A SEMENTEIRA
Na Quinta dos Anjos. Manhã de Inverno, talvez 1948-49. Frio e nevoeiro.
A Ilda Direitinho, ainda solteira, era , por morte da mãe, Justina, a governanta da casa. Mandou o irmão Fernando levar o almoço ao outro irmão, mais velho, o Mário Olho-de-Vidro, que andava na sementeira do trigo.
Os Direitinhos viviam num quintal colado ao nosso. De muito pequeno, perdido-e-achado, era com eles que me distraía. E se surgia a oportunidade, logo me punha a caminho com aquela boa gente.
Com o Fernando, entrámos na Quinta, para o lado da eira, na folha da Mafarra.
De onde guardei, até hoje, imagens da grande lavoura do Caldas. Aliás do senhor Caldas! Respeitinho era bonito!
O trator, sempre conduzido pelo Joaquim Caetano, várias juntas de bois que gradavam, dois semeadores…
Parecia que a névoa apagava os semeadores, sempre que se afastavam ; para os devolver, nítidos, tempo depois. Quando retomavam a nossa direção e vinham reabastecer o saco sementeiro.
Enquanto eu os não avistava, disse-me o Fernando....
- Chamavam-lhe o Palã. Por ser claro e diverso na conversa. Paleio! -
... que aqueles homens andavam a semear trigo, nas nuvens!
Não me convenceu! Então, chamou-me perto dos bois e mostrou-me o vapor saindo-lhes das narinas. Aquele “fumo”, o nevoeiro e as nuvens eram tudo a mesma coisa, explicou. Bolinhas de água!
Encolhi os ombros, indiferente a tanta sabedoria .
Empurrado pela friagem da manhã aproximei-me de uma fogueira. Alguém pusera pinhas ao calor, para soltar os pinhões. Atraído pelo aroma, tentei forçar a abertura das escamas de uma infrutescência.
Ai! Queimei-me. Pior, fiquei com as mãos manchadas de resina, enegrecida pela poinha negra das sementes. E agora?
Obrigaram-me a retomar o caminho de casa, de braços abertos, para não sujar a roupa.
Foi a Ilda que, com um trapo embebido em petróleo, escorrido da torcida do candeeiro, me fez a primeira limpeza. Incompleta, para poupar.
O petróleo continuava caro e escasso. O candeeiro era um luxo. Acendia-se excecionalmente, naquela casa. Bastava a candeia, aproveitando o azeite das frituras.
De mãos limpas, já podia seguir para casa. Para ouvir ralhete por ter mexido onde não devia.
Como se as crianças fossem estátuas!
O Casamento
A Ilda e o Joaquim Caetano casaram na capela dos Anjos. Fui assistir, a convite da noiva. A minha mãe , fazendo das tripas coração, confiou-me ao Coquelim.
Com o encargo de me trazer de volta logo que a cerimónia acabasse. Que tivéssemos juizinho, sobretudo ao atravessar a estrada, no Alto da Portela. Não era a primeira vez que me chamavam a atenção para o perigo de atropelamento naquela passagem.
Eu andaria pelos cinco anos, o Coquelim teria aí uns dez.
Após a cerimónia, o meu acompanhante esqueceu-se do compromisso. Virou costas e partiu, rumo à Besteira, com um bando de catraios mirones: um Toino Rocha, o Pampo e o Luís Pedro do Pagante , o Toino Bacalhau, o Nicolau da Sapata… Ah! E o Rebelana!
Chegam, por hoje... Malta brava. Sombras, não mais.
No alvoroço de calaceirar, sem convite, o copo-de-água. Sempre haviam de lhes atirar algumas sobras. Uns nacos de pão com carne. umas aparas dos bolos-ferradura, confeitos...
Corriam pela ladeira do Cabeço abaixo. Eu protestava: que não me deixassem para trás! Em vão. Sabiam que não me ia perder Por assim dizer, já estava em terreno da minha família.
Quando a minha mãe me perguntou, se tinha ido dar o beijinho aos noivos, se gostara do que vira, respondi pela positiva. E avancei um pedido de esclarecimento:
«Ó mãe, o que é que o Coquelim disse que os noivos vão fazer esta noite?»
Não fui respondido!!
E ainda ouvi ralhar.