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segunda-feira, 28 de março de 2022

ESCREVIVÊNCIAS 2.9 O badalisco

  

 

Badalisco?


A festa já não era pertença do povo, afinal. Contava a minha mãe que a população perdera no tempo da Primeira Republica o consuetudinário livre acesso à capela. A Quinta cedera terreno para a construção da escola primária mas assumiu a salvaguarda do  culto. Isto já foi redito.

Não é missão menor, essa de conservar o património cultural e afetivo de uma comunidade. Obriga a critérios, investimentos, planos de ação, que não dependem apenas do Estado. Para já não falar de outro encargo remetido para as explorações agrícolas: a defesa da paisagem, dos ecossistemas... do verde. Daqui lavemos as mãos.

 A República laica, em muitos aspetos anticlerical e alvo do obscurantismo religioso, na sua fase inicial e durante o Estado Novo, mais do que construtora de escolas, foi também, sempre que a liberdade o permitiu, promotora da alteridade democrática. Ao celebrarmos o centenário do regime, é imperioso sublinhar o facto. Ainda que durante duas gerações se tenha permitido tamanha promiscuidade entre poder político, económico, religioso e social.

Com a integração da capela, pertença afetiva e cultural da comunidade, no património da Quinta, houve algum ressentimento popular. Já sem grande repercussão, ao tempo da minha infância. A não ser quanto à tutela do Badalisco. Não estou a referir-me a um santo, muito pelo contrário.

            Lá se ficou na mão de privados, o Badalisco. Se assim não fosse, ter-se-lhe-ia perdido o rasto, estou certo. Disseram-me há alguns meses que, entretanto, só se perdeu uma pata! Pergunto: quem se pôs a medir forças com o bicho? Onde param as criaturas capazes de desfear ainda mais um, já duplamente punido, anjo perverso? Perverso, mas filho do mesmo criador. Que pressa em extinguir toda a diversidade. Na Terra e no Além. Não há direito!

            Badalisco. Fera medonha. Saiu um dia ao caminho de um caçador, no bosque das imediações da Capela. E não seria a lenda apenas um terror para afastar caçadores furtivos de tais coitos? Desvairado, o pobre monteiro, mal teve fôlego para implorar a ajuda de Nossa Senhora dos Anjos. Naquela mesma toada do D. Fuas, no Sítio da Nazaré. Com a diferença: não houve tabelião que anotasse o nome do nosso monteiro. 

Nem admito que a Maria Alzira retire de algum cartório prova contrária à minha afirmação. 

Valha-me Nossa Senhora dos Anjos!

 Aí vem a santinha, por cima dos pinheiros, (regressará séculos volvidos, a umas boas léguas dali, empalancada numa azinheira) para comandar os trabalhos de uma outra fera, a Serpente.

 Obedecendo à Mulher, escrito está, enrola-se a bicha no disforme Badalisco e lhe tolhe as garras. Como, entre Serpente assanhada e a tal outra feia criatura, tivesse de vir o Diabo escolher – o que redobraria as complicações em tais brenhas! – decide-se a Senhora dos Anjos pela conversão em ferro das duas alimárias contendoras. Até à ruína dos tempos!

Guardou-se na sacristia da capela a comprovativa estatuária. Ainda estava por nascer, ouvi em menino, o valentaço capaz de levantar do chão tal ferro, fundido pelo fogo dos céus.

Que eu saiba, não houve mais aparições pelas quintas e quintais das cercanias. 

Embora línguas peçonhentas garantissem que D. Maria Alva implorava ao Carlinhos da Asseiceira…. A ele que já apalavrara com a Senhora, lá para os lados de Rio Maior, a repetição de um milagre nas terras dos Alvas. Honras seriam tributadas com santuário e hossanas. Seguramente que Zé Alva deixaria de beber. Isso sim, não seria milagre de somenos. Todavia os céus não estavam de feição.

Na quinta dos Anjos. «E o caçador, mãe?», indagava eu, na mira de prolongar a história. Mijara-se todo com a aparição do Badalisco! Já não me lembro se o milagre incluía roupa lavada.

 Com a estátua do monstro nunca fui medir forças, nem me lembro de lhe ter posto os olhos em cima. Isto é, a não ser pela Internet, em data bem recente.

 Os meninos da escola da Portela globalizaram o Badalisco. Esse meu encontro virtual, a meio da noite, com o monstro, agora inofensivo, saldou-se por um inexprimível conforto. Que alívio! Depois, caí na cama e dormi como um justo. O Badalisco estava virtualmente eternizado.

Ai, se a surdez da minha mãe me tivesse deixado contar-lhe! 
Quando as suas últimas memórias giravam pela capela dos Anjos, perguntou-me, um dia, inquieta: «Ó filho, sempre teria sido verdade que a senhora D. Maria Romana deu o Badalisco ao lingrinhas do….?» Com a pergunta veio logo a resposta e pôs-se uma pedra sobre: «Olha qu’essa! E depois como é que aquele fanico de gente o levava para casa!» 
D. Maria Romana era a respeitabilíssima proprietária da Quinta dos Anjos.
Temia pela segurança da estátua, a minha mãe. Grande erro teria sido se tivessem arrancado o monstro ao território onde as forças celestes o haviam consignado. 
A matéria estava fora das minhas competências! Só me faltava, agora, tropeçar nessa criatura.

* Nota: este texto foi redigido em 2010.

(Continua)

sexta-feira, 25 de março de 2022

CONTAS DO RECADO : Estórias e tisanas

                                         Estórias  e tisanas

Agora este. Produz literatura  por encomenda, para quem passe pelas ruas do Funchal. Ao que me contaram, entenda-se.

Aguarda clientes, ao lado do seu carrinho de compras . Fuma em silêncio.

Aos pés, duas latas. Uma cheia, a das beatas; outra sem cheta. Quantas moedas ali caem, até ao fim da espera? 

Alinhado com vendedoras de flores. Espera, quase estátua.

Logo a seguir à velhota que oferece tisanas  de boa saúde em  raminhos de macela. 

Desce esta do Monte,  no primeiro autocarro. Tira a mercadoria da cesta-galinheira e....

Pobre será a freguesia. Mas  isso não lhe empece os sorrisos nem os elogios aos simples da cesta. Mais do que todos, à macela! Tisanas para muitas maleitas. Com a graça de Deus!, acrescenta.

E o seu vizinho vai aparecer? Qual será a vida daquele rapaz?

Há de chegar de mansinho:

Hi!

- Ai?!..... Bom dia! Alegre-se! Hoje é que vai ser!....

Pudesse ela espevitar aquele pobre  diabo! Que mau passadio terá tido , antes de aparecer ali?

Por vezes atira-lhe: 

- Somos almas livres, homem! Ponha  cara mais alegre!

Como resposta, ele ergue o  polegar:

 Fixe! Tudo bem! Like! 


***

No fim da manhã, talvez a ervanária já  tenha   para ir comprar uns restos, nas bancas dos Lavradores

Sim ou não, há que regressar. O autocarro, esse, não espera.

Parte, com a sua esgarçada cesta  de verga,  à cabeça.

-Passe bem, vizinho!

E ele reergue o polegar. Sem abrir bico nem aquecer o olhar.

Queimará mais uns charros e umas horas até descolar. Puxando pelo... trolley. 

Sem lhe tirar o pouco convincente dístico publicitário:  

POET FOR HIRE.  Pay with what you like.... Especialista em   poemas, estórias, estórias de... suicídios!

À vontade do passante! Que também pode ajudar a lata, se não estiver para adquirir os serviços do artista.

Quantas suicídios carregará  aquele carrinho?

Mas os carros de compras não contam estórias...




terça-feira, 22 de março de 2022

ESCREVIVENCIAS.2. 8 Quinta dos Anjos

 

Quinta dos Anjos 

A minha mãe, inquieta, no inverno: «Já o sol se pôs, atrás da Quinta dos Anjos…».

«Com um fósforo,  apago-a! », raivava o Raul da Romeira.

O Rebelana: «Vou-t’a contar…» E discorria sobre a fuga do texugo.

Lá iremos....


A Quinta dos Anjos resiste! Até quando?....

 Meu ameaçado urso solitário, para onde caminhas?

Até quando, engenheiro Fernando Caldas? 

Por favor, em nome da memória dos seus, dos vizinhos e descendentes de antigos trabalhadores, não permita que a Quinta seja sacrificada às leis do mercado.

 Do ponto de vista cultural, a Quinta é de todos nós. Dos filhos e netos de quem aí trabalhou, de quem aí se divertiu e rezou nas romarias. De quem ali foi levado ao batismo, à comunhão, casou ou assistiu a ofícios fúnebres. Os agnósticos também têm memória religiosa! 

De quem se orgulhou da perfeição do trabalho prestado e da grandeza dos empregadores. – 

Quantas pessoas ainda vivas, sem qualquer laço de parentesco com àquela família não sofreram também com os seus desgostos? 

– De quem ali foi roubar lenha, fruta ou caça… De quem ali estaria disposto a regressar para reencenar  a tragicomédia... .

Sei que tudo isto  deu muita volta! Mudam-se os tempos!

 Eu? Não passo de um absentista, com duvidoso voto em matéria ambiental, dir-me-ão. Se os proprietários de pequenas frações, na vizinhança, se submeteram, para sobreviver, à lógica da oferta e da procura…

Porém, há património invendível! O das memórias, por exemplo. Mude a Quinta de dono, de funções ou de feições… Fique o sítio irreconhecível.,,

Avancemos.

Tenho quatro ou cinco anos e assisto ao casamento da Ilda Direitinho com o Joaquim Caetano, tratoristas da Quinta. 

Permanece a capela branca no meu olhar. A imagem da Senhora brincando com o pezito do bebé. Nisso vejo eu divindade, não nas coroas carnavalescas com que embarretaram as figuras do altar. A alvura das casas da quinta velha. Ao lado da capela, a horta, as abelhas do ti’ Caréu, parente do meu avô António...

 «O ti’ Caréu, fazia outro tanto, Thomas», tornava eu ao meu amigo borgonhês, apicultor que, sem máscara nem luvas, recolhia as suas abelhas na colmeia. Só com um assobio. Allez!

Havia também por ali, perto da capela, um moinho, onde meu pai mandava farinar as rações do gado. Um picadeiro?… Já não atino.

 Na leitaria, impecavelmente limpa, a tia Luísa Caréu, atende a freguesia, avisa: «Amanhã há manteiga. Hoje não se despacha o leite todo…» Do lado de fora do balcão, o moço da vacaria, Manel da Vaca – alcunha do Manuel Custódio, filho do Júlio Bimbo, apimenta a conversa:

 «Ó ti´ Luísa, se as vacas cada vez têm as mamas maiores…» Daí, vai-se descambar em mamas que já não são de vaca.

 Júlio Bimbo viera dos lados de Viseu, para trabalho sazonal na Quinta. Ficou. Mais um, para engrossar a população da Portela, com filharada incontável. A minha homenagem à ti’ Maria da Luz. As todas as criadeiras de famílias pobres e numerosas daqueles tempos. Mães-coragem!

Os pavões.

 Quantas vezes já falei ou fiz falar dos pavões da Quinta dos Anjos. Que querem? Se continuo a ouvi-los, aos pavões e à explicação do Coquelim sobre os intentos daquele apelo cortante: cobrir as fêmeas, desfazer-lhes os ninhos, dar cabo das crias implumes… Poderia haver tanta maldade na natureza paterna? Inquietava-me. 

Deixa-os estar, por hoje. Aos pavões que já lá não vivem, conforme os reparos da Maria Alzira.

 Ouçamos antes estas rolas, estas urbanas e emigradas da Turquia, primas colombinas das outras que vinham ao concerto  das pinhas ressequindo-se, de Maio a Setembro, na coutada dos Anjos. Também a memória precisa de transmigrar, para alívio dos loucos.

Deixa lá estar aquelas penas verde-azul-e-ouro que o Joaquim Caetano trazia para a Ilda, minha vizinha, quando a vinha namorar? Ali, espetadas na areia de uma jarra em cima da cómoda da casa-de-fora do Manuel Direitinho. 

Tudo à volta ruiu, só te ficaram as penas de pavão. Quais penas, mentiroso? Acorda!

Tem a capela dos Anjos o portal, com galilé de oito colunas lisas, virado para poente. Não me esqueci deste número, ou estou enganado? No átrio, junto ao cruzeiro, vejo a minha tia Piedade, a senhora que me enrolou nesta história. «Conta, Quim, ajuda-me a contar.» Outra vez ela, no último adeus. Ela e a Bia com um sufoco: «Acabou-se tudo! Os próximos…» 

Os próximos somos nós. Por isso, contemos.

Piedade. Jovem, sorridente, transportando uma fogaça, na festa dos Anjos, de 1949 ou 50. Chegara o cortejo das fogaceiras, depois de subir da Portela, desde a porta do Cruz de Cristo – a sociedade recreativa de que meu pai e meu tio Adelino Carolo foram cofundadores. Começou a missa.

            Há sermão na capela apinhada. Solto-me da mão de minha mãe e furo pela multidão à procura da claridade. Da rua. Levaram-me à capela a pretexto de ir apreciar as searinhas do altar. Não vi lá searas nenhumas! Searas eram os meus olhos castanhos nos alqueives, os meus olhos verdes nas encostas e cabeços, os meus olhos de ouro na ceifa e debulha.

 Hei de passar décadas a pedir explicações à minha mãe sobre o uso das sementes germinadas na decoração do altar pela festa dos Anjos. Uma vez, acrescentou um pormenor chave: «Era uma festa do Espírito Santo. Com os alguidares de searinhas pedia-se melhor sorte na lavoira!»

 Cinquenta anos depois, encontro um açoriano numa casa de sementes, em Lisboa. Compra ervilhas, para fazer searinhas, num recanto do seu andar da Morais Soares. «É preciso que as folhas fiquem brancas, como as asas dos anjinhos. Era assim, lá na ilha!» Os tabuleiros de germinação não podiam receber qualquer luz, enquanto as plantas se esforçavam por crescer.

Estas searas-miniatura eram ainda utilizadas como decoração de montras, durante as primeiras Feiras do Ribatejo. Touros, campinos, cavalos e carneiros, em barro, davam por uns dias cor a espaços onde, antes, estavam expostos queijos, presuntos, peças de roupa ou relógios… Os meus olhos de rapazinho de dez anos embeveciam-se com toda aquela metáfora agrícola da nossa terra.

Na galilé da capela, encontro o Manuel Direitinho, desbarretado, por respeito ao lugar e resmungão, por inércia. Queixando-se do «gajo das saias» que nunca mais…Acabava a pregação. O velho já andara seguramente pelo arraial ou estivera a beber na taberna do Pedro Carolo.

A Quinta dos Anjos defendia-se dos intrusos mediante uma cercadura de valados: espaldas de terra batida, encabeçadas por balças e arame farpado. A alvenaria ficara-se só pelo portão sólido, grandioso. Dois pescoços-de.cavalo, garimpa alta, suportavam os gonzos do portão de ferro. Segurança e privacidade. Só que frente da taberna do Pedro Carolo, mantinha-se uma incolmatável brecha no valado. Não era um porto escancarado, a convidar à devassa, antes discreto postigo de vaivém para o vinho, a aguardente e o tabaco. Como se a taberna fosse cantina da Quinta.

Manuel Direitinho não gostava de padres. Quanto mais não fosse por usarem aquele disfarce das saias, como as mulheres. Na sua mocidade, um padre revelara-lhe o jogo – contar-me-á uma dúzia de anos depois, revelho, retorcido, arrastando sempre os erres – : «Comem carrne na Qu’rrresma, e as mulherres dos outrros todo ano». 

Bons estômagos, que lhes faça bom proveito.

 Conclusão tirada pelas confidências de um pregador, aboletado na casa dos Direitinhos, durante uma festividade dos Anjos, ainda nos tempos de El-rei D. Carlos.

            Ouvem-se foguetes, outra vez. Antes, já me tinham despertado pela alvorada.

O milho de sequeiro, cuja bandeira não ouvisse os foguetes da festa dos Anjos, não se contasse com ele. Ditos da Clemência, bisavó do meu colega Daniel, pela voz da filha Lúcia.

 Andavam  os festeiros, pelas casas da Besteira, na recolha de donativos  para a quermesse. À porta da cozinha da minha casa, o Brás Pedreiro, opa vermelha, na companhia de músicos e do fogueteiro, dava o Menino Jesus a beijar. 

Guarda o donativo da nossa casa e ordena que se estoire um foguete. Caio num berreiro. Por causa do meu horror aos estampidos, o meu pai pede que se evite o fogo. Como alternativa, o Brás acha-se na obrigação de entregar o foguete por deflagrar, e meu pai vai guardá-lo nas ripas do telhado da casa do carro. Onde ficará meses a tentar-me…” Se lhe chegasse um tição?”

(Continua)

 

 

segunda-feira, 21 de março de 2022

CONTAS DO RECADO ; A mochila do trovador

 

 A  mochila do trovador

Ocorrem reencontros com almas livres, na confusa franja das ruas. Por esse mundo de desvairadas multidões...


Aquele poeta callejero vociferando  aos vadiantes.   A  batucar as   botifarras no pavimento, para ritmar as trovas.  No sobe-e-desce das Ramblas

Continua nos ouvidos do contador desta história

E quando um português, de passagem, lhe prestou atenção, o poeta  estacou, para perguntar o que  fazia o outro  na vida. 

Professor!

Professor?! Logo o  selou  como hermano, com um palmadão nas costas. E vamos ao que interessa!

 Sacou da mochila...  Pois, ali estava! 

Comprando- lhe  um daqueles seus libritos de poemas, ajudá-lo-ia a sobreviver e, como propina, seria até portador de uma especial mensagem para os seus  alunos, em ...? 

 Sintra! 

Negócio fechado!

Quando no regresso à Escola, o viajante prestou contas do recado, ouviu de réplica :

  - Professor, queremos ir consigo a Barcelona! Agradecer a esse  gajo!

Breves são os sonhos....

O Poeta Callejero !

Quantos anos mais teria  tal gajo  andado pelas Ramblas? A bater no chão e a tirar sustento  da mochila? 

E dos então jovens de Sintra, alguém se lembrará, hoje, da sua mensagem de  Paz, Esperança e Fraternia? 

Não importa se esqueceram o mensageiro. 

Sintra, 21-3-2022

sábado, 19 de março de 2022

ESCREVIVENCIAS.2. 7 Voando no Google sobre as quintas

 

 

Parado no cabeço da Torre, nas imediações da casa de meus avós Maronas. 

É um retorno recorrente pela memória, pelo sonho. Também me sirvo do Google Maps, para confirmar a irreversível desintegração da paisagem infantil. Ou a sua dolorosa posfiguração.

Cada sol nascente, o meu avô Joaquim, debruçado no muro do casal, mesmo antes de orientar a jeira, enfurecia-se contra o Cabeço do Zeimoto. Do Zé Morto, que já é mais nome de cristão. Tolhia-lhe, aquele morro, a visão das águas do Tejo. Sobretudo, das vinhas no campo do Rossio. Tal contenda de gigantes era motivo de calada chacota da família.

De igual modo me confronto com as imagens do Google, sem o desvario de as pretender arrasar, devolvendo-as ao uso agrícola do passado. Vejo na mancha verde da Quinta dos Anjos um velho urso, sonolento, solitário como todos os velhos, caminhando. Vou-lhe na peugada com o devido atraso de quem se desloca, ao longo da Azinhaga da Besteira.

Voltando ao olhar matinal do meu avô…Teria a força de quem se julgava capaz de emprenhar a terra!

Caminho fora! 

Santarém avista-se a uma légua, mediam os antigos. Impondo a torre do Convento da Trindade e o zimbório do Presídio Militar, por sobre oliveiras e pinheiros das minhas cercanias. Sinto-me, ainda, ali prisioneiro, entre valados cobertos pelas balças...

 Assim se teria sentido a minha mãe, quando deixou o Casal das Labaças para fixar residência mais perto da Portela, no local que na sua infância se chamaria Vinha Velha. Ou Venda Velha. Que importância isso tem agora?

 Por ali se demorou quase setenta anos. Até que um dia…

Abriu os olhos, compreendeu que já não era a sua casa, a nossa casa. Sorriu-me e começou a cantarolar, na cama do Hospital:

“Já não tenho pai nem mãe

Nem nesta terra parentes

Sou filha das tristes ervas

Neta das águas correntes

 

As flores do meu jardim

Fizeram uma sociedade

Malmequer e amor-perfeito

Açucena e mais saudade”

 Só à beira-fim lhe ouvi tão conformada elegia. Rendia-se à Natureza, dando-nos mais uma lição. De vida não, de morte!

Eu e os meus, deixámos para trás as encostas de suave-verde deslize para a Vala, ou seja, para a ribeira de Cabanos e os seus pauis.

 As quintas. Terra do Cervato, Quinta das Trigosas. Ambas associadas à luta agrícola do avô Marona. Não lhe pertenciam, mas tomou de renda aquelas chapadas, para arrotear, surribar, plantar oliveiras, semear… Pão e, pelo menos, dois filhos, carinhas chapadas, nunca assumidos. Dizia-se.

Quinta da Comenda. Irrompe, numa mancha malva, do arvoredo, antes do casario branco de Alcanhões. Dali saíam as “tralhoadas”, de gado bravio, já humilhado por corridas, castrações e, finalmente, pelas cangas. Para as lavouras no património do Comendador, íntimo de Alexandre Herculano, em Vale de Lobos. Adversário figadal do meu avô Joaquim que, de sangue mais fresco, lhe levou a palma nos favores de uma mulher. Pagou cara a aventura o pequeno agricultor. Ameaças, tiroteios, incêndios de casas e searas. Para ordenar vingança, não estava o Comendador impotente. Da Comenda saíam, a seu tempo, as senhoras acólitas do reverendo Formigão, a fim de que o milagre dos mil sóis sobrevivesse à lógica dos positivistas. Proselitismo cronicado por um empedernido ateu. Tomás da Fonseca.

 Da Comenda todos tinham saído. Deixando para trás portões, portas e janelas, tudo escancarado, na residência dos senhores, nos quartéis dos trabalhadores, nos palheiros e estábulos. Apenas duas rabilongas viuvinhas, riscaram o ar, quando um homem e uma mulher entraram a furto no pátio, ao cair do século XX. Ninguém que lhes vedasse o engodo das sombras, pelas escadas, corredores, salões, quartos… Nada que não fosse silêncio e calor estival. A que se sobrepôs um estranho, súbito, desejo. Porquê?

Quinta da Besteira. Primeiro, a família Constâncio, falhada na gestão dos bens. Quer directa quer por arrendamento ao lavrador José Tropa, da Granja. Num tempo de produzir trigo para povos em guerra na Europa.

 Meu pai foi lá motorista. Chofer, à disposição da senhora, nem sempre com salário completo e pontual. Em contraste com a ostentação dos patrões por Lisboa, Sintra, Cascais. Despediram-no, por não poderem suportar os custos do seu trabalho, embora o chamassem para ocasional serviço de táxi, enquanto se mantiveram na Quinta. Lembro-me de, muito criança, ter estado na cozinha dos senhores Constâncios. Ao meu pai, ofereceram café. A mim, uma maçã.

 Já não sei contar o episódio de um Constâncio infeliz. Enleou o atacador do sapato no gatilho e esticou a perna. O tecto aparou-lhe o cérebro. Por dívidas de jogo, explicavam os criados. Para não ter de executar um amigo, conforme lhe caíra em sorte num julgamento do clube maçónico. Na versão dilatada pelo sogro, o comendador Paulino. Que lhe teria deixado a espingarda em cima da cama, com a recomendação de já estar carregada, acrescentava a criadagem. Honra.

 Pelos meus cinco anos a quinta foi adquirida pelo Dr. Artur Duarte. Advogado e deputado da Nação.

No final dos anos cinquenta, Domingos Constâncio, desviou o carro, numa viagem de regresso a Lisboa, atraído pelo antigo domínio familiar. Emoções. No entanto, acabou por não ir além da adega dos meus pais, onde, bebericando, se refez das saudades. Insistindo para que o meu pai não continuasse a tratá-lo por menino Domingos. Catarse pelo álcool.

Voltemos, num rápido, à confinante Quinta das Trigosas. As duas maiores parcelas desta unidade agrícola foram trucidadas. Pela auto-estrada, que levou também parte da Quinta dos Anjos e da Mafarra, aproximando da loucura alguns dos moradores da vizinhança. E por dúbios projectos industriais e imobiliários. Daqueles que, não resolvendo o desabrigo, nem reduzindo o desemprego, exaltam a ganância. Por cima e por baixo da mesa.

Alto! O Google já me trouxe para o entroncamento da Rua 19 de Março com a Nacional 3. Sem me assinalar o começo da Azinhaga da Besteira…

Olhem que nem parei, para uma cambalhota, ao Rebola Cabacinha, em frente do portão da Quinta do Casalinho. Agora também não paro à porta do Gil. Fica para outro dia, quando for para a Escola.

 Preparem-se, pois dessa vez venho a pé, como sempre.

domingo, 13 de março de 2022

ESCREVIVENCIAS.2 6 As leituras da avó Otília

 6 As leituras da avó Otília

 

Livros da Portela antiga. De um sítio onde, além dos poucos manuais escolares… só haveria mais o “livro da mercearia”, escriturado a rogo das mulheres. «Se fizer favor, escreva lá esta quartinha de açúcar…». Mais o  “da taberna”, onde os homens mandavam. «Assente, que depois se paga!» Quando?

Acabámos aqui? Deixem-me indagar.

 Na minha família, a primeira geração com aprendizagem metódica das letras, capaz de enfrentar de pontas um livro, foi a de meus pais e tios… Assim pensava, até que tive de mudar de opinião.

 Abria-se uma excepção para o meu bisavô Hipólito, que frequentara o seminário. Ressalve-se a confusão seminário/liceu, numa cidade em que os estabelecimentos religiosos e laicos eram contíguos. Coisa a ser retomada, por nunca esclarecida.

 Os meus avôs António Beja e Joaquim Marona tinham uma literacia muito parcial: o primeiro, entendia-se com as gordas d’O Século; já o segundo só conseguia fazer anotações mais ou menos alfanuméricas, suficientes para assegurar a contabilidade agrícola. Testemunho da minha mãe que dele aprendeu a fazer as folhas semanais de ponto do pessoal trabalhador. Pelo menos, recolheu esta vantagem pela breve escolarização que permitiu à filha… Porém, que mais se podia pedir a um homem educado apenas pela labuta da Quinta da Mafarra, continuada na vizinha Quinta dos Anjos?

Sobre quantos antepassados analfabetos assenta este nosso privilégio? Perguntava por aí o nosso quase vizinho poeta Ruy Belo.

 Das avós, irmãs, ambas filhas do bisavô Hipólito […] Guardo o sorriso da materna, Gertrudes, numa cara de lua-cheia. Quando me ouvia ler textos das primeiras classes. Pedia-me que repetisse: «A raposa ladina? Ladina? Diz aí no teu livro? Ai se é… a marota! Lê mais, filho.» Deliciada com as minhas competências.

 E Otília, a avó paterna. “Mulher-e-homem da casa”, como a definirá a filha Piedade. Azougada. Sempre a esbracejar contra a adversidade. Criou quatro filhos, costurou, cultivou a horta, colheu e vendeu os seus primores. […] Setentona, quando merecia o descanso, as coisas pioraram. O meu avô ficou imobilizado por uma congestão cerebral e ela teve de reencontrar escondidas energias.

 Agora a minha surpresa, razão para antecipar esta “escrevivência”, ou sejam: As leituras da avó Otília.

 Numa das minhas visitas, pelos meus vinte anos, esta avó pediu-me livros emprestados. Livros?! Sabia ler?! Caí da tripeça! Sim, livros, para se distrair. Enganar o tempo, à cabeceira do doente.

Julgava-a tão incapaz de ler como a avó Gertrudes. Mesmo assim, trouxe-lhe livros, que apreciou por falarem do nosso mundo rural. Redol. Pedia mais.

Só agora sei que a nossa Maria Alzira era outra fornecedora.

 Explicou-me que, durante anos, se desinteressara de tal maneira pela leitura a ponto de se convencer de que perdera essa habilidade. Um dia, vencera tal derrota, retomando da poeira dois ou três trastes encoirados. Edições dos finais do século XVIII. Provavelmente provenientes do saque de ignaros à livraria de algum convento, quando da extinção das ordens religiosas. Tinham chegado à família pela mão do meu bisavô Hipólito. Um deles era uma Virtuosa Vida de São… São Não Sei Quem, tomo que nunca mais compulsei.

O outro, um romance de cavalaria. Com personagens e enredos que ainda hoje alimentam o teatro popular transmontano e santomense.

Passados mais trinta anos, perguntei à minha tia Piedade pelo paradeiro dessa livralhada. Estou neste momento a ouvir-lhe a voz musical, tranquila. «Ò Quim, onde pára tal coisa?...» Que, sem dúvida, se lembrava…capa de pele, avô Hipólito, arrumados entre peças de louça de Sacavém.

 Dias mais tarde, remeteu-me de Almeirim a História de Carlos Magno e dos doze pares de França. Na lombada, num resto dourado, apenas Carlos Magno. Sem portadas, nem guardas. Cap.1 do Livro Primeiro: Como el-rei Clóvis sendo pagão e infiel, teve por mulher Clotildes, cristâ, neta d’el-rei Guido e sobrinha d’el-rei Agabundo da Borgonha…

Mais do que a matéria carolíngia, fascinou-me naquela peça bibliográfica a nota lançada a tinta pelo meu bisavô: “Meu filho José Hypolito / Nasceu a 20 de Dezembro de 1887. Francisco Hypólito da Sª”. Seu único varão.

Anos mais tarde, quantos? Uma rapariga inscreveu na mesma página: “Maria José/ filha do Sr. J.H”. Filha de meu tio-avô José Hipólito que, em 1925, foi o encarregado da obra de restauro da nossa Escola.

Houve ainda quem lavrasse, a lápis, nessa página e na seguinte, operações de aritmética. Cálculo de custos? À falta de papel, fazia-se uma conta numa parede, na poeira do caminho, quanto mais nas páginas de um romance de cavalaria!

Devolvi o livro à tia Piedade. Contudo, deste fundo do letrado bisavô Francisco Hipólito da Silva, chegou ainda à minha posse um outro exemplar. Oferecido em 1961 pelo seu neto, Júlio, o então único sobrevivo dos filhos de José Hipólito e de Maria José da Quintinha. Tratava-se de um pitoresco “dicionário de sinónimos e poético”, da primeira metade do século XIX, alavanca facilitadora de rimas a poetastros encalhados. Trazia entre duas páginas uma argolinha de flor de glicínia. Deixada quando a nau desencalhou?

 Poeiras dos livros…

 

Como o palavrório já vai longo, por aqui me fico. A Florinda entrará apenas quando esta poeira assentar.


quarta-feira, 9 de março de 2022

        CONTAS DO RECADO                                      

1. CAFÉ                 

Ao contrário do Prévert

Atrás de cada mulher, está sempre uma xícara de café,  garante,  nas suas . mensagens visuais, a minha amiga Zé.

Acorda e manda  regularmente, aos amigos um sugestivo boneco. Figurinha feminina, ensonada,  seduzida por uma esfumante chávena. Inconfundíveis aromas... Pássaros,  borboletas, flores elevam-se da milagrosa bebida. E quem aprecia repete com um escritor russo: "negro, escaldante, amargo"...

Ao contrário do 'Café du matin' do Prévert, lembrei um dia à minha amiga....Sem silêncios nem lágrimas. 


         1. A cafeteira


Pois deixa-me que te diga como minha mãe tinha sempre à mão, não  mísera xícara ou caneca, mas um velho canecão! Que já lhe vinha de solteira . Reabastecido  pela gigantesca cafeteira de esmalte. 

Acho que ela espulgava os restos do sono, iluminando a cozinha com a fogueira  que havia de mascarrar o esmalte da cafeteira.  Por mais que fosse areada ...

Um senhor canecão! 

Seria de mistura benigna: grão-de-bico, chicória, cevada e um quase nada de café, mas aquilo nunca falhava em cada madrugada. Trazia sustância ao dia, quanto mais  não fosse pelo açucar.

  

      O fogareiro

Já  a mãe dela, sentada com um fogareiro entre as pernas, nas mortiças brasas requentava o  seu "puc'ro" do café. Não carecia de açúcar, mas de calor. Mesmo no verão.

E a minha avó Gertrudes já não tinha mais nada a fazer. Senão reclamar à filha que mais café lhe trouxesse. E lhe avivasse as brasas...

Sem o seu puc'ro, dizia-se órfã. Aqui começaria outra história... Cala a boca, por ora. 

Morreu aos 92. Sozinha. Encontraram-na a sorrir. Fogareiro frio, púcaro seco.

         Uma coisa?!....

Ah! Que já me passava esta.

Augusta Bichaneira .Quem era? Mãe do nosso vizinho Filipe Henriques. Com banqueta de bate-sola, tombas-e-viras... duas ou três casas abaixo da nossa. Sapateiro e sábio, não fiquem dúvidas. Merece uma crónica, daquelas que nunca me vieram a eito.

Desde que vivia sozinha, por morte da irmã,  a ti' Augusta fraquejava a olhos vistos. Recurvada, passada trôpega, arrastava-se pela azinhaga, até casa do filho.

Manhã. Estava eu a sair do quarto, ouvi a minha mãe:

-Ti' Augusta!... Está a ouvir-me, criatura?...

Que lhes valesse Deus!

E a aflição de minha mãe intimou-me: fosse chamar o Sr. Filipe. Depressa!

- Corre!

Porquê? Fosse logo!  Dera uma ... à ti' Augusta. Uma quê, mãe?

-vai! Corre!

Cheguei sem fôlego à oficina.

- Mestre Filipe....Deu uma... à ti' Augusta !

Não  pediu mais explicações. Partiu à minha frente.

No regresso ao pátio da minha casa, encontrei o sapateiro abraçado a minha mãe. Soluçava.

A velhota estava enrodilhada aos pés deles. 

Depois minha mãe contou.

A ti' Augusta entrara sem razão, sentara-se num poial, à porta da cozinha e pedira um golinho de café.

"Que se passa?"  , estranhou minha mãe.

Quando  lhe estendia a caneca,  a ti' Augusta gemeu a sorrir:

- Fiquem por cá todos muito bem, filha.

Ainda aceitou o café na mão...Mas deixou cair a caneca.

Dera-lhe uma coisa!

- Que coisa, mãe?

                  Março, 2022








terça-feira, 8 de março de 2022

ESCREVIVÊNCIAS 2.

5. Há muito buraco destes… Oh, se há!

A escola onde andávamos…. – Contava, António, o meu pai, em 1979[1]- ainda existe: […] é um prédio de primeiro andar, à beira da Estrada Nacional nº 3, construído no terreno que foi dado pelo Sr. Caldas […] em troca da reprivatização da Capela dos Anjos […], situada dentro da sua quinta […

A escola, na época em que lá andámos, estava um bocado mal arranjada: durante muitos anos ninguém a caiou, nem lhe pintou o portão, nem a vedação; dentro da sala de aula havia um sítio de onde tivemos de arredar as carteiras porque o soalho abateu para a caixa-de-ar[2]·.

As limpezas éramos nós, os garotos, que as fazíamos mas os arranjos não estavam a cargo de ninguém e o prédio ia-se estragando aos poucos. […]

A aula era no rés-do-chão e, por cima, moravam os pais da professora visto que ela própria optara por ir viver na residência a que o marido tinha direito ali perto, na Escola Agrícola. A nossa professora era a Sr.ª D. Angélica; era muito rija, dava reguadas com fartura (sempre íamos aquecendo as mãos, já que lareira não havia) mas ao fim todos aprendiam (quem não ia a bem ia a mal). Esta senhora foi professora na Portela durante muitos anos (os nossos filhos ainda foram seus alunos; está reformada há muito tempo mas mantém-se lúcida; reunimo-nos com ela no ano passado para uma homenagem. Dos antigos alunos que estão vivos juntámos os que pudemos (vieram centenas […] fomos todos à velha sala de aula para inaugurar uma placa de mármore com palavras de agradecimento à professora e à escola. Nessa altura a Sr.ª D. Angélica disse que se pudesse voltar atrás na sua vida de professora teria preferido os métodos modernos e teria posto de parte a régua do antigamente. Sobretudo os que vivem longe da terra gostaram muito de voltar, naquele dia, à nossa escola. Se a tivessem arrasado por ser velha, se o edifício já fosse outro não teríamos levado a ideia por diante: não tinha feito sentido pôr uma placa noutra escola que não tinha sido nossa.

No nosso tempo o ensino público era gratuito, mas era costume levar presentes à professora, em certas ocasiões e um presente muito especial depois do exame da 4ª classe. Às vezes a senhora juntava tanta criação e tanta fruta que mandava vender na praça.

Ainda o meu pai:

Fui para a escola aos sete anos: fui companheiro de classe da minha mulher; ela levava todos os dias, de casa, um tinteiro com tinta, para não se servir das borras que havia nos tinteiros de lata metidos no meio de cada carteira; os pais mais ricos compravam tinteiro próprio para os filhos; às vezes a Maria repartia a tinta comigo. Os meus pais não me compravam tinta, mas mandaram-nos aos quatro (dois rapazes e duas raparigas) para a escola e lá nos mantivemos até irmos fazendo os nossos exames.

No meu tempo de escola não havia electricidade na terra e não me lembro de alguma vez termos levado lamparinas ou cotos para a aula, embora a sala se fizesse escura nas tardes de Inverno. Quando chegou a corrente à Portela, electrificaram a residência do 1º andar mas não a parte de baixo, a sala de aula.

Dentro da aula, havia filas de carteiras para os rapazes e filas de carteiras para as raparigas…Retretes também havia duas, quando chegava a altura das limpezas, elas tratavam da parte delas e nós da nossa. A água para bebermos, para as lavagens e para as retretes íamos buscá-la a um poço que tínhamos na cerca da escola. Era nossa obrigação mantermos cheios os baldes das retretes e uma talhazinha em barro vidrado[3] que havia na aula e de que tirávamos água com um púcaro sempre que queríamos beber.

 No recreio os rapazes e as raparigas brincavam juntos muitas vezes (rodas, cantigas, etc.) mas se nos calhava jogar ao pião ou à bola elas entretinham-se com outras coisas. Mais tarde a Sr.ª D. Angélica teve ordem para não deixar os rapazes misturarem-se com as raparigas durante o recreio e ela assim fez.

 Havia aula de manhã e de tarde. Quem morava perto ia a casa almoçar; quem morava longe trazia almoço. Merenda para comer à tarde, todos levávamos (um bocado de pão com qualquer coisa que se arranjava para pôr dentro). Cantina não havia nem há. Mas faz falta! A maioria das mães de agora trabalha e dava-lhes jeito haver na escola quem fizesse almoço para os miúdos e olhasse por eles na hora de comerem. Nos tempos de agora olha-se muito mais pelas crianças mas ainda há muito buraco destes… Oh, se há!

 Assim disse António, o meu pai.[4] À data do depoimento, celebrava-se o ANO INTERNACIONAL DA CRIANÇA. Por muito que a demagogia tivesse chulado o tema, como no balanço final denunciava o Prof. João Santos, os Direitos da Criança ficaram evidentes, num país ainda enlevado pela Utopia. Foi em 1979. Repito.

 Daí para cá… As Crianças? 



[1] Rectifico a anterior datação. Este depoimento foi colhido em 1979.

[2]  O mistério da caixa-de-ar. Quem ia acreditar, no meu tempo, que por baixo dos nossos pés, só havia poeira ratos e baratas?

[3]  No meu tempo, o “pote” fora transferido como peça de museu, para o “quarto”. 

[4]  In  BEJA, Filomena , op. cit.

quarta-feira, 2 de março de 2022

  

ESCREVIVÊNCIAS 2.4

     Sol de pouca dura

Janeiro de 2002. Minha Mãe começa a dar mostras de decrepitude. São os noventa. Está surdíssima., perdi a oportunidade de manter com ela o riquíssimo diálogo sobre o passado, a sua infância sobretudo. Ouço-a apenas e confirmo-lhe, por gestos, a satisfação pela sua  parlenda. Agora fala-me das casas da Azinhaga da Besteira.

 “Olha. A primeira, quando se vinha de Vale de Lobos, logo a seguir ao Carreiro do Caracol, era a ilha… ainda me lembro de lá morar a Eugénia Joeira. Era a Lúcia do Mouco que lhe levava água. Que miséria ser velho…”

 Perguntem à nossa Maria Alzira quem era a Joeira, que ela recua à primeira metade de Oitocentos, para no-la situar. 

Minha mãe só me deixou duas notas sobre a solitária habitante: “Uma velha-muito-velha-e-feia-assim-como-eu…”

 Eugénia Joeira, matriz de quantos Bejas apareceram e desapareceram na Portela.

 Berro que me lembro das ruínas da casa da ilha, habitadas por silvas e medos. A poente da azinhaga. 

" Em frente da Quinta do Cervato, não era? Não era, mãe!?"

 “Qual Quinta do Cervato! Tratava-se só uma grande propriedade que o teu avô amanhava, de renda a um senhor Bragança do Gualdim.” 

Aí tinha eu razão, da Quinta do Gualdim.

 “Dantes não havia casas no Cervato, ouviste?” 

A surda era ela, não eu.

 Um emigrante sortudo, no retorno, instalara-se de tijolo e cimento, no sítio onde era a eira…

 E pela enésima vez: “Não há por lá palmo de chão onde eu não tenha moirejado!"

Com sacrifício da escolaridade.

 Em Dezembro de 1978, a Filomena, minha mulher, recolhe num dos seus trabalhos de investigação, Vamos falar de escolas*, os depoimentos dos sogros, sobre os seus tempos escolares.

 MariaEu só entrei na escola aos nove anos e foi preciso o pai da professora ir falar com o meu pai e convencê-lo […] foi “meter-lhe medo”. O pai da Sr.ª D. Angélica era fiscal de impostos e toda a gente, incluindo o meu pai, temia as suas multas, foi assim que cedeu a mandar-me aprender, visto que, na sua opinião, eu deveria fazer apenas aquilo que me mandassem e ignorar o resto. Um dia obrigou-me a responder à Guarda que não sabia o meu próprio nome porque nunca precisara de o assinar em parte nenhuma. Eu obedecia-lhe tão cegamente que uma vez, no caminho da escola, vi uma nota azul, [de]  tostão,  e deixei-a ficar no chão,  porque estava proibida de tocar em nada que não fosse meu. O meu pai podia ser considerado um proprietário rico, empregava muita gente e fazia-se temer, no entanto, fazia-me faltar à escola, muitas vezes para trabalhar no campo [ …] com os ranchos que assalariava. Gostei de andar na escola e acho que aproveitei bem o relativamente pouco tempo que fui à escola: aprendi, pelo menos, a ler correctamente, a escrever razoavelmente e, mais tarde, aprendi muita coisa à minha custa, lendo o que aparecia. Saí da escola a pretexto  de que a professora quase não ensinava costura; as raparigas não precisavam de instrução, precisavam era de “aprender a  remendar uma roupa e a governar uma casa”.

Ora assim se rompeu a relação aluna-professora, iniciada, por força de uma trovoada de Maio, nos Casais da Labaça. Foi sol de pouca dura! 

Minha Mãe voltou para as mestras

"...Três irmãs que nem a 4ª classe tinham e que nos ensinavam uns pontos, alguma leitura e contas num quarto lá da casa delas leitura e contas. Cada uma levava […] um banquinho para nos sentarmos, o açafate da costura e a merenda. Acho que aprendi muito pouco no tempo em que lá andei.

A professora oficial “ ficou muito mal parecida”

 Portanto, meus queridos leitores, temos de concluir que as celebrações republicanas, no pátio da escola, em torno da árvore cívica não eram totalmente convincentes. Por mais que a sociedade civil acarinhasse a escola pública. Que importava o apoio dos senhores das quintas, dos comerciantes, dos agentes pedagógicos, das autoridades? Aquele recente estabelecimento de ensino, ainda que leccionando, em 1915, um curso nocturno, não deixava se ser visto como um empecilho ao desenvolvimento local. Arrisco eu.

Contudo, perdoem lá ao meu avó Marona. Já viram nos recortes da Maria Alzira, e mais  adiante explicarei, também ele  irá corrigir a mão.

  E vocês corrijam-me, se estou a maçar. Abraços.

(Continua)

Beja, FilomenaVamos falar de escolas, Lisboa, DGCE,MOP, 1979.