando é que alguma vez ele recebeu um dicionário, trazido pelo padre que ia dizer missa à capela da Quinta dos Anjos?
A bicicleta?...
E que veio ali fazer o Sancho da Quinta do Mocho?
Quantas fábricas e fabriquetas cresceram e faliram nos terrenos daquela quinta.... Nada ficou do primitivo espaço agrícola.
Que noite!
Embora, de facto, tenha faltado ao concerto…E
por isso devia uma justificação à A...
Cinquenta anos mais tarde, na Academia das Ciências. Coros
de Natal. Impedimento de última hora. Cancelou-lhe a ida.
«Grd desgosto, qda A. Morreu William, dps
conto», acabou por lhe enviar em SMS. Certo de que ela, a
preparar-se para a atuação, já não tinha podido atender o telemóvel
***
Deitou mãos à enxada para a inadiável tarefa. Ainda não fora das suas forças, a calcular pelo procedimento das outras vezes.
Ali, mais palmo menos côvado, ao fundo do quintal, enterrava amigos muito
especiais. Junto à sebe dos alfenheiros.
A Neige que mudara a família para aquela casa, por sugestão do Artur.
O Pantufa, tirado de uma série infantil e da primeira ninhada da Neige. Tinha um gémeo, levado para a Besteira.
O Camarada, perdigueiro dos tempos da Revolução… Do reboliço!
Depois, nos chochos anos oitenta, o Yuppie, emproado, com farfalhuda gravata castanha. De quem o enfezado Idée fixe fazia gato-sapato, …
O Sherpa… o Mogli... Nomes dados pelos filhos, então escoteiros.
Quase quarenta anos, de vida e de cães naquela casa.
Nota marginal: o gémeo do Pantufa, de que nunca se conheceu nome nem apelido, acabaria por desaparecer nos matos da Quinta dos Anjos. Ainda é possível falar com uma testemunha de tal facto.
O anonimato do bicho resultava de uma disputa entre o casal dos velhotes que o
acolheram. Ela, que ficasse Dragão! Ele, não, Ferrari!…
Levaram-se de razões. Sem se dar por chamado, o cachorro virou-lhes as costas.
Na pegada de um empregado da Quinta. Tratador de cavalos, freguês diário da
taberna da Besteira.
Ali, debaixo dos alfenheiros, há quinze anos, abrira cova para o Mogli.
Movido por um estertor libertário, saltara o
muro do quintal e teria lesionado o fígado, contra o empedrado do passeio. Opinou então o
veterinário…
Poucas semanas depois, trouxeram o William.
Bonito cachorro, cor de mel, cruzado: “serra da estrela”, outro tanto de “pastor alemão”. Inteligente, atento a qualquer sinal. Em adulto, a mestiçagem tornou-o atraente para os passantes da rua. Davam-se ao trabalho, os entendidos, de discriminar características de uma e outra raça, tão evidentes na estatura, fisionomia e pelagem.
D. Maria, a velha empregada, repetia que o animal tinha, além de uma boa figura, maneiras distintas.
Perfeitamente capaz de cumprir, à risca, o encargo que ela lhe
deixava, com uma guloseima, acabado o serviço diário: «Faça favor de guardar as
coisas dos donos».
William era sobretudo o
cão da avó que o repartia, para umas festinhas, com as netas. «Os cães também
são gente, meninas! »E agora, como vão elas aceitar que o animal chegou ao
fim? Ainda bem que não assistiram à agonia.
Abrir-lhe cova revelou-se muito mais difícil do que
para qualquer dos outros. Ai o tempo! Foi preciso cortar, à machada, inúmeras
raízes de alfenheiro, engrossadas por década e meia de vida do William.
Tão intrincadas como as voltas deste texto.
Entretanto, chegara, por correio eletrónico, a
resposta à mensagem:
“Não tens que pedir desculpa.
Lamento o motivo que vos impediu de ir. Foi um bom concerto. O salão
estava cheio.
Em relação ao William, com certeza que morreu feliz, visto que em vida foi
muito amado pelos seus donos.
Um abraço
Arlete”.