O MIGALHEIRO DE NATAL
«Que é a vida, s’ Toino?», atirava-lhe o
Domingos, quando entrava na taberna.
«Oh!... É uma vela de sebo a apagar-se»,
gemia.
Deixemo-nos hoje de lamúrias, António Metaneiro, que temos obra à nossa espera. Nem mais,
o prédio da Quinta.
A residência dos proprietários
era a mais imponente da Portela. Um edifício de dois andares, farto de janelas.. Entrada principal, abrindo-se a sul -depois de quantos
degraus? - por um arco de pedra, apoiado em mainel, ao centro. As
águas do telhado: duas mestras, a nascente e poente fechadas por duas tacaniças. Chaminés.
Mas tudo se dilui… Neste absurdo que me prende a uma casa onde nunca
entrei. Lastro de paisagem em renúncia. Flocos alvacentos, laivados de vermelho terroso e cobalto. Num horizonte de verde-pinho.
***
Quem tinha tudo aquilo na cabeça era o António Metaneiro.
Vinha de uma família de metaneiros
(1), nados e criados na Quinta. Pais, irmão e irmãs
lá deixaram dedicação, saber, suor e pragas.
***
António. Enfermiço, agarrado à pinga. Entretinha-se
com biscates em madeira: Ora peanhas para as candeias de azeite e candeeiros a petróleo ora galheteiros, caixas de costura,
saleiros….
Objetos de venda difícil, dada a resistência
à compra de coisas passadas pelas mãos de um tuberculoso.
Tomava como matéria-prima tabuinhas toscas
de caixote de sabão, cedidas pelo Gil da mercearia. Ou desperdícios de carpintaria da Quinta.
:***
Uma manhã, ao balcão da taberna, o
Domingos tinha o António Metaneiro. Serviu-lhe a dose do costume, para mata-bicho: um traçado de aguardente e abafado.
Escorrida a pinga, o bebedor confirmava
a retirada do seu copo para longe do uso dos outros bebedores,
por via do contágio. Que fosse passado a cloreto e guardado debaixo do balcão.
Já lhe bastava a ele! Nem ao maior
inimigo queria pegar aquele mal.
Felizmente só tinha amigos, gabava-se. Muito embora.
« Então e
hoje, o que leva aí na talega?»
Abriu e colocou em cima do balcão três
peças cheirando a tinta fresca. Azul, branco, vermelho.
«Como vês, Domingos, consegui! E cesteiro
que faz um cesto…»
Estariam à escala? Tinha de construir uma bitola, para poupar tempo e
material.
Arranjara compradores, melhor
dizendo, compradoras, no dispensário em Santarém. Haveriam de surgir
mais encomendas. Talvez até o patrão do Domingos autorizasse a venda daquilo
ali na loja. Iria deixar um exemplar para amostra.
Era o prédio da Quinta, sem tirar nem
pôr. Do lance de escadas, na entrada principal, aos para-raios!
***
Agora a porca torce o rabo. Como vou
eu talhar na escrita o que o Domingos me garantiu ter visto afeiçoado pelas
mãos do Metaneiro?
Talvez com a ajuda da Maria Afilhada.
***
Encontrámo-nos num almoço de
confraternização de parentes, há uma dúzia de anos.
Mesmo alegando roubada de memória, ajudou.
A mãe era
lavadeira na Quinta. Para não a deixar sozinha em casa, levava-a consigo. Por lá passou
a infância, descobrindo cantos e recantos
«Ali também era a minha casa... Gostava que
fosse. estão a ver...?
« A MINHA CASA
Tem lareiras e fogões a minha casa...»
Assim começara uma redação, na Escola,
quando a professora pediu que descrevessem a casa onde moravam.
Continuando, a garota chamou a si: a cozinha grande e farta, despensa e copa
conformes. Salas e salões, escadarias, mármores, lambris...muitos quartos
quadros e retratos. Aromas de ceras e perfumes de banho…
Estarrecida, pausava a leitura em voz alta, para ver o
efeito na audiência.
«A tua, casa, Maria!! » gritou-lhe a professora.
Risota na aula. Que vergonha!!!
«Olhem que ainda hoje tenho lágrimas nos
olhos!!! Pois não! Aquele nunca podia ser o meu casulo. Havia na sala crianças descalças. Estava-se no inverno.»
***
Voltemos à taberna...
O Metaneiro não tardou, para mostrar o molde.
«Trinta e duas janelas ... conta, Domingos! Toda a gente sabe, o prédio tem mais uma janela
do que os dias do mês.»
Agora, mãos à obra. Ia fazer os seus migalheiros!!!!
Ou seja, mealheiros! Siga a conversa.
************
Nascera e residira na Quinta dos
Anjos mais de trinta anos. Como a doença não cedesse, António teve de sair para, com a
mãe, se fixarem na última casa habitável nos fundos da
azinhaga da Besteira. Quase a chegar ao Cervato.
Se nem o pinhal da Quinta nem o sanatório
o haviam curado, deixassem-no, ao menos, ali morrer em paz, no isolamento do olival.
Com os olhos vidrados no prédio da Quinta, riscava, cortava, colava, pintava os migalheiros. Comprassem-lhos, sem
asco. Soubessem apreciar cada miniatura, desde a barra azul do rés-do-chão à alvura
das paredes.
Apreciassem o rigor do entablamento, as inclinações do telhado, o alinhamento de chaminés e águas furtadas. A
minúcia dos cunhais, cantarias, varandas.
E tirassem
proveito das poupanças ali guardadas.
Moedas ou até notas. Inseridas por
uma ranhura horizontal, aberta a meio do trapézio da agua furtada do tardoz,
caíam no bojo do prédio.
Viessem horas de aperto, bastava deslizar
o fundo para retirar a quantia em falta.
Se para os gastos chegasse.
Os migalheiros do António
Metaneiro.
***
Naquele ermo, o doente e a mãe
viviam sobretudo das dádivas do proprietário da Quinta. Com as quais ela
procurava pagar a renda da casa, comida, alguns medicamentos… E, antes de mais,
vários carregos de vinho por semana, da taberna da Besteira.
Reserva e compaixão da vizinhança, frente
aos vaivéns e à desdita da velha Maria Metaneira
Pano sujo das escarnicadeiras, aquele martirizado viver
de mãe e filho.
Diziam que o Metaneiro se lhe desfazia em pedidos de perdão por coisas contra os costumes e a moral pública.
Nunca se descobriu o contorno entre
verdade e infâmia naquilo que o António teria dito ou naquilo que os vizinhos
lhe teriam posto na boca.
***
Constava ter mandado, em vésperas de
Natal, oferecer, ao patrão dos Anjos, uma
das mais perfeitas miniaturas do migalheiro
. Com um bilhete que ninguém leu…
Que o destinatário arrepiasse caminho. Quanto a mancebias, ostentações
marialvas e esbanjamentos da fortuna…Seria tão bonito se o patrão deixasse de ser o «velho
gaiteiro» e prezasse mais os seus.
Num mundo ao contrário, o
beneficiado pregava virtude ao benfeitor.
Nota: 1)- Metaneiro, aqui alcunha profissional. Designava trabalhador encarregado do abate e recolha dos metanos, as ramarias, para manutenção das
matas.