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domingo, 30 de dezembro de 2012

Esquece, pá!

Curta e inconsistente foi a conversa com o Domingos. Não mostrou a mínima satisfação, por lhe ter ligado, a desejar um Bom Ano, antes parecia aguardar o fim da chamada.
Queixou-se de velhice e desesperança, mais a crise, o roubo nas pensões de reforma. Mais as artroses, o mau funcionamento geral do serviço de saúde, e de todas as   vísceras...Ai! Ai! Ai!

Vamos encontrar um tema de conversa nas rapaziadas de outros tempos? arriscava eu. Balde de água fria: não se lembra,   nem se quer lembrar, de tais antanhos!
-Ó Felício, não contem com a minha memória para nada. Só nevoeiro...

Sabia lá com se chamava o cabreiro! O cabreiro? Que eu perdia tempo com cada coisa. Um cabreiro dos Santos?! Quase há sessenta anos?
-Na sê, pá!
Um que, a Vale de Lobos, atalhava com o rebanho, pela Besteira. A caminho da feira. Paragem obrigatória na nossa taberna.  Franqueava o farnel pelos presentes: bom queijo, puxando à pinga. Não nos coibíamos  de  avançar com o pão, para promover a venda de uns tintos.   E ainda levar o cabreiro a alargar a boca do saco...
-' tá lá?
- 'tou, sim, Felício! Só que se me varreu tudo...Tem dó de mim, não insistas.

Talvez um pormenor te abra a cortina. O teu irmão Rebelana, saboreado o queijo, pedia para se servir dos tetos das cabras. Escolhia-as pela limpeza e volume do amojo, deitava-se no chão, de boca aberta, para sorver o esguicho.  Até fartar. Gabava-se de saber ordenhar todas as fêmeas, mesmo as que muito longe ainda estivessem do aleitamento.
 - Pois. O meu irmão que Deus tem era de apetites...Tinha sempre a goela seca, vinho, aguardente,vinagre, tudo escorria.... Já lá está há vinte anos… Mas olha que até isso se me passou. Cabeça a minha!

A mulher convenceu-o a ir ao médico, pedir medicamentos para a memória. Umas cápsulas... Dinheiro deitado á rua, desistiu. Ao menos poupem-se uns euros.

E das sombras da Guiné, já se teria curado? Pântano atroz, prefiro não  tocar no assunto.

-Cabeça oca, Felício. Não te zangues comigo. Olha: Bom Ano também para ti e família.

E para mim: haverá por aí comprimidos que me curem?
- Esquece, pá - recomenda o Domingos.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Paixão grisalha



Aquele francês levou-me a palma, na tabacaria do hotel. Em Marraquexe.
 Na véspera, tinha perguntado à empregada se me arranjava um livro de Tahar  Ben Jelloun. Que voltasse na manhã seguinte. Teria o livro, ser-lhe-ia fácil mandar vi-lo de uma livraria do centro da Cidade. Tomou nota do título.O autor não era muito procurado pelos turistas, ali no hotel. Mas, se não era excessiva curiosidade da sua parte, a que se devia o meu interesse? Sabia eu que as jovens marroquinas devoravam as suas páginas?
Traziam-lhes a ideia de libertação. Da falocracia de pais, irmãos, maridos, namorados... mas também, da repressão uterina de mães e avós, que não é flor do Jardim das Delícias!
 «Sonham com um companheiro que as ame, deixando-lhes intocável a dignidade que Monsieur Ben Jalloun insufla nas suas personagens femininas. Sabe, só agora a maioria das nossas meninas começa a reclamar  amor para o casamento.»
Muito me ensinava a empregada da tabacaria. Em Portugal, sim sou português, o vizinho do norte, já tudo tinha mudado, neste domínio. As mulheres, no salto de uma geração, ficaram senhoras de si. A virgindade, por exemplo, deixara de ser aquela obsessão... E a rapariga da tabacaria contou-me das mães marroquinas a ter de garantir aos pretendentes genros que o corpo das filhas se mantém igualzinho ao caroço da tâmara... Sorrimos.
E mais não diria eu à jovem da tabacaria, embora não me faltasse vontade, atendendo ao sugestivo esconde-esconde da sua djalaba... Sentiria ela o calor da manhã, por baixo daquela leve drapagem de seda branca?

         Não  lhe explicara ainda o motivo da minha preferência pelo livro do escritor marroquino. Havia pouco a dizer. Apenas lera um artigo dele, num Courier da UNESCO. Precisamente, num número especial, sobre o Amor. Ela também lera. A revista vendia-se na tabacaria. A outra razão, foi ter tido um falso encontro com o livro, numa livraria em Paris. O título seduzira-me do fundo de uma montra. Mas era domingo, a loja estava fechada, e eu tinha mais em que pensar. Bem vistas as coisas, já lá iam dois anos. O livro perdera a novidade. «Ah! mas não se esqueceu mais do título?...» Que bonitos olhos berberes!

         Na manhã seguinte, antes de abandonar o hotel, para o meu circuito turístico de Marraquexe, parei na tabacaria. No entanto, a empregada, agora de coleantes jeans e fresquíssimo top, decepcionou-me. Não pela graciosidade, confirmada pela toilete alternativa, mas por ter vendido o livro a um senhor francês. A um francês?! Não me diga que nos confundiu? De modo nenhum. Se alguma coisa tinha em comum eram os cabelos brancos. Queria ela dizer grisalhos, eu que desculpasse. Por ter ficado sem o livro prometido? Não, por ela ter falado em cabelos brancos. Ora!...

         Fora por um maço de Gauloises, o Francês, topara o livro em cima do balcão, folheara, encantara-se com duas ou três passagens... Em resumo, quase exigira que lho vendesse. Queria voltar ao quarto do hotel, despertar a companheira com a leitura de algumas frases apaixonadas. Então, e só por isso, você deixou ir o livro? É que ele confidenciou estar em verdadeira lua-de-mel, que a sua copine é jovem, sonhadora... Completei para comigo: E o gajo já não tem paleio... Au  revoir, M’moiselle!

         Meia hora depois, encontrei um cinquentão derretido com uma pré-balzaquiana, no hall do hotel. Saboreavam, tête-à tête,  o ‘meu livro’.  Lá estava o título a tentar-me outra vez, como na montra da livraria parisiense. A leitora não era de menor tentação. Ombros esplendorosos. Que inveja não devia fazer à maioria das embiocadas marroquinas.
        
         Praça Jemaa el Fna, duas horas mais tarde. Com toda a sua magia. Mesmo que ficasse aqui o resto dos meus dias, nunca alcançaria o tesouro cultural destas gentes. Deixa lá  os japones gastar quilómetros de filme, desfruta com os sentidos. Contadores de histórias rodeados de garotos, que lhes puxam pela língua; actores de teatro popular, exibidores de cobras e macacos, aguadeiros policromos e estridentes, vendedores de tudo e de nada...

De repente, o calígrafo de escrita voadora. Com seus frascos de henê... Algumas jovens turistas deixavam-se tatuar na fronte, nas mãos... Como as mulheres berberes. Mensagens de desejo, anúncio de coração livre... Aquilo passa, a tinta sai, ao fim de três dias, explicou-me um dos muitos circunstantes, sem parar de mastigar um pau de alcaçuz. E de enxofrar o olho para as clientes do calígrafo. A tinta sai!

Espera aí, mas... aquele é o Francês mais a estátua semovente, que  andam a excitar-se  com o ‘meu livro’...

         Exacto. A jovem também pretendia oferecer-se ao afago do calígrafo. Delirante, sentou-se no banco, à frente do artista. Parece que tinham  combinado lavrar, a henê, uma mensagem, na sua pele apetecível. Ela oferecia o ombro, imóvel, cheia de sol. Redobraram os olhares lazarentos dos machos marroquinos, apertando o círculo.
O artista e o companheiro da jovem procuravam qualquer coisa no livro. No meu livro! Ia o calígrafo copiar palavras de Ben Jelloun?  Evidente. Trato feito, cálamo em voo tangente. Aproximei-me para ler.
Querias! Um dístico em caracteres árabes torneava o ombro da jovem. O que estaria ali escrito? Traduziu-me o mastigador de alcaçuz: … est toujours le dernier.

 Do título do livro de Tahar Ben Jelloun: Le premier amour est toujours le dernier. O livro que eu não conseguira comprar em Paris.
 Andei o resto do dia, em Marraquexe, a ironizar sobre a paixão grisalha do Francês. Depois, apaguei o episódio, durante mais alguns anos... A tinta sai!



 Sem procurar, encontrei, ontem, o livro de Ben Jelloun, na Fnac do Chiado. Afinal era de contos, e não poesia como eu julgava. Agora ou nunca. Antes de me dirigir à caixa, reparei, não estivessem ali o Francês e a sua tatuada copine...
         Comprado! Leio e releio: Le premier amour est toujours le dernier... Et le dernier est toujours rêvé...E último é uma sonho, uma sombra, do primeiro. diria eu.
        
                            Sintra, Novembro de 2000


quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Mo Yan Nobel da Literatura

De momento, mais não sei sobre o Nobel da Literatura. E ciência recente, reconheço humilde. Tenho, terei mesmo?, um ano para mais aprender sobre MO YAN. Aqui me fica também a minha homenagem ao anterior Nobel, Tomas Tranströmer, a quem voltarei  sempre,com muito gosto. JB



El camino que he elegido para acercarme a un pais, a una cultura… para aprender y comprender su historia, sus porques es la  literatura. Y en mi camino hacia China me he encontrado con este escritor Mo Yan y su novela Las Baladas del ajo… la  crudeza y el  lirismo de esta historia me ha conmovido como hace tiempo no lo hacía ninguna novela.

  Mo Yan 莫言  nació en Shandong, China, el año 1955.  Os dejo su voz

“Mo Yan no es mi verdadero nombre, yo me llamo Guan Moye. Elegí ese apodo, que significa No hables, en recuerdo a los años en los que no podía dirigir la palabra a nadie (…) Eran los tiempos turbulentos de la Revolución Cultural (1966-1976), en los que había conflictos entre la gente de mi pueblo todos los días. Mi padre era agricultor, pero mi familia tenía una posición desahogada, y tenía miedo de que dijera algo inconveniente y trajera la desgracia a los míos. Así que me dijo que no hablara y que aparentara ser mudo”.

 ”Mis recuerdos están repletos de soledad y hambre. La década de 1960 fue muy difícil en China. Pasaba todo el día en el campo cuidando de las vacas y las ovejas, mientras los chicos de mi edad estudiaban y jugaban en el colegio. Había veces que no veía a nadie en todo el día”.

Cuando tenía 18 años, el joven Mo entró a trabajar en una fábrica. La mitad del tiempo era obrero, y la otra mitad, campesino. Hasta que, en 1976, intentó entrar en el Ejército. “Era la mejor forma de tener una buena vida. Pero había un límite de edad, así que mi familia cambió mi fecha de nacimiento, y puso un año menos. Entonces, hacer esto era muy fácil, ya que no tenía partida de nacimiento. Por eso alguna gente piensa que nací en 1956″.

Un campesinado empobrecido hasta la miseria y sumido en la ignorancia, en la brutalidad es maltratado por la rígida burocracia sin misericordia. Fragmento del capítulo donde Gao Yang consigue llegar con su mujer parturienta a un centro de salud… en mitad de la nada en la oscura noche. Hombres y mujeres en fila ante el destartalado edificio  esperan su turno para dar a luz.

UNA DOCTORA  vestida de blanco apareció en la puerta, con las manos protegidas por unos guantes de goma que le llagaban a la altura del codo, por donde resbalaba, principalmente, un reguero de gotas de sangre. El hombre corrió a su encuentro

-          ¿qué  ha sido doctora?

-          Una niñita

Al escuchar que era padre de una pequeña, el hombre se tambaleó un par de veces hasta caer de espaldas, golpeándose ruidosamente la cabeza contra las baldosas, que dio la sensación de romper.

-          ¿qué problema hay? – comentó la doctora.-  Los tiempos han cambiado y las niñas son iguales que los niños. ¿De dónde proceden los hombres si no es de las  mujeres?¿O es que salen de debajo de una piedra?

Lentamente, el hombre se puso de pie, como si estuviera en trance. A continuación, comenzó a gemir y a sollozar, como si estuviera loco, y acentuaba sus llantos con gritos de reproche:

-          ¡Zhou Jinhua, maldita mujer inútil, mi vida se ha arruinado por tu culpa!.

Sus gritos se unieron a los sonidos del llanto que se escuchaba en el interior: Gao Yang pensó que se trataba de Zhou Jinhua. La ausencia de llanto del bebé le desconcertó. Jinhua no habría sido capaz de ahogar a su propio bebé ¿Verdad?

-          Entra ahora mismo – ordenó la doctora – y ocúpese de su esposa y de su hijo. Hay más personas esperando

El hombre se puso torpemente  de pie y se arrastró hacia el interior. Unos minutos después salió con un fardo en la mano

-          Doctora – dijo mientras se detuvo en el umbral de la puerta – ¿conoce a alguien a quien le gustaría tener a una niña? ¿Podría ayudarnos a encontrarle un hogar?

-           ¿Pero es que en vez de corazón tiene una piedra? – preguntó enojada la doctora – Llévese a su hija y trátela bien. Cuando cumpla los dieciocho años puede conseguir al menos diez mil por ella.

sábado, 15 de setembro de 2012

Todos na rua!

Será mesmo? Este povo  - velhos e novos, esfomeados, enjoados, indiferentes... -  estará a reapreender o direito de reclamar a verdade e a justiça na rua?
Quem atende estes gritos? Devemos continuar, que isto ainda é muito pouco para demonstrar a nossa razão.
Cuidado, senhores do capital. Pode ser que os equilíbrios  se alterem. A partir da rua. Se todos acordarem.

domingo, 2 de setembro de 2012

Os Rosenberg nos Arneiros de Santa Catarina



Sofreados por algemas, beijam-se à saída do tribunal. Pela última vez. Entretanto, a milhares de quilómetros, Pablo Picasso procurará ainda libertá-los, numa gravura: Julius e Ethel, sorrindo. Em vão.

            Terminaram na cadeira eléctrica, em 19 de Junho de 1953. Sexta-feira. “It had to be!”, tinha dito Julius, quando, dois anos antes, os juízes os encarceraram em Sing Sing.

O caso emocionou o mundo. Chegou-lhe aos ouvidos, tinha ele nove anos.

Chama-me a atenção para o magazine do Público, de um domingo de Agosto: “Fotos do Século XX”: “A despedida dos Rosenberg”. Mais disse, andara a pesquisar na Net: Um caso de amor, espionagem, falsidade e traição.

Ainda hoje, os filhos do casal, naquele tempo com seis e dez anos, pugnam pela inocência dos pais. Traidores? Não! Vítimas da cegueira ideológica e de amizades apodrecidas.

            Enquistou-se-lhe na memória. Cruel enigma, trazido dos jornais pelo tio Jaime. Compreendera que um homem e uma mulher iriam ser mortos, numa cadeira eléctrica, mas a razão não lhe foi explicada. Eram comunistas? E espiões? Segredavam aquelas palavras, à mistura com inquietas alusões à guerra na Coreia... Onde era a Coreia? O que era uma cadeira eléctrica? «Não são coisas para a tua idade, menino.» Com um olhar doloroso, a mãe excluía-o da cumplicidade dos adultos.

Saiu de casa e subiu ao Cabeço, para pedir explicações sobre os Rosenberg ao vizinho Fernando Palã. 
Ele havia de saber. Marçano na Cidade, parava a puxar fumaças do maço High life, à porta do Café Central... Tinha uma galena. E, como ia todos os sábados ao cinema, nunca lhe faltavam coisas interessantes para contar. Além disso, aquele vizinho gostava dele, prestava-lhe atenção
Fernando Palã confirmou-lhe as palavras do tio. Acrescentando que os condenados levavam vários segundos a morrer. Segundos que pareciam anos...

Cada vez mais calado e arredio, decidiu pôr-se a rezar pelo perdão dos Rosenberg. Deus ajudaria.

Não tardou que a professora estranhasse o comportamento. Seguia-o à hora do recreio, tentando decifrar as razões da apoquentação. Nada de zangas familiares, nem com os colegas da escola? …
 - Então, vá, diz!
- Senhora, não quero que lhes façam aquilo…- e calou.
- A quem?
Silêncio.
 Medo? Nervos? Só podiam ser nervos! Não bebesse café ao pequeno-almoço. «Que café bebo eu, senhora?». Duas gotas, mistura de grão-de-bico e chicória, com que a mãe lhe desenfastiava a gordura do leite nas sopas. Quem alguma vez compreendeu as razões de tanta ansiedade? Ele não!


Uma manhã de domingo, voltou ao Cabeço, à espera de ouvir o vizinho falar sobre o filme da véspera.
 Até ali, quantas vezes tinha ido ao cinema? Uma ou duas.

 Sentou-se à sombra de um sobreiro. Só muito anos depois chegariam os serradores.
Do lado da Quinta dos Anjos, refrescava alguma brisa resinosa. Ouviam-se as rolas no pinhal.

Aproximou-se o vizinho Palã. Não para contar o filme da véspera. Mas…
- Ontem vinha no Diário Popular

A execução dos Rosenberg. Ficou a tremer. Deus teve mais em que pensar!
Acabou-se!

Acabou-se, também, o Cabeço, onde ia espreitar as serranias, as cheias no vale do Tejo

 Assujeitado pela Cidade, o sítio perdeu os aromas do arvoredo, matos, searas. Afastaram os rebanhos, fugiram os pássaros. Partiram as pessoas: velhos e novos. Demoliram-se os poucos casebres de adobe. Até que um dia…
Urbanização! Terraplanagens, novas construções, automóveis, gente apressada, desconhecida. Conflitos por causa de drenagens de esgotos e parqueamento de carros.

Antes da asfaltagem chegar a meio, já o antigo carreiro do Cabeço tinha crisma...

- Desculpem, se não atino com o nome da santinha... Santa Catarina? Talvez, talvez tenha sido isso que escreveram na placa, à entrada da rua. Dantes, diziam os avós, tinha havido por ali uns arneiros de Santa Catarina, também uma ermida, salvo erro. Outro mundo.

Calou-se e perdeu o olhar. Em que margem do Tejo estaria agora? De súbito, concluiu:

- Olha, como dizia Julius: It had to be!  


Deste modo me falou dos Rosenberg.


Sintra, 2003

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

A ORIGEM DO MUNDO


Lamenta-se a fotógrafa do excesso de luz. Retorquir-lhe-ia que se desfigura o roxo da glicínia,   não o sorriso dos pais fundadores, aqueles  dois casais,  emoldurados pelo conjunto da trepadeira.   Obrigado pelo disparo e pelo envio, Sandra.

Ainda há domingos da volta saloia,  dos tristes, com  apetites de cozido à portuguesa.

Pelos sabores famosos de um certo restaurante, rumaram às encostas de Sintra.   Assim explicaram quando lhes foram franqueados o jardim, a casa, a memória. Coisas que pareciam mendigar.

Momentos antes, parados ao portão das traseiras, apontavam… Embevecidos com quê? Quem é esta gente? O pai, a mãe... -ah deduzo -  filha, neta e genro. Embora não hostis, os cães latiam. A contragosto, recuaram  para o canil. Tranquilos, bichinhos,  julgo saber de quem se trata.

Anteriores inquilinos da casa, num tempo recuado, finais da década de 60

- Então o  senhor é o médico? Dr. D*...?

Exato. As mãos apertaram-se como se nos conhecêssemos. Daquele tempo, desta casa, da partilha dos frutos desta nespereira, onde o olhar do médico perscrutava, como pássaro, a próxima maturação. Será   a mesma árvore ...  Mas vamos entrando, por favor.

Confirmo o desaparecimento da  outra nespereira, sombrosa,  junto ao muro. Houve  ampliação da cozinha, quando passei de inquilino a proprietário.  Sim, sim, tudo tão acanhado para as quatro crianças.   Medida extrema que bastante me pesou.

Durante anos  resisti a súplicas da vizinha americana. Sheila: "Corta o árvore, please". Roubada de sol, num constante enfado a varrer folhas e restos de frutos debicados. Até que. Doída de alma e corpo, um dia, retirou-se para os Estados Unidos. Notícias de divórcio, autismo de um filho, cancro… foram caindo.
Porém, desculpasse a Sheila. Abater a árvore, não estava, ao tempo,  na minha mão. Quando arrendei a casa, comprometi-me perante o senhorio a conviver pacificamente com as árvores  do quintal: duas nespereiras e um limoeiro.

Acabo de saber:  fora ideia da esposa do médico, a plantação do limoeiro. Quanto  à nespereira, a grande,   já  ali se inclinava sobre  o quintal dos vizinhos - não ainda a tal senhora americana -  quando os D*..., com um filho de tenra idade, aqui chegaram.  A nespereira pequena...
O marido:
- Foi semeada por mim e pelo meu rapaz.

Uma ocasião, enquanto colhia as primeiras nêsperas, surpreendeu o garoto,  três anos, de boca aberta, colada à vidraça da cozinha. Caçando moscas.
Que porcaria! Abrisse a boca! A criança abriu, libertando – incrível! - duas, e  a voar.. E quantas teria engolido? Desde quando se entregava àquela devoração? Ralhete teatral.

Sentida choradeira, proposta de tréguas: fossem pai e filho  semear uma nespereira. Tão simples como isso: escolher o local, abrir uma cova e atirar para lá caroços. Não seriam  as nêsperas muito melhores do que as moscas?

- Pois lamento, doutor mas tem de esperar mais umas semanas, se quiser provar desta sua árvore. Combinado, não deixem de vir. Quanto à  nespereira em falta...

Dessa colhera repetidamente.  Repartira com os amigos, chegando a levar frutos para o consultório e até para a maternidade.
Obstetra na Alfredo da Costa, também fazia clínica geral aqui na localidade.

Entretanto, passamos pela cozinha, sala, corredor. Enternecem-se, abraçam-se Na biblioteca, ergue-se da secretária a Filomena  perplexa, enquanto não fiz as apresentações.   Anima-se a conversação

Mergulha-se   nas vidas:   eles, alguns anos antes de 73; nós, a partir daí. Guerra colonial, duas filhas gémeas nascidas  naquele quarto. Não perguntámos se por opção profissional ou impedimento de chegar à maternidade. Tudo correu sem sobressaltos, e sem ajuda. Apenas a criada, atenta ao rapazinho que dormia no quarto ao lado. Sim, no quarto depois partilhado  pela Leonor e Catarina.
Aos nossos rapazes – o mais novo veio já morávamos nesta casa –  restavam mais um quarto e o sótão.   De  facto, Casa piccola ma acogliente, diria anos mais tarde um amigo italiano.

Sobressalto, lembrava-se a esposa do médico de um. Fevereiro de 1969. O marido em comissão na Guiné ela, sozinha, apenas com o rapazinho  bebé. Tremor de terra. Fuga pela porta da frente com a criança nos braços.  Na ideia de se salvar pelo jardim,  esqueceu-se dos três degraus do caminho até ao portão. Queda, felizmente sem consequências para a criança.   As equimoses da mãe foram  de somenos.

- Esta foi a  casa onde a mamã e a titi nasceram - emocionava-se Sandra, sorrindo lágrimas para a filha.
- Estou a vê-las aqui na  sala, a brincar numa cerca de rede – a mãe.

- Tudo passa tão depressa, minha senhora – acrescentava a Filomena

E o limoeiro? Da nespereira já se falara, mas o limoeiro? Afinal também gostariam de ver o tal limoeiro.
Pois bem, acreditem ou não,  o limoeiro mudou de sítio. Não teve a má sorte da nespereira, foi de padiola para a frente da casa. Ali está carregado de limões. Também são vossos.

Ao voltar com um saco de frutos, estava a Sandra a tirar as primeiras fotos.

A nossa casa! A origem do mundo.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

SERVIÇO A CORUCHE



Apontava-me o guarda-chuva: «Táxi!» A mim, à cabeça da fila.

Gabardina, chapéu sobre os olhos, pasta pesada. Algum desnorte, como se fosse a primeira vez que se apeasse na estação de Santarém. Não chamaria a atenção, se viesse no rápido, mas descera do sempre atrasado correio, já passava da uma hora da noite. «É possível levar-me a Coruche?»

É possível levar-me a Coruche?



Meu pai repetia a pergunta, porque o desconhecido insistia.





Logo passou aos restantes motoristas: «Quem é que me leva a Coruche?» Dos meus colegas, também nada. Sendo eu o primeiro da fila, aguardavam.

«Sim. Estou livre!»

Aquela hora da noite, sem ter matado o borrego, depósito quase atestado. Na nossa gíria da praça, o borrego era o azar de não fazer nenhum serviço. Ai se havia dias assim!

«Ó Caréu, olha que a cheia está a vazar, mas a estrada…». Voz do Alexandre, que pouco antes regressara de um serviço a Almeirim. Avisava: cuidado com esse bisnau!

Pedi um minuto ao desconhecido, aproximei-me dos colegas. Que eu não fosse. Havia ali qualquer coisa que não cheirava bem. Nenhum deles se iria meter em tal trajecto, àquela hora.... «É gajo que vai aí desgraçar alguém...» A noite estava clara: lua cheia, embora escondida por nuvens ameaçando... Muito falsas as estradas para lá de Almeirim... Visse bem. Se já me tinha esquecido do martírio dos Tavares, pai e filho?

Os Tavares?

Os Tavares. Passou de uma semana, cada um em sua cela, na cadeia de Leiria, até se esclarecer a chacina. Sete ciganos saíram da praça de Santarém, ao cair da noite, com espingardas e machadas, embonecadas em mantas, para um ajuste com outra ciganagem em Porto de Mós. Trabalhinho feito, os matadores desapareceram na serra. Aturdidos pela sangria e pelas ameaças, os choferes engoliram pistas, até a guarda deter um do bando.



«Segundo o chefe da estação, já se circula», atirou o homem, pressentindo as dúvidas. A desculpa da cheia não pegava. Aproximou-se, tocou-me no ombro: «Vá lá, então leve-me, senhor. Peço-lho pelo que tiver de mais sagrado. É um grande favor» Quebrou-me: fosse ele o maior malfeitor deste mundo... Sorte!

Isto deu-se alguns anos antes de Vila Franca estar ligada à margem sul. Alguém tinha aconselhado o viajante, em Lisboa, a vir apanhar um táxi na estação de Santarém, onde, normalmente, os carros esperavam até ao último comboio da noite. Necessitava de estar em Coruche, na manhã seguinte.





Assim me meto com um estranho pela noite adentro. Como de costume, tentei conversa. Apanhei de tudo naquela vida: os que falavam por falar, os que queriam tirar nabos da púcara, bufos, os que confessavam desgostos e fraquezas, os que davam conselhos sem lhos pedirem... os que se enroscavam no assento e me ignoravam como se fosse  uma pedra.

A este, comecei pelas notícias das enxurradas, das desgraças da lavoura... Respondeste tu?! Escuta. O que lhe ouvi foi um... um grito, como de quem se queixa de uma cólica: «Este luar...»

Com efeito, rasgavam-se as nuvens, desofuscando toda a extensão das águas. Valeria a pena assinalar ao viajante que aquela cheia cobrira por completo o salgueiral das marachas?

«Este luar...» Agora era um resmungo.

Deixa cá ver se entendo: «Não há luar como o de Janeiro, nem amor como o primeiro, dizia a minha avó.» Tudo estragado!

«Tenha lá paciência, evite incomodar-me. Estou num grande sofrimento...! O amor! Era só o que faltava. Nada se sabe sobre o amor...O amor? O que isso é? Tretas, para trocarmos as voltas à morte. Quando chegar à minha idade...»

Calculei-lhe uns… talvez já cinquenta. Prometia a mim mesmo não voltar a abrir a boca, quando:

«Bem vistas as coisas, eu podia ter feito esta viagem de barco..»

Pavoneava-se? Delirava?

«Ah, sim ? E por que não fez?»

Nem sei se me estava a responder: «Se nos deixassem, íamos sempre naufragar à nascente dos rios... Porque a vida nos arromba no mar alto dos sonhos...». Porque a vida nos arromba no mar alto dos sonhos, nunca mais esqueci.

Cabeça desregulada?. Lembrei-me das perturbações do nosso primo João, quando fugiu do Telhal... Tive vontade de voltar para trás... Pensei melhor: Vou deixá-lo em Almeirim. Que se governasse!



O café da vila ainda estaria aberto. Convidei-o a tomar qualquer coisa... Tinha de declarar à frente de testemunhas que não me sentia em condições para continuar o serviço, ou talvez fosse possível encontrar alguém que aceitasse fazer-nos companhia. No entanto, o homem lia, quero dizer, parecia ler os meus pensamentos.

«Porque vai preocupado? Não vamos ter problemas pelo caminho. Obrigado, mas não quero tomar nada, só pretendo chegar a Coruche. Se me vai dizer que vem aí outro temporal e as estradas estão inundadas, concordo consigo, mas vamos ver. Já agora, deixe-me que lhe conte: da última vez que estive em Almeirim, levei uma fortuna nesta pasta. Pois nessa noite, chuvosa como esta, jurei nunca mais cá voltar. De nada servem os juramentos.»



Jogo? . Batota e loucura? Ou o quê?



Enegrecia. Voltava o dilúvio. A estrada não demorou a alagar-se Procurei manter o carro ao meio da estrada, por saber como estavam traiçoeiras as bermas. Por mais uns arriscados quilómetros, se o motor não falhasse.

Entretanto, o cuidado com a condução aliviou-me das preocupações com o passageiro. A páginas tantas, pediu-me para acender a lâmpada, precisava de escrever. Nunca gostei de conduzir com luzes interiores, mas fiz-lhe a vontade. Segui-lhe os gestos pelo retrovisor: num abre-fecha da pasta, contava dinheiro, guardava notas num sobrescrito, revolvia bolsos, rasgava papéis, voltava a contar as notas. Por fim, vi que enlaçava uma gravata preta. Aquietou algum tempo.

Apagou a lâmpada e perguntou-me se eu conhecia alguém em Coruche.

«Posso dizer que tenho lá um amigo, colega de praça, o Venâncio.»

«O Venâncio?... Antes de estar na praça, trabalhou para o meu pai… Ah, rapaziada!»



Não estive para lhe contar uma trafulhice que fizeram ao ti’ Venâncio, no tempo da guerra. Apareceu no Padre Chiquito todo satisfeito, com um garrafão de dez litros de gasolina, comprada a um candongueiro. Já podia regressar a Coruche. Preparava-se para emborcar a vasilha no depósito do carro, quando um lhe gritou, «Cautela! Empresta aí.» Agitou o garrafão e, num golpe rápido, verteu um pouco na calçada. «Eh pá, não entornes, que isso é oiro!», berrou-lhe o Venâncio. Era água! Água, com umas gotas de combustível.





«Então, se conhece o Venâncio...»

«Sim...?»

«Deixe, não tem importância. Ele deve lá estar esta noite.»

Lá onde? Calou-se. Ouvia-lhe o desassossego, a contorcer-se no assento.





Que noite aquela! Chuva se Deus a dava.

Mais à frente, tinha havido um acidente. Nas traseiras de uma camioneta de cortiça, adornada, esbracejava um homem, pedia que parasse. Haveria feridos? Afrouxei. Veio uma ordem seca do meu cliente:

«Não! Siga.»

Nós, os profissionais do volante, não tínhamos por hábito deixar um camarada em tais aflições.

«O senhor não sabe quem está mais necessitado de ajuda, se aquele homem, se eu. Siga, siga!»

Alma do diabo! Acelerei o possível, para mais depressa me ver livre daquele jagodes.

Não tardou, estávamos a atravessar a Herdade dos...



Não posso manter o discurso na boca do meu pai. Apagou-se-me o nome da propriedade. Contou-me ele toda esta história no verão de 75, quando acabava de ser ocupada e integrada numa unidade colectiva de produção (ou numa cooperativa?): A Esperança Vermelha. Retive aquelas duas palavras, porque associadas pelos jornais da época ao nome de uma agrária dura de roer. Recusava-se a virar costas, resistia com tantas razões quantas as dos intrusos. O caso ainda dava mais brado pela circunstância de, mal chegados, os ocupantes se terem desentendido sobre o modo de gestão dos novos meios. Passavam o tempo em plenários, insultavam-se… Não adianta: varreu-se. Pronto: foi o caso d' A Esperança Vermelha.



Agora, a palavra ao meu pai, para que ele a recue ao seu cliente:



«Podia ser dono disto tudo.».

Dava-me azo de lhe apanhar um pouco da identidade:

«Podia?»

«Pois, mas quem tinha de decidir a minha vida era eu, não eles”.

Fiquei na mesma. Daí em diante, só voltou a falar, nas imediações de Coruche, para me indicar o sítio onde devia deixá-lo.







Foi no que se me afigurou uma moradia de uma outra herdade. Mesmo de noite, notava-se abandono e necessidade de restauro. Ninguém, nem cães. Tampouco uma luz. “Que vem aqui fazer este gebo, numa noite assim?”

Ao fechar das contas, o sujeito mostrou finalmente um ar de simpatia: «Boa viagem, faça por se esquecer que veio aqui. Fico-lhe agradecido, por tudo.»

Saiu do carro, quis abrir o guarda-chuva, mas as varetas ensarilharam-se. Num gesto de fúria, jogou fora o empecilho e meteu-se ao temporal. Desapareceu na escuridão de um pátio.







***







Meses mais tarde, em Santarém, meu pai encontrou-se com o seu colega de Coruche, o Venâncio.



Se conhecia! Tinham sido da mesma criação. Toda a família do Venâncio trabalhara para o pai daquele homem. Um desvairado! Havia outro filho, mais velho, que, depois do falecimento do patrão, abalara para Angola. Com queixas de que a mãe apoiava sempre os excessos do irmão.

Que se formara em Direito, e tinha ou tivera escritório em Lisboa. Viera fazer um bom casamento a Coruche. “Estava arrumadinho e bem arrumadinho”, comprazia-se a mãe. Estaria?

Meteu-se em negócios tortos, na estroina... Num abrir e fechar de olhos, esbanjou bens próprios, os capitais que o irmão lhe ia mandando de África, e a fortuna do sogro teria ido à viola, se a mulher não o tivesse corrido. Apesar de muito jovem, ela não se deixou ir em conversas do boémio. A história, contada por ele, era outra: tinha virado as costas à mulher, por ela ser um pau-mandado do sogro. E... meter roda sobresselente na cama, nas ausências do marido. Grande escândalo, separação.

Desde aí, passou um ror de anos, sem visitar a mãe. Nem por isso deixando de lhe estoirar dinheiro de rendas e negócios Coitada, viveu desgostosa os últimos tempos, convencida de que os dois filhos, se não estavam mortos, estavam na prisão. Talvez no manicómio, o mais novo.

«Mau passadio, a senhora. Sem o apoio da minha mãe, ainda tinha sido pior. Você trouxe-o para o funeral.»



Quando entrou no quartito do velório, não se aproximou do caixão, nem as boas-noites deu. Reconheceu-me. Um abraço frio, sem uma lágrima. Sentou-se ao meu lado, acendeu um cigarro e não tardou a levar a conversa para assuntos da nossa mocidade: pássaros, cavalos, raparigas, bailaricos... «E os banhos no pego, Venâncio?» Lembrava-se do nome de todas as raparigas. Conversa a descalhar com o momento. Pouco lhe adiantei. Ainda assim, não se calava, dando origem a protestos: exigia-se respeito pela defunta. Afinal quem era aquele fulano?

Então, caiu em si. Demorou o olhar no caixão, rodeado de alguidares para aparar o pingolejo do tecto. «Ao que chegou esta casa!», lamentou-se.

Aqui, a minha irmã não se conteve:

«Não me digas que estás com remorsos? Olha: as casas… as casas são como as pessoas, precisam de amparo!»







Pela madrugada, puxou-me para a rua. Agradeceu-me tudo o que a minha mãe tinha feito pela dele. Depois, fraquejou. Era um frangalho, aos soluços, agarrado a mim.

Quando o sosseguei um pouco, embaraçou-me com um pedido: fosse eu pagar o funeral, passava-me um sobrescrito com dinheiro. Chegaria? Tive de aceitar. Mais agradecimentos, mas bruscamente virou costas.

Gritei-lhe: «Onde vais, homem?»

«Ver nascer o sol!», soluçava.



Aqui tem, amigo António. Findo isto, perdeu-se lhe o rasto em Coruche.



Janeiro de 2002











segunda-feira, 7 de maio de 2012

Faz sentido interpretar os sonhos?

Respondeu à Visão (n.999) o psicofisiologista Stephen Laferge:

"Qualquer trabalho artístico é um autorretrato. Os sonhos são as produções mais íntimas de arte, fazemo-las espontaneamente.Podem ser interpretados, como qualquer obra de arte, mas não é obrigatório. Senti-los, apenas, já tem um valor, por si só.. Podemos aprender com os sonhos, interpretando-os, mas é subjetivo, variável, O meu conselho é: vivam os sonhos, estejam acordados dentro deles.Desfrutem de uma experiência única, que permite fazer coisas que, por norma, não estão ao nosso alcance. É uma aplicação de que as pessoas não deviam fazer muito uso..."

domingo, 26 de fevereiro de 2012

O RAPTO

Para a Tilinha, outra vez

O meu irmão António...com o seu feitio calmo e tolerante”. Nota memorial da tia Piedade.

Realmente o meu pai não era homem de esquentar a cabeça. Inveja a minha.

Um Verão, na eira do Cabeço, ao confirmar, pela avareza da debulhadora, a perda na seara do trigo, pôs-se a contar revezes da vida de taxista. Com as bolandas do passado, distraía as do momento. Como se do aperto no peito brotasse algum alento. “Coração ao alto”, costumava dizer.

Direi por ele. Com o desgosto de não ser capaz de fazer justiça aos seus dotes de contador.

Começo de Junho. Meu pai fazia serviço nocturno de escala obrigatória. No Largo do Padre Chiquito, rescendiam os alfenheiros.
Dormitava no carro, embora de ouvido alerta ao telefone... “Menina, dê-me o um, quatro, quatro! É da praça dos automóveis?”, coisas que lhe tinham ficado dos tempos do teatro, no Cruz de Cristo.

Havia noitadas em que ninguém precisava de um carro. Como se não bastasse ao desgraçado de turno não ter descanso na sua cama, ainda acabava “por não matar o borrego”, quer dizer, ganhar ao menos para o café da espertina.

No Inverno, era um martírio: “Ficava para ali um calabrês todo inteiriçado numa manta, um gelo... À espera de quem?” Calabrês, na gíria de meu pai, andava abaixo de traque de cão.

Quando a sorte corria, sempre pingavam uns escudos, para a gasolina. Das mal iluminadas travessas da Cidade, surgiam clientes retardados. Homens ressuscitados dos bordéis, logo ali, à Rua das Linheiras; jogadores de batota, se lhes sobrava abono para a corrida; distraídos, ou viciados, conversadores de café, que só aceitavam a obrigação de regressar a casa, quando os empregados do Central lhes lembravam: “Vamos fechar: Boa noite, meus senhores!” Por vezes, um médico, chamado à pressa à cabeceira do doente... Uma parteira.

Um jovem. Com o ar de quem poderia estar a ser seguido, esgueirou-se até ao fundo do Largo, aproximou-se hesitante de um dos poucos carros, no estacionamento dos particulares. Nítida atrapalhação na escolha das chaves. Sentado ao volante do veículo de um conhecido comerciante da Cidade, não conseguiu ligar a ignição... Roubo não se afigurava, pelos vistos, só que o rapazote nunca mais ia conseguir pôr-se em marcha!

Farto de tentar, aproximou-se do motorista de plantão na Praça. Como se tivesse necessidade de dar uma satisfação. Meu pai confirmou as suspeitas: “Preparem-se, que já lhes digo de que cepa era o bisnau”

- O carro não quer pegar...

- Mas o senhor não é o proprietário, pois não?

- Não. Bem… Mas emprestaram-me as chaves, os documentos…

Engasgava-se, havia ali enigma que a meu pai não cheirava tão bem como as árvores do Largo... Salvo erro, o jovem nem sequer ainda teria carta de condução.

- Peço-lhe duas coisas...
- Duas?
- Primeira, que não faça conversa a ninguém do que viu aqui. Se isto chegar aos ouvidos do meu...
- O senhor é filho do...
- Do tenente Freitas da GNR.

Alguém cortava o fio da narrativa:

- Esse tenente Freitas era enxertado, ó s´ Toino Caréu. Uma vez ...

Meu pai não se deixou passar: “Essa conta você a seguir”.

- Entendidos!. Fique descansado. E qual era o outro pedido?
- Que me vá fazer um serviço a São Domingos. E isso também tem de ficar entre nós...

Ao fundo da Calçada de S. Domingos, recebeu meu pai pedido de paragem. Que aguardasse, de faróis apagados. Deixando a porta do carro aberta, o jovem desapareceu no escuro, apressado.

Reparou então o motorista que se encontrava nas traseiras da residência do proprietário do carro que ficara no largo do Padre Chiquito. Não foi longa a demora.
De uma azinhaga, volveu o rapaz abraçado a uma rapariga de rosto coberto por um véu.

“Limpinho! Estava metido num rapto.” Parece que o jovem Freitas tinha mais sucesso com a rapariga do que com o carro do pai dela.
“Metemos pela estrada de Santa Clara, fui deixá-los na Ribeira, à porta de uma antiga criada dos pais da rapariga. A marosca já devia estar combinada. Mas, oiçam lá, isto agora começa a dar prò torto...”

O cliente estava curto de finanças.
“Ficou-me a dever parte do serviço... Já digo quanto”.
Deixá-lo! Alguém havia de pagar. E assim foram os pombinhos aproveitar o resto da noite.

Dois dias mais tarde.

“Quando cheguei à Praça, todos os meus colegas me vinham com o mesmo aviso: ‘tás tramado com o tenente Freitas! Ora eu nem à minha mulher tinha falado daquelas andanças... O casalinho dera com a língua nos dentes”.
Ao que diziam, o tenente irrompera no largo do Padre Chiquito, aos berros. Queria saber quem tinha sido o chofer escalado para o serviço nocturno. Fazia ameaças. Tinha telefonado duas vezes a perguntar pelo meu pai. Metido numa alhada.

- Como é que você, seu ordinário, se presta a fazer o que fez?
Meio mundo parou na rua, para ouvir as razões do militar. Lojistas e clientes abandonaram os balcões, queriam dar fé do desacato. Com o Beja?! Que lhe movia um processo, que fazia, que acontecia... Pois qualquer pessoa via, além do mais, que quer o rapaz quer a rapariga eram menores...Portanto.
- Foi cúmplice!

“Ele, completamente desembestado, e eu sem saber como esfriar a cabeça para lhe retorquir a preceito.”

- O senhor tenente retira a palavra ordinário e eu respondo-lhe. Não retira, nada tenho a acrescentar.
“Ah, mas falta aqui uma parte. O fulano tinha deixado dois guardas à esquina do Correio do Ribatejo. Escolta armada, ao menor deslize, ia engavetado!”

Quando o meu pai lhe mostrou a têmpera, o oficial começou a quebrar. Passou a dar ouvidos. “De vez em quando, abespinhava-se, mas eu puxava-lhe o bridão. A páginas tantas, passou o olhar pelo pagode que gozava a função e bichanou-me ”:

- Fale mais baixo, homem! Já basta de escândalo!

Contudo, terminados os esclarecimentos, o tenente voltou a encher-se de pesporrências. Tinha de sair dali, com os galões desembaciados. Acenou aos soldados da escolta e garganteou-lhes:

- Voltem pró Quartel, que a gente deixa cá o homem.

E, sobranceiro, para o meu pai:
- Passe bem!

“Não sei de onde me veio aquela vontade de desancar o fulano. Assim que ele me voltou as costas, disparo-lhe:
- Ó senhor tenente, espere aí por favor, o seu filho ficou-me a dever vinte e cinco tostões do serviço”.
O militar fez que não era com ele. Seguiu rua Direita abaixo embalado pelos tacões.

Passaram-se meses, talvez um ano. Noite dentro, o tenente Freitas desembarca, na estação de Santarém, acompanhado da esposa, do filho, e da nora com um bebé nos braços.. “ A rapariga, essa, pegou logo às primeiras. Pouco tempo depois do rapto, já andava na cidade, casada e de barriga aos queixos.”

Não havendo, na estação, outro carro de aluguer, teve de ser o meu pai a conduzi-los. Depressa, compreendeu que a fera do tenente Freitas não passava de um avô babado, a desfazer-se em gracinhas com o bebé.
Terminado o trajecto, o militar fez questão em ir primeiro encaminhar a família pela escada, só depois veio pagar.
- Então, ó chofer, tem aqui o custo do serviço, mais duas moedas. Esta é a dívida do meu filho e esta é a gorjeta.
- Senhor tenente, não me leve a mal, só recebo a dívida do seu filho. Com essa moeda faça o favor de comprar rebuçados para o seu netinho.

“ E sabem vocês que mais? Passados estes acontecimentos, vieram-me contar que, finalmente, o filho do tenente Freitas andava a tirar a carta de condução”.