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quarta-feira, 24 de agosto de 2022

O CASAMENTO DA NETA

 Isto vai ser um acréscimo  à Escrevivência 16. Para me libertar das sombras do trisa Emídio, sempre apoiado no que ouvi ao meu pai. No seu testemunho de menino, nos recontos que lhe repisaram.

Comecemos pelo casamento da nossa tia-avó Piedade. 

Francisco Hipólito levaria, um sábado,  a filha ao altar, como já tinha   acompanhado a Gertrudes  e a Otília. Ou sejam, as minhas avós materna e paterna. Confiara  a Gertrudes ao Joaquim Marona e a Otília ao António Henriques Beja, um Caréu.

 Piedade casou com João Pena. Oficialmente nesse  sábado.

 Mas as coisas não foram assim  tão simples... !

Estavam de serviço os funcionários do Registo Civil. Pontuais e zelosos no cumprimento republicano das novas incumbências de anotar quem nasceu, se consorciou, desquitou... Ou viajou para a terra do Nada. Porém o Padre...

 Pela Quinta dos Pinheiros, aguardava-se o regresso dos noivos. Aprontava-se a boda. 

Algazarra!

O  rapazio,  postado de sentinela no entroncamento com o macadame, avistara as carroças do lado de Santarém. Irrompeu pela azinhaga abaixo até ao casal do tio Francisco Hipólito. 

- Já aí vêm! Estão a chegar!

- Estão, quase , ti' Emídio!

Serpa Pinto ficara a cuidar das suas ervas . Na certeza de que a neta viria abraçá-lo, mal saltasse do estribo da carroça.  

Piedade ocupara-se sempre do avô. Ia procurá-lo à horta. onde o velho perdia horas em bravatas com os Antigos... E quem eram eles, os Antigos? «Gente que tu já não conheceste, filha!» Acompanhava-o, em garota, para além do valado do casal. Com ele aprendera das ervas e dos pássaros. 

Entraram no pátio as carroças com os noivos.  E ficou no ar a pergunta: Por que vieram com tanta antecedência?

Os noivos sorridentes, abraçados ao Avô Emídio. Palmas! Corrupio para a casa do forno.  As coisas estavam atrasadas. Fosse porque fosse, tinham chegado mais cedo.  

Bem, a mesa já estava posta, à sombra das figueiras.

- Vivam  os noivos! Confeitos! Confeitos!  - berravam rapazes e raparigas. 

Tinha ali "parido a galega"!

E confeitos não lhes faltaram. arremessados às mancheias, para o chão. Que se arrepelassem na disputa da colheita. Até no meio dos bonicos.

Ah! Mas não vamos falar dos comes-e-bebes nem de cantorias, dichotes, vivas e pulhas. Ouçam a música e envolvam o pé  no baile. 

Que até o Avô Emídio deixou o arrocho em que se apoiava, para ir  buscar a noiva. Festa é festa! «Arrebenta aqui a nossa alegria!», berrava uma velhota. 

- Mas o que tens tu rapariga?

- Já vai ver, Avô. 

Não demorou muito a saber-se.

A porta da igreja estava fechada. E  pelo sacristão chegara o recado do padre. Teriam de voltar no ia seguinte e assistir primeiro à missa. Não era isso o combinado!

Ora aqui começava o desentendimento na família Hipólito. O pai repetia que já estavam casados. A Lei! Clareza republicana, asseverava Francisco Hipólito.

 Lei é Lei! Altar é Altar! Não dormiriam juntos, sem a bênção  do Senhor, garantia a mãe da noiva!...

«Isso é o que se vai ver!...», num entredentes do Avô. 

A maioria das vozes apoiava a posição da mãe. Tinham tempo para ir para a cama! A partir do dia seguinte!
    João Pena dava murros de raiva numa parede. Não!
    Piedade, aos soluços, repetia: Não!

E a festa chegava ao fim. A noiva ficaria por  ali, o noivo sairia com os pais. Caso arrumado!

 -Precisas de acalmar, rapaz! Dá cá mais um abraço!
O Avô já arranjara  pretexto para a combina.

A noite desceu sobre  árvores e casas. 
Serpa Pinto ficou no seu banco do costume. Tinha de se encontrar  com as estrelas. De ouvir os noitibós, a coruja e os mochos na escuridão do pinhal da Quinta dos Anjos... 
Esperou.  Ouvia a neta soluçar.

 A casa sossegava. O avô levantou-se.

Na cozinha.
O que fazia ali, perguntou a filha.
Então não estava à vista que fazia um farnelito para a deita? Fossem descansar em paz.  Não lhes  bastava o  desgosto da Piedade?! Só porque o padre roera a corda...

Passou pela adega, deu a volta à casa e entrou na sobeira do seu quarto...
Diziam que passou a noite na tarimba do palheiro. Onde o noivo, noite pesada, se foi encontrar com ele. 
-A Piedade está à  tua espera no meu quarto.  Deixei lá uns preparos .
Uma infusa de água fresca, toalhas... Umas merendeiras com carne... Uma botija de vinho. --Noite feliz, filhos!

     Júlia mal pregou olho. Cedo se apercebeu de que a filha não estava no quarto.

     - Como passaste a noite, minha desavergonhada?
    - Como, minha mãe ?   A desarrumar  as ervas  do Avô!!!

Quando o ervanário voltou ao seu quarto, não queria acreditar na barafunda. Como é que aqueles patifórios lhe tinham conseguido derrubar a prateleira das ervas?
Ora... Que o Destino lhes corresse de feição!

O ervanário repôs em ordem as suas riquezas:
... cidreira, tília, pimenteiras,  poejos ...
 O meu pai alongava sempre a lista do avô Emídio; agrimónia, urgebão, losna...

Mais não sei! Cuidado com as ervas!

 Rio de Mouro, 24 de agosto de 2022

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Escrevivênvias 2.16 Um ervanario vadio, sota na Quinta dos Anjos


 

Pois, Carlos, não se fala mais desse verde dossel de atalantes, o Pinheiro da Júlia Boleeira. De acordo, ficou uma clareira no céu. Mas acabou: nem uma lágrima! Seja pinheiro ou leite derramado.
Vamo-nos então em buscas de ervas humildes, simples, como lhe chamavam os mestres da arte de com elas coloquiar. E não me limito a insignes doutores botânicos.
Da humilíssima erva-buinha, que fazia a Rosa do Ginja invetivar uma hipotética mãe desnaturada: «Deixaste morrer o teu menino com lua/ e tinhas erva-buinha a crescer na tua rua…» Tratar-se-ia da tasneirinha, Senecio vulgaris?
 E saber, se já não tenho a quem perguntar, quando os documentos não me respondem? 
Também sobre a doença da lua não conto com fiável informante. Adultos aluados? Burros e burras? Esclarecidos estamos... Mas bebés definhando com lua?… Pudesse eu consultar por email o meu trisavô Emídio… Que há de ser o tema enviesado de hoje, se … lá chegar.
 Ou partamos em busca do chucha-mel, a que a minha mãe, pragmática sabedora de mezinhas, sem rezas, dava o nome de seca-ossos
Chucha-mel, ou chupa-mel? Dizíamos nós, não era Rebelana? Quando dela espremíamos, flor a flor, uma gotícula de néctar. 
Não penses que não me deu trabalho identificar esta ripícola das nossas valinhas. Aqui t’a deixo: escrofulária-nodosa
Nem mais! Quebrar o viço das folhas frescas, a uma chama viva, e colocar sobre a ferida. Vulnerária. Cuidado com estas memórias tardias. Sobretudo, não me responsabilizo por experiências medicinais.
A arnica?
 Era vê-la salpicar de amarelo os matos do pinhal da Quinta dos Anjos. Também não confirmo nem desminto. Disseram-me.
 Tojo, rosmaninho, tomilho, pelo menos três variedades de cistus ( purpureus, hybridus  e a aromática ladaniferus, isto é a esteva) recordo vividamente. Arnica, não excluo. 
Insistia Fernando Belchior que as estevas tinham ali chegado pela mão do seu pai, trazidas minúsculas sementes, dos lados de Alcanede. De facto, só existiam mesmo no Alto dos Anjos, dentro e fora da Quinta.
Ervas que saravam. 
As mulheres aprendiam a distingui-las nas mondas e ceifas e assim lhe iam interiorizando as virtudes. Sem esquecerem a arruda, que se dava bem nas encostas incultas das Lobas.
Porque os granjeios levavam imparavelmente ao sumiço das espécies. Daí todo o cuidado em localizá-las e colhê-las. Nas matas das quintas, na beira de azinhagas e serventias, na Linha de Água, nos combros da Vala de Cabanos… 
Com a mecanização, a química agrícola, o betão e o alcatroamento foi o fim.
 Olha-me agora para eles a falar em salvaguarda da biodiversidade. ‘tá bem, abelha!
Alguns homens também se tomavam por ervanários. Os ferradores, os alveitares, os boieiros e pastores… 
Mais exato: o meu trisavô Emídio, por alcunha o Serpa Pinto e o meu tio Joaquim Marona. Cada um no seu estilo, veremos.
Em carta de Setembro de 1874, datada de Vale de Lobos[i], o nosso antepassado vizinho, Alexandre Herculano refere a recolha das ervas medicinais como tarefa de subsistência, confiada a rapazotes, da família assalariada rural.
 Barrão entre barrões, infatigável na modernização da sua quinta, ainda lhe restava tempo para voltar a refletir sobre política socioeconómica, desde a época revolucionária de 32-34. No horizonte, esperavam-no apenas mais três  anos de vida. Herculano fazia o balanço final.
Quando eu frequentava a Escola da Portela, oitenta anos após estas cartas de Herculano, muitas das suas observações eram ainda localmente pertinentes. Leia-se a nota final.
Rapazes iam pelos campos na coleta de espécies medicinais. Uma tarde, Coquelim saiu mais cedo do seu primeiro emprego, na ervanária da Viúva Costa Carneiro, para vir indagar, junto da minha mãe, onde encontrar o fel-da-terra, a fim de suprir uma falta na loja. 
De outra vez, Maria Colaço interrompeu a brincadeira do filho, António, o Bisoiro, para que ele lhe fosse às Lobas, por um molho de arruda. 
Que lhe regularia o seu calendário íntimo? Ou porque estava faltando na mistura das defumações? [……]
 ***
Desse modo o meu antepassado Serpa Pinto teria adquirido formação de base e  mestria com as quais, até fechar os olhos, terá zelado pela saúde da vizinhança. À falta de melhor, pois claro. Ficou por esclarecer que ligação teria tido com o Doutor Oliveira Feijão, o senhor da Mafarra.
Trata-se então do meu trisavô Emídio da Silva (1840-d.1919). A sua filha Júlia foi a terceira mulher do meu bisavô Francisco Hipólito e com ele teve a minha avó Otília e a tia-avó Piedade. Além de lhe ter criado também a minha avó Gertrudes, orfã do segundo casamento.   

Este trisa Emídio chegou muito tardiamente ao meu conhecimento. Já por finais dos anos oitenta. Quem era a pessoa mais antiga da família, na lembrança dos meus pais? O seu bisavô Emídio, adiantou o meu pai.
  Emídio da Silva servira até muito tarde, como sota, na Quinta dos Anjos. Sota era posto na hierarquia de boieiro. Logo abaixo do maioral, o responsável pelo trato e labor do gado. Só recentemente, com a Maria Alzira aprendi um pouco mais sobre tal personagem. Que a nossa amiga dá como chegado ao cargo de abegão.
 Vinha-lhe a alcunha do hábito de, à primeira maleita de pessoa ou animal, virar costas, muitas vezes sem dizer água vai, e perder-se tempos infinitos na busca de ervas curativas. Alguém, lido em notícias das explorações africanas do major Alexandre Serpa Pinto, viu, naquelas andanças estouvadas do boieiro, coisa semelhante a Como eu atravessei África do Atlântico ao Mar Indico, viagem de Benguela à contra-costa…
Meu pai representava-o muito tropeço, em constante volteio pela Quinta dos Pinheiros e Quinta dos Anjos movido pela preocupação de se fornecer de ervas. Selecionava, secava, emolhava e sempre ia vendendo, para os últimos copitos. Escorropichados na taberna de uma irmã, estabelecida onde depois se veio a instalar a mercearia do Melro. 
Guardava as suas medicinas penduradas nas paredes e no teto do quartito que o genro lhe reservara. E garantia que ali eram tão boas ou melhores que na botica. 
Moravam na Quinta dos Pinheiros, no foro onde depois foi o “Bairro Azul”.
Não me alongo mais sobre  meu avô Serpa Pinto. Voltarei, prometo.


[i] “No actual estado de cousas, o ensino obrigatorio não passa de mais um flagello para a pobre familia obreira, que lhe opporá constantemente uma resistencia passiva, mas invencivel. Afigura-se-me que toca as raias da crueldade dizer—«manda á escola teus filhos»—ao homem que habitualmente dorme vestido na esteira de tabúa, na casa de telha vã, onde, se géa, tiritam de frio elle, a mulher e os filhos, porque a roupa falta; que, se chove, não tem fato para mudar, e ás vezes nem sequer lenha para o enxugar; cuja alimentação é de ordinario ruim, quando não insufficiente; e que, como se isto não bastasse, sente com frequencia apertar-se-lhe o coração ao dizer-lhe o lavrador, no sabbado: «Para a semana não ha que fazer.»
 D’esses filhos que lhe pedem para a escola, um, dois, os mais velhos, são pastores ou ajudas; sustenta-os, dá-lhes agasalho o lavrador, e os seus pequenos salarios mais de uma vez vão supprir esta ou aquella falta urgente da familia: outro leva a comida ao pai, que trabalha a um ou dois kilometros de distancia, o que facilita á mãi exercer algum mister retribuido: os de seis a nove ou dez annos discorrem descalços pelas estradas ajunctando nas pequenas cestas os excretos que na vespera ahi deixou o transito dos animaes, miseravel industria, que, todavia, no fim do anno produz o valor de alguns cruzados, que resolvem uma ou mais difficuldades da dura vida do obreiro: outro, pouco maior, vai á fonte, á lenha, ao recado; chamam-no para guardar aves domesticas, para colher ervas ou flores medicinaes, para afugentar os passaros que damnam os fructos ou as searas, para dez ou para vinte serviços analogos.
 
 E todos esses serviços tem uma retribuição, que se incorpora nos recursos da familia e lhe cerceia o numero das privações. É humano, é justo; digo mais, é moral aggravar a miseria do trabalhador, tornar mais escura a noite do seu viver em nome da luz interior? Bem desejaria eu tambem tecer a minha olympica á escola obrigatoria: as phrases, os periodos, as estrophes andam já vasadas em fôrmas: basta haver novidade na invenção das suturas. Veda-m’o a consciencia. Esperarei que ou a escola se ageite a estas condições da familia obreira, o que vejo longe, ou que, melhorada a situação d’essa familia, a escola deixe de significar para ella um intoleravel imposto.”
 In The Project Gutenberg EBook of Opúsculos por Alexandre Herculano – Tomo IV by Alexandre Herculano, http://www.gutenberg.org/cache/epub/17177/pg17177.html
25 novembro 2010