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sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

CONTAS Do RECADO As pedras

Pedras

soltas e só

para além do olhar

pedras em cinza

deserto.

Porquê este plaino

em silêncio?

Day after... implosão 

de montanha

nuclear desgovernado

escórias de abusiva mineração...?

Minguante luar

 faz sobressair lajedo. 

É o palco  vazio onde chega 

a voz de conhecido ator anunciando a última 

representação .

Ficamos até ouvir:

"Acta est fabula".

Caem mais pedras.

Rio de Mouro, 15 dezembro 2022








domingo, 11 de dezembro de 2022

ESCREVIVÊNCIAS 2. 21 O MIGALHEIRO DE NATAL

 

 

O MIGALHEIRO DE NATAL

«Que é a vida, s’ Toino?», atirava-lhe o Domingos, quando entrava na taberna.

«Oh!... É uma vela de sebo a apagar-se», gemia.

Deixemo-nos hoje de lamúrias, António Metaneiro, que temos  obra à nossa espera. Nem mais, o prédio da Quinta.

 A residência dos proprietários  era a mais imponente da Portela. Um edifício de dois andares, farto de janelas.. Entrada principal, abrindo-se a sul -depois de quantos degraus? - por um arco de pedra, apoiado em mainel, ao centro. As águas do telhado: duas mestras, a nascente e poente fechadas por duas tacaniças. Chaminés.

 Mas tudo se dilui… Neste absurdo que me prende a uma casa onde nunca entrei. Lastro de paisagem em renúncia.  Flocos alvacentos,  laivados de vermelho terroso e cobalto. Num horizonte de verde-pinho.

***

Quem tinha tudo aquilo na cabeça era o António Metaneiro.

Vinha de uma família de metaneiros (1), nados e criados  na Quinta.  Pais, irmão e irmãs lá deixaram dedicação, saber, suor e pragas.

***

António. Enfermiço, agarrado à pinga. Entretinha-se com biscates em madeira: Ora peanhas para as candeias de azeite e candeeiros a petróleo ora galheteiros, caixas de costura, saleiros….

Objetos de  venda difícil, dada a resistência à compra de coisas passadas pelas  mãos de um tuberculoso. 

Tomava como matéria-prima tabuinhas toscas de caixote de sabão, cedidas pelo Gil da mercearia. Ou desperdícios  de  carpintaria da Quinta.

:***

Uma manhã, ao balcão da taberna, o Domingos tinha o António Metaneiro. Serviu-lhe a dose do costume, para mata-bicho: um traçado de aguardente e abafado.

Escorrida a pinga, o bebedor  confirmava a retirada do seu copo  para longe do uso dos outros bebedores, por via do contágio. Que fosse passado a cloreto e guardado debaixo do balcão. 

Já lhe bastava a ele! Nem  ao maior inimigo queria pegar aquele mal.

Felizmente só tinha amigos, gabava-se. Muito embora.

« Então e  hoje, o que leva aí na talega?»

Abriu e colocou em cima do balcão três peças cheirando a tinta fresca. Azul, branco, vermelho. 

«Como vês, Domingos, consegui! E cesteiro que faz um cesto…» 

Estariam à escala?  Tinha de construir uma bitola, para poupar tempo e material.

Arranjara compradores, melhor dizendo,  compradoras, no dispensário em Santarém. Haveriam de surgir mais encomendas. Talvez até o patrão do Domingos autorizasse a venda daquilo ali na loja. Iria deixar um exemplar para amostra. 

Era o prédio da Quinta, sem tirar nem pôr. Do lance de escadas, na entrada principal, aos para-raios!

***

Agora a porca torce o rabo. Como vou eu talhar na escrita o que o Domingos me garantiu ter visto afeiçoado pelas mãos do Metaneiro?

Talvez com a ajuda da Maria Afilhada.

***

Encontrámo-nos num almoço de confraternização de parentes, há uma dúzia de anos.

Mesmo alegando roubada de memória, ajudou.

A mãe era lavadeira na Quinta. Para não a deixar   sozinha em casa, levava-a consigo. Por lá passou a infância, descobrindo  cantos e recantos

«Ali também era a minha casa... Gostava que fosse. estão a ver...?

« A MINHA CASA

Tem lareiras e fogões a minha casa...»

Assim começara uma redação, na Escola, quando a professora pediu que descrevessem a casa onde moravam.

 Continuando, a garota chamou a si: a cozinha grande e farta, despensa e copa conformes. Salas e salões, escadarias, mármores, lambris...muitos quartos  quadros e retratos. Aromas de ceras e perfumes de banho…

Estarrecida,  pausava a leitura em voz alta, para ver o efeito na audiência.

«A tua, casa, Maria!! » gritou-lhe  a professora.

Risota na aula. Que  vergonha!!! 

«Olhem que ainda hoje tenho lágrimas nos olhos!!! Pois não! Aquele nunca podia ser o meu casulo. Havia na sala crianças descalças. Estava-se no inverno.»

 ***

Voltemos à   taberna... 

O Metaneiro não tardou,  para mostrar o molde.  

«Trinta e duas  janelas ... conta, Domingos!  Toda a gente sabe, o prédio tem mais uma janela do que os dias do mês.»

Agora, mãos à  obra. Ia fazer os seus migalheiros!!!!

Ou seja, mealheirosSiga a conversa.

************

Nascera e residira na Quinta dos Anjos mais de trinta anos. Como a doença não cedesse, António teve de sair para, com a mãe,  se fixarem na última casa habitável nos fundos da azinhaga da Besteira. Quase a chegar ao Cervato. 

Se nem o pinhal da Quinta nem o sanatório o haviam curado, deixassem-no, ao menos, ali morrer em paz, no isolamento do olival.

Com os olhos vidrados no prédio da Quinta, riscava, cortava, colava, pintava os migalheirosComprassem-lhos, sem asco. Soubessem apreciar cada miniatura, desde a barra azul do rés-do-chão à alvura das paredes. 

Apreciassem o rigor do entablamento, as inclinações do telhado, o alinhamento de chaminés e águas furtadas. A minúcia dos cunhais, cantarias, varandas.

E tirassem proveito das poupanças ali guardadas. 

Moedas ou até notas. Inseridas por uma ranhura horizontal, aberta a meio do trapézio da agua furtada do tardoz, caíam no bojo do prédio.

Viessem horas de aperto, bastava deslizar o fundo  para retirar a quantia em falta.

Se para os gastos chegasse. 

Os migalheiros do António Metaneiro. 

 ***

Naquele ermo, o doente e a mãe viviam sobretudo das dádivas do proprietário da Quinta. Com as quais ela  procurava pagar a renda da casa, comida, alguns medicamentos… E, antes de mais, vários carregos de vinho por semana, da taberna da Besteira. 

Reserva e compaixão da vizinhança, frente aos vaivéns e à desdita da velha Maria Metaneira

Pano sujo das escarnicadeiras, aquele martirizado viver de mãe e filho. 

Diziam que o Metaneiro se lhe desfazia em pedidos de perdão por coisas contra os costumes e a moral pública.

Nunca se descobriu o contorno entre verdade e infâmia naquilo que o António teria dito ou naquilo que os vizinhos lhe teriam posto na boca.

***

Constava ter mandado, em vésperas de Natal, oferecer, ao patrão dos Anjos, uma das mais perfeitas miniaturas  do migalheiro . Com um bilhete que ninguém leu… 

Que o destinatário arrepiasse caminho. Quanto a mancebias, ostentações marialvas e esbanjamentos da fortuna…Seria tão bonito se o patrão  deixasse de ser o «velho gaiteiro» e prezasse   mais os seus.

Num mundo ao contrário,  o beneficiado pregava virtude ao benfeitor.

 Nota: 1)- Metaneiro, aqui alcunha profissional. Designava trabalhador encarregado do abate e recolha dos metanos, as ramarias, para manutenção das matas.

 

 

 

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

ESCREVIVÊNCIAS 2. 20 O homem dos potes



 O homem dos potes

E o homem dos potes aqui me tornou. Com um atraso de....

Mas, primeiro, quem era ? De onde vinha? A que propósito ou despropósito? 

Sabe-se lá hoje! E décadas?

***

Conta tu, Domingos!

«Passos de bestas na areia da azinhaga. Vim à porta. 

Duas, arreatadas uma a outra, escondiam o dono. Pela carga, logo  compreendi: era o homem dos potes !»

Vinha aí o vendedor de potes, como todos os anos, quando a azeitona amadurecia e o sol quebrava.

Espantava que as suas garranotas aguentassem  tantos barros no lombo? Sem escoicinhar.... Nem desobedecer às vozes do condutor: Sempre certas nos batimentos dos cascos. Sempre em parelha.

 Mais uma venda à vista:

«Aí, primas

Quem não queria ter uma vasilha para adoçar azeitonas ? Para garantir  conduto pelo inverno fora.

Vinham aqueles três, sabe-se lá....

«Dos Alentejos!» 

****

 E cheguei a isto, digo eu, porque, em boa hora, me convidaram a largar o telemóvel e ouvir

"O homem da gaita", do Zeca Afonso.

A gosto fiquei , A gosto os meus ouvidos registaram a toada daquelas tamanquinhas do Zeca.

****

Só me distraí com a galhofa do Domingos:

"Vocês não acreditam!... O gajo seguia para a Azoia... Póvoa...Alcanhões.... Pela azinhaga.

O nosso Trrritrrró, ainda lhe gritou:

«Dê a volta pela estrrrrada nova, homem de Deus!

Qual quê!... Meteu por ali mesmo, direito a Vale de Lobos. 

«Já 'tão a ver o resto... Ai que estojo

 Quem conhecia o atalho daqueles tempos arriscava concluir a narrativa.

Não era caminho, era um córrego. Despedrado,  escorregadio. 

Onde se punha um pé logo se esborrachavam os queixos....

Deixá-lo ser casmurro. Há de arrepiar caminho.

***

Não tardou...

Aos berros... Quem estava na taberna confirmou o previsto.

« Bestas malvadas!  Só me apetece dar cabo delas!Estou desgraçado, Amigos!»

Tinha de ser! Embicaram  as azémolas. Adornaram e..

Perdera-se quase toda a mercadoria.  Na borda da azinhaga, ficou um montão de cacos.

Ora porquê? 

«Mas ouviu-se  o quê, compadre?»

« Ouviu-s...um rai' que parta dum sei lá o quê... Coisa maléfica que aluou as bestas.»

***

Que aquilo aluara as bestas, repetiu-se por lá durante décadas .

Aquilo era, só podia ter sido, o homem da gaita!  Bolas! Já por ali andaria...

E  bruto eu sou por nunca tal me ter ocorrido!

Aditamento:

Quando o meu irmão leu este relato tardio do desmemoriado que eu sou, alertou-me:

«Ponto de ordem ao contador...»

Faltava a opinião do Trrritrrrró....

Manel Direitinho,   assistiu a tudo calado. Quando acabou a lamúria do vendedor arruinado, saiu da taberna. Ia ver com os seus olhos.

Esteve no local com o Zé Lázaro. Observaram discutiram e, em conclusão:

 Os potes, sim senhores, os potes  é que se atiraram ao chão! Fartos de andanças no lombo das bestas .

Zé Lázaro manteve-se agarrado à ideia de  coisa ruim...

E, na manhã seguinte, atravessou o pinhal do Gato, para se pendurar numa oliveira .

***

Ponto de ordem aceite, meu irmão. Obrigado.

Rio de Mouro , 2022

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