Pesquisar neste blogue

sexta-feira, 29 de abril de 2022

ESCREVIVÊNCIAS 2.12 Arranjei um amigo

 Saltei o valado!

Casal dos Labaças. Ou das labaças?  Já não importa ir procurar. Sítios que se deliram no meu imaginário. Sítios do nunca mais. Que alívio!

Era por ali a propriedade dos meus  avós Maronas, como já disse. 

Foi por ali e por lá comecei eu a ser criança. A sentir os limites do espaço e o apelo da debandada....À menor oportunidade.


Uma tarde, antes do casamento, da Ilda Direitinho com o  Joaquim Caetano.

O que era aquilo?

Saltei o valado da Texugueira, intrigado pelo ruído do tractor. Caminhei ao longo do rego da charrua, até que o Joaquim Caetano me descobriu, parou e convidou a trepar para a máquina. Dei uma volta, encantadora. Guardo dessa viagem um odor estranho de  leiva e combustível . Irrepetível!

 De repente, vejo a minha avó Gertrudes, a gesticular, no sítio da Oliveira Santíssima. Do palheiro dos bois, no casal dos meus avós, alguém me vira fazer aquela incursão na Texugueira. 

Rapazinho em fuga? Era só o que faltava!

Fui reencaminhado para os limites do terraço. Entre a casa-de-fora e a casa do forno. Que me contentasse com os relinchos, os mugidos, os cheiros dos animais.

Deixá-lo!

 Tinha acabado de confirmar um amigo. 

O Joaquim Caetano!

***

..

 


terça-feira, 26 de abril de 2022

ESCREVIVÊNCIAS 2.11 Os Direitinhos

A SEMENTEIRA

Na Quinta dos Anjos. Manhã de Inverno, talvez 1948-49. Frio e nevoeiro. 

A Ilda Direitinho, ainda solteira, era , por morte da mãe, Justina, a governanta da casa.  Mandou o irmão Fernando levar o almoço ao outro irmão, mais velho, o Mário Olho-de-Vidro, que andava na sementeira do trigo. 

Os Direitinhos viviam num quintal colado ao nosso. De muito pequeno, perdido-e-achado, era com eles que me distraía. E se surgia a oportunidade, logo me punha a caminho com aquela boa gente.

 Com o Fernando, entrámos  na Quinta, para o lado da eira, na folha  da Mafarra. 

De onde guardei, até hoje, imagens  da grande lavoura do  Caldas. Aliás do senhor Caldas! Respeitinho  era bonito!

 O trator, sempre conduzido pelo Joaquim Caetano, várias juntas de bois que gradavam, dois semeadores…

Parecia que a névoa apagava os semeadores,  sempre que se afastavam ; para os devolver,  nítidos, tempo depois. Quando retomavam a nossa direção e vinham reabastecer o saco sementeiro.

Enquanto eu os não avistava, disse-me o Fernando....

- Chamavam-lhe o Palã. Por ser claro  e diverso na conversa.  Paleio! -

... que aqueles homens andavam a semear trigo, nas nuvens!

Não me convenceu! Então, chamou-me perto  dos  bois e mostrou-me o vapor saindo-lhes das narinas. Aquele “fumo”, o nevoeiro e as nuvens eram tudo a mesma coisa, explicou. Bolinhas de água! 

Encolhi os ombros, indiferente a tanta sabedoria .

Empurrado pela friagem da manhã aproximei-me de uma fogueira. Alguém pusera pinhas ao calor, para soltar os pinhões. Atraído pelo aroma, tentei forçar a abertura das escamas de uma infrutescência.

 Ai! Queimei-me. Pior, fiquei com as mãos manchadas de resina, enegrecida pela poinha negra das sementes. E agora? 

Obrigaram-me a retomar o caminho de casa, de braços abertos, para não sujar a roupa. 

Foi a Ilda que, com um trapo embebido em petróleo, escorrido da torcida do candeeiro, me fez a primeira limpeza. Incompleta, para poupar.

O petróleo continuava caro e escasso.  O candeeiro era um luxo. Acendia-se excecionalmente, naquela casa. Bastava a candeia, aproveitando o  azeite  das frituras.

 De mãos limpas, já podia seguir para casa. Para ouvir ralhete por ter mexido onde não devia. 

Como se as crianças fossem estátuas!



O Casamento

A Ilda e o Joaquim Caetano casaram na capela dos Anjos. Fui assistir, a convite da noiva.  A minha mãe , fazendo das tripas coração,  confiou-me ao Coquelim.

 Com o encargo de me trazer de volta logo que a cerimónia acabasse. Que tivéssemos  juizinho, sobretudo ao atravessar a estrada, no Alto da Portela. Não era a primeira vez que me chamavam a atenção para o perigo de atropelamento naquela passagem. 

Eu andaria pelos cinco anos, o Coquelim teria aí uns dez. 

Após a cerimónia, o meu acompanhante esqueceu-se do compromisso. Virou costas e partiu, rumo à Besteira, com um bando de catraios mirones: um Toino Rocha, o Pampo e o Luís Pedro do Pagante , o Toino Bacalhau, o Nicolau da Sapata… Ah! E o Rebelana

Chegam, por hoje... Malta brava. Sombras, não mais.

 No alvoroço de calaceirar, sem convite, o copo-de-água. Sempre haviam de lhes atirar algumas sobras. Uns nacos de pão com carne. umas aparas dos bolos-ferradura, confeitos...

Corriam pela ladeira do Cabeço abaixo. Eu protestava: que não me deixassem para trás! Em vão. Sabiam que não me ia perder Por assim dizer, já estava em terreno da minha família.

 Quando a minha mãe me perguntou, se tinha ido dar o beijinho aos noivos, se gostara do que vira, respondi pela positiva. E avancei um pedido de esclarecimento:

 «Ó mãe, o que é que o Coquelim disse que os noivos vão fazer esta noite?» 

Não fui respondido!! 

E ainda ouvi ralhar.

sábado, 23 de abril de 2022

BASILISCO!...

Não seria correto continuar na companhia do tal Badalisco da Quinta dos Anjos, sem um breve e já tardio esclarecimento.

O termo certo é basilisco!  Por corruptela se chegou a badalisco. Ou se preferiu usar basalisco

Esta alteração fonética vai de paralelo com a mudança operada na onomástica, em que o nome de Basilisa passaria a soar popularmente como Badalisa . Ocorrência  registada na  região saloia. A propósito, podem ser referidos a capela  e o culto a Santa Basilisa e São  Julião, na Ericeira.

As notas abaixo completam esta clarificação. Não sendo portanto necessário perder mais tempo.

Só falta acrescentar que a reprodução da peça,  que foi pertença da Capela da Senhora dos Anjos,  aproximar-se-ia da imagem de Melchior Lorck. Se a memória não me falha.

Reconhecido pela vossa atenção.

1. « basilisco simbolizava a figura alegórica da morte, do medo, do diabo, do pecado ou do Anticristo. Entre os pecados mortais, em que o basilisco é muitas vezes comparado estão a cobiça, mas também a inveja e a arrogância. Jesus Cristo é representado muitas vezes esmagando o basilisco.»  in Google

2.


Melchior Lorck: Basilischus (basilisco), Radierung, 1548

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.



terça-feira, 5 de abril de 2022

ESCREVIVÊNCIAS 2.10 A bisa Perpétua

 A bisa Perpétua

Deixem acrescentar que o Badalisco dos Anjos era tão antigo na sabedoria da minha mãe como tudo o que, na infância, ela aprendeu com a sua avó paterna, Perpétua.

Perpétua Azevedo não viera de Alcanhões, para a Quinta, de mãos a abanar. Trazia-as ocupadas com uma filha de poucas semanas, enquanto na mente lhe laborava uma esperança: ficar ama de leite dos Sampaios, os proprietários antecessores dos Caldas. Perpétua esquivava-se à humilhação da família, por uma gravidez de macho desertor.

 Se Marta subira ao altar de Alcanhões com o seu ventre fecundado, Perpétua virou-lhe as costas na procura de um lugar onde a filha não ouvisse a vergonha de um tal ingresso neste mundo.

A figura desta mulher tinha, para a minha mãe, uma dimensão mítica. Fêmea capaz de construir o seu próprio destino, a avó Perpétua

Na Quinta dos Anjos, veio a jovem Perpétua encontrar dois desempenados moços de lavoura, Jacinto e José Marona. Rapazes de um Manuel da Romeira, Manuel António, já passados pela Quinta da Mafarra, ao que dizem os papéis da Maria Alzira. Com qual dos dois havia Perpétua de ficar, já que ambos não escondiam o desejo de casar com ela, sem se preocuparem com o facto de ter sido usada e pejada.

Perpétua também caíra no agrado dos patrões, que a mantiveram no serviço da casa, quando deixou de amamentar. Não tinha pressa em escolher um dos dois Maronas.

O José era o mais atiradiço. Atribuíam-lhe a fama de sementão de algumas barrigas da Gaia, que lhe ia pela calada da noite aquecer as mantas. Guio-me pelo repertório da minha mãe, muito embora me pareça mais plausível o relato da Maria Alzira, sobre Maronas e Gaios. 

“Filhos do cunhado” e “Filhos do palheiro!”, distinguia a minha bisavó, condoída com a sorte das crianças. Ela lá sabia.

Perpétua Azevedo acabou por casar com o Jacinto Marona.

Uns casando no altar da capela, outros, não muito longe dali, na tarimba do estábulo. Era um "vê se te avias! A maneira mais prática de pôr um fim a estas coisas que, de outro modo, se desejariam para sempre. Enquanto durassem!...

 Destes dois irmãos vêm os Maronas da Portela. Alguns dos Gaios também tomaram o nome de Marona. A mãe Gaia saberia melhor do que ninguém. Ponto final.

Isto há cada uma! Entrei na Quinta dos Anjos para fazer um pedido ao atual proprietário, sobre a conservação da sua propriedade e, agora, não sou capaz de virar costas. 

Como ele ainda não me convidou a sair, volto à minha festa.

Naquela festa dos Anjos, minha mãe limitou-se a ir à missa. À saída da capela, mão habilidosa roubou-lhe um broche de ouro e brilhantes. Ficou inconformada, toda a vida. Embora o meu pai lhe tenha oferecido, assim que as economias o permitiram, uma peça muito semelhante, nunca mais deixou de sentir a afronta. Sempre que a segunda jóia cativava o apreço de alguém, lá vinha a minha mãe lembrar-se do furto. Perdas insubstituíveis!

 E o que  a perda dos objetos comparada com a das pessoas? Badaliscos, joias, alfaias litúrgicas e agrícolas de antanho… Incluo no rol, a propósito, o bico de escamisar da avó Perpétua. Onde é que raios eu o guardei, que lhe perdi o tino? 

Fossem-se os anéis mas ficassem as pessoas! Com a sua memória fresca, o tal  brilhozinho nos olhos e o coração tolerante. Cuidado, viver sempre também cansa, amigo!

E já que isto tem parte de crónica familiar, possa a minha prima Bia, afilhada da minha mãe, gozar-se por muitos anos daquela joia, que a madrinha fez questão em lhe destinar, no momento de partilha dos seus pertences pessoais.

            Não foi a minha mãe a única vítima da festa. Durante a noite, os amigos do alheio tinham levado a caixa registadora do João Melro, merceeiro da Portela, que instalara barraca de comes-e-bebes, no arraial. Tratava-se de uma pequena caixa vermelha de manivela, depressa localizada no meio das tojeiras do pinhal. Vazia!

Acabaram-se os fundos. E por hoje o narrador despede-se, sem cheta.

 Já está habituado, não faz mal.

(C