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sexta-feira, 21 de abril de 2023

 


Que bicho é este, minha gente?

Sim, há uma ciclovia, Quim Borgas ! A uma dúzia de metros dos olhos do fotógrafo... 

E agora?!

Olhemos para ver, sem que "fake news" ou "fake views" nos toldem os sentidos . Que em tempos de Guerra, ainda mais nos podem enganar.  Aquilo é objeto voador, fora de dúvidas.  Drone, roquete, ogiva nuclear... Ainda não! Gato preto, pássaro gigante ou discreta traça de armário.... também não parece.


Aquilo entrou no autocarro, pousou primeiro no decotado pescoço de uma passageira, safou-se de sacudidelas aflitas, deu voz de agoiro a uma brasileira assustadiça ( "Sinal di morte, né? ..."), pousou no vidro da janela...

O fotógrafo estava lá, a uns centímetros. 

Indiferente aquilo saiu, na paragem seguinte, perdendo-se no azul de mar e céu.

No regresso da Praia Grande , onde se pode ir por aquela recente e eleitoral ciclopedonovia.

Quando o 1254 da Carris chegou a Sintra, já ninguém se lembrava da 🦋!

Que até talvez já nem viva fosse .

Bom dia para todos os meus amigos 

 


sábado, 15 de abril de 2023


I

 A sombra no muro 

Na clareza da cal

Abrindo a manhã 

Procura a sombra 

O repouso final

Com as dormideiras

Pétalas...

Indiferente ao outro

Lado do muro

Rio de Mouro, 15 abril 2023

II

Papoilas vadias

Desta vez, o fotógrafo não estava lá! Garantidamente . 

Assim ele respondeu, quando uma das amigas alertou para a possível confusão entre uma papoila bravia e um narciso .

Já a outra amiga deu de barato no muro,  branco e ameaçado pelo matagal da rua.

Para enaltecer a resiliência das últimas papoilas urbanas :

Afirmam-se no matagal primaveril do desleixo autárquico. Competindo com o volteio dos plásticos e o abandono dos excrementos caninos.  São heróicas!

Heroínas! Arriscaria inquieto o fotógrafo.

Sabe que os cantoneiros vão aparecer com a guilhotina de nylon .

Só não sabe  e dia e hora.  Isso ninguém sabe !...




quarta-feira, 15 de março de 2023

TELEFONAR AOS ANJOS

 

 


«Que falta aqui me faz …» 

Minha mãe aludia a uma ausência. Geralmente de pessoa ou animal – gato, cão… –, dada a sua frugalidade quanto à posse de objetos. Só os necessários. Não havia, não eram precisos...

Exceto… o telefone! Só haveria um lá por casa, uns vinte anos mais tarde.

Contavam-se pelos dedos das mãos de um maneta as casas que se podiam dar a tal luxo, em toda a Portela. Nas nossas proximidades, e numa urgência, a Quinta dos Anjos não recusava o uso do aparelho. Porém andasse o Diabo ao largo.

***

Primavera de 1949.

 Sentado na cadeira de bunho, a um canto da cozinha, olhos nos reflexos das chamas nos azulejos da chaminé.. Ordem de ficar ali quieto, calado, até que a minha mãe, de costas para mim, junto à chaminé, acabasse de dar comida ao meu irmão. Nós, jantaríamos depois de ele adormecer.

Hora inquietante. Já o Sol baixara  para lá do Cabeço, afundando-se atrás da Quinta dos Anjos. Rondavam as trevas enoveladas no olival do Cerrado.

 «Mãe, o que é aquilo?» Era o noitibó a exigir: 

“Morre! Morre! Morre!...”

 Horrível voz da noite.

Medo! Medo de estarmos ali sozinhos entre sombras e latidos de cães. Pior, quando a minha mãe deixava escapar o lamento:

 «Por onde andará o teu pai a esta hora?»

Por onde?

Alegria, se regressasse antes de eu me deitar. 

Normal era bater à janela, para lá da meia-noite, depois do serviço aos últimos comboios. Chofer de praça. Saía de manhã, com a cesta do almoço… e do jantar. 

«Só se veja quem só de deseja!» 

Ouvi muita vez à minha mãe. 

Dava tal premissa matéria para um estudo sobre a Solidão, considerei mais tarde.

 

Não suporto mais a prisão da cadeira de bunho. Levanto-me para fechar a porta do corredor, donde a luz do candeeiro a petróleo já não consegue limpar o escuro. 

Aproximo-me do meu irmão, no intuito de lhe acariciar os caracóis, mas sou afastado. Devia deixar o menino tranquilo, parecia  que  não estava bem. Alcançasse antes o púcaro da água, esquecido por minha mãe no poial das bilhas. Ficasse depois ali ao lado deles, à mesa de pinho. Com juízo.

O grito!

Meu irmão roxo, esticava-se no colo da mãe...

Logo aquietou, para começar a empalidecer. 

Mais gritos. Minha mãe corre para a rua com o menino nos braços. Pede socorro na  noite, virando-se para os lados donde esta pudesse vir. 

Que eu gritasse também! Acudam! Acudam!

Quem nos ouviria?

Rompeu da escuridão a voz da Ilda, saltou o Mário o muro que, então, separava os nossos dois quintais. Duplicavam-se os gritos, chegavam pessoas de mais longe. O Filipe Sapateiro e a Clarisse, a Ângela e o Herculano Salsa.

O menino ia morrer!

Desmaiado. Trouxessem da cozinha um pano molhado para lhe pôr na testa!

Ouve-se a Ilda, por cima do meu berreiro. Que o irmão fosse telefonar aos Anjos!

Valeria a pena?

Já o Mário corre esbaforido pela ladeira do Cabeço, uma mão no guiador, outra no selim, empurrando a bicicleta. Mal chegue ao cimo pode montar-se e pedalar, ao longo do outeiro, até cruzar a estrada nova, descer à Quinta dos Anjos. 

Chegará alguém a tempo de salvar o meu irmão?

[…]

Filipe Sapateiro, que até ali, não abrira a boca e discreto se retirara para junto do nosso portão, anunciou sonora e tranquilamente: «Vem aí o Mário!»

Descia veloz, com o farolim da bicicleta a rasgar pelo carreiro íngreme. Dera conta do recado.

Entretanto o meu irmão arribara, ouviam-se-lhe uns gemidos fracos. Que fazer?

Por sorte, o meu pai estava na praça, falou com o Mário e não ia tardar. Ainda bem que o menino já não estava desmaiado. «Graças a Deus», acrescentou alguém.

Então, pegassem um momento na criança, enquanto a minha mãe ia libertar-se do avental e enfiar um casaco.

Aí, voltei a pensar em mim. A quem me deixariam entregue? Também queria ir com o meu irmão!!!

Chegou o meu pai. Que alívio!

Ofereceu-se o Herculano para me  levar a casa da minha avó Gertrudes e dar conta do sucedido. Meu pai concordou e agradeceu.

Caminhávamos de mão dada pela Azinhaga da Besteira.

 «E agora, ti’ Reclano? Ele vai morrer?» 

Voltara-me o choro.

Nem pensar, mal chegassem ao hospital, davam-lhe uma injeção, ficaria logo bom.

A resposta não me tranquilizou. Lembrei-me da saída de um caixão branco de casa dos Salsas. Uma menina bebé? Já não tenho a certeza.

 «Mas há pessoas que morrem, quando  voltam do hospital…»

Herculano apertou-me a mão. Que me calasse. Continuámos em silêncio. Até que : 

«Esta noite a Morte não faz ronda!»

Acalmei um pouco,  mesmo sem entender a frase do meu

 companheiro.

***

E agora, feitas as contas, onde é que diabo meti o meu telefone? 

Por mais que  prometa dar um sítio certo às coisas, ando sempre a perder-lhe o norte.

«Tens de arranjar um telefone para cada bolso» sugere-me o meu irmão, quando lhe relato estes esquecimento de velho..

Talvez tenha razão. Mas para que nos serve um telefone em cada bolso? 

Se não se cuidar do saldo, da bateria…

E, sobretudo, da alma das palavras!

 

O original deste texto foi redigido em 2011. Retomei-o hoje, e não me perguntem porquê.

14 de marco de 2023

domingo, 5 de março de 2023

ESCREVIVÊNCIAS 24 Mágoas Açoriana


 

Do vaivém de cartas -fantásticas fingidas mentirosas - cruzadas sobre o Atlântico, entre os Anjos e a Terceira. Pelas mãos da menina Né e de sua antiga criada e amiga, Helena. Discreta e respeitosa tentativa de leitura.

Por que havia a Menina de lhe pedir ajuda, querendo reviver o  dia do casamento? Passados que estavam nove anos. Continuaria a sentir-se bem nos Açores? Tudo a correr de acordo com os seus desejos? 

Helena mudando de assunto: gostariam muito, ela e os demais do pessoal, de saber se a Menina tencionava vir à festa de Nossa Senhora? Tornou apenas um talvez, sem se compreender se sim se não. Melhor seria, não contar. Estava tão longe, que pena!

Festa na Quinta, em 1950. Hoje já ninguém pode informar sobre presença da menina Né, embora também não se certifique o contrário. No entanto, na memória do povo ficou um reflexo: o filho, o menino Efe. Foi visto e achado em quase todas as actividades festivas, parecia que os familiares se disputavam para lhe fazer companhia. 

Tinha oito anos. Teria viajado com o pai. Se a irmã, Isa, um ano mais nova, não é mencionada, nos festejos, é de admitir que tivesse ficado com a mãe, nos Açores.

Pouco depois, o menino regressou à Terceira. E testemunhou.

***

Não se realizavam desde 1930, as festividades em honra de Nossa Senhora dos Anjos. Né e Helena, em plena mocidade, encantaram-se com a chegada das fogaceiras, ao adro da Capela, por isso ficaram muitos anos a repetir que iriam participar no próximo cortejo. Cada uma com a sua fogaça à cabeça, se o Papá autorizasse, está claro.

Correu o tempo, levou o ânimo do povo,   deixou-lhe  medo. Veio a sombra das guerras, e os festeiros baralharam-se nas intenções. Em 1950, ora! Já não calhavam tais desejos de folia.

***

Nas primeiras cartas dos Açores, Né relatava a Helena como decorriam por lá as festas do Espírito Santo. Estabelecia paralelos: as fogaças da Senhora dos Anjos equivaliam às sopas dos impérios ilhéus. Pão para os pobres.

Agora, Helena apreensiva, a menina Né referia-se à outra função. “Lena, ajuda-me a reviver aquele dia”, lia-se numa das cartas. “O dia do casamento.” Aliás, dos casamentos. Pedia também que lhe esmiuçasse os preparativos das bodas. Tudo. Por exemplo, como se chamavam as divertidas raparigas e mulheres da Portela que, durante semanas, bordaram os enxovais , o dela e o da mana? Na cabeça de Né, subsistia apenas um nome: “Maria dos Anjos… Irmã de um rapaz moço de compras, um tal Eugénio.”

As bodas das duas filhas dos senhores da Quinta. Levadas ao altar, pelo braço do Papá, naquela quinta-feira, véspera de Santo António, de 1941… Ai! Ai! 

Então não foi a uma quarta-feira, 9 de Julho? Era isto que se esvaía na mente da Menina? Aquele dia tão importante? Como se podia acreditar? Por certo que Helena saberia apontar quase todas as coisas dessa altura. De tal maneira foram vividas com alegria pelas pessoas da Quinta, patrões e trabalhadores.

Todos radiantes. Os fatos, os vestidos, as jóias, penteados, chapéus… os fardamentos novos de criados e serviçais. Nem pensar em dizer quem tinham sido os inúmeros convidados, só se atreveria indicar os próximos da família. 

Mais: a acrescentar que houve gente da Portela, afoita na devassa das estremas da Quinta, com o fito de espreitar de longe as noivinhas. Quedaram-se meio escondidos, entre mato, edifícios e carros. Fez vista grossa, quem se apercebeu daquela coscuvilhice. Coitados! Era por bem.

Muitos, não tiveram a sorte de entrever as manas, não puderam comparar-lhes o bom gosto dos vestidos, contudo regressaram jurando que iam lindas. Outros, ficaram-se pela contagem dos automóveis. Intrigados: afinal, para os ricos, não estava a gasolina racionada.

Plena Guerra, lá por fora. Os militares presentes comentavam aqueles horrores. A meia voz, a fim de não inquietar noivos e convivas.

"Graças a Deus e a Salazar".., o senhor Capitão nunca teve problemas até ao fim da Guerra. Algumas vezes esteve temporariamente afastado da esposa, em diversas bases, mas desde que partiram para os Açores, estava tudo como Deus com os Anjos. Ainda bem.

«Lena, tu estavas de cabecinha no ar, com os uniformes de gala daqueles colegas do meu marido, não estavas?» Pois não era razão para menos, Menina.

Lembrava-se Helena de, durante o copo- -de-água, um dos jovens aviadores, empunhando uma taça de champanhe, ter declarado solenemente: «Houvesse justiça no mundo, Vossa Excelência, minha senhora, não se chamaria Dona Maria Romana. Mas sim, Dona Patrícia Romana!»

Protestos militares contra o desconchavo do camarada. Já a Senhora da Quinta, apanhando o propósito do rapaz, dominou um breve rubor e retribuiu sorrindo. «Patrícia entre as romanas?… Muito gentil, senhor alferes.»

«Para terminar, Lena, conhecerás a razão por que se dizia: “Duas irmãs casadas na mesma boda vão roubar a felicidade uma à outra”.

Coisas sem jeito, Menina, ignorância do povo. Como podiam duas manas tão amigas roubar a felicidade uma à outra? Fiquemo-nos por aqui.

Bem melhor seria que a menina Né continuasse a mandar-lhe notícias dos filhos. Estariam uns amores, benza-os Deus. Efe e Isa.

 Para quando o envio de mais fotografias à Senhora? A Mamã não sai sem os retratos dos meninos. Quer mostrá-los às amigas. Pediu ao senhor Fonseca, o chofer, que lhe pergunte, antes de entrar no carro, se «leva também os netinhos». Coitadinha da Senhora, pudesse ela tê-los aqui por uns dias, poucos que fossem… A confirmar-se a vinda do menino Efe, para a festa, vai ser um ai Jesus.

Helena sabe que está a repetir-se: pois muito se tinha rido, por causa  daquele encontro do menino com os cavaleiros… Não guardou segredo, é certo, – fez mal? Toda a gente na Portela acabou por vir a saber.

Contava a menina Né. Tinham ido de automóvel aos Biscoitos…. Biscoitos, Menina? «Nem mais, Lena, uma praia, no norte da Ilha Terceira.» Admiravam a paisagem quando, de repente, o menino Efe meteu conversa com dois jovens cavaleiros. Deslocavam-se para uma toirada à corda. 

Parecia conhecimento de longa data. Um dos rapazes pediu licença para montar o menino na sela. Encurtou as correias dos estribos, ajudou-o a subir, a firmar-se e passou-lhe as rédeas. Não estivessem os pais receosos, não senhor. O cavalo, obedecendo mais à voz do dono do que ao novo condutor, deu duas voltas, a passo vaidoso.

Quem diria, um menino de sete anos! Já nascera ensinado? Que tinha aprendido com o avô. E adiantou, com risota dos presentes: «Ó mamã, quando eu for à Quinta do avô João, posso trazer um cavalo, não posso? Depois vou passear com estes senhores.»

Viria o animal de barco ou de avião? perguntou um dos açorianos. Isso agora…Mesmo assim, ficou assente: logo que do Continente chegasse o animal, iriam todos ao pasto ver os touros. Uma pena o senhor Capitão, na altura, não ter mais rolo na máquina fotográfica.

E a menina Isa? Quando teria Helena a sorte de a abraçar?

Nem sempre Helena aparentava a mesma atenção pelas cartas dos Açores.. Por exemplo, passou ao lado do que lá vinha sobre a Outra.

«Como se atreve o Papá a instalar, de cama e mesa, na Quinta Velha, aquela senhora? A dois passos da nossa casa! Que falta de respeito pela Mamã…. Sim, sim, finge que não, mas está a par de tudo. Eu, eu morria, se fosse comigo.»

Estava, também ciente da ordem dada ao criado das compras. Fosse o Eugénio levar uma carroçada de produtos da horta, das capoeiras e da despensa ao hospital da Misericórdia. Estavam em apuros os irmãos mesários, sem conseguir calar bocas doentes e esfomeadas. Aproveitasse para deixar nos Correios, como de costume, toda a correspondência. De volta, trouxesse os jornais da Senhora!

Ao portão da Quinta, o Zé Melro fez alto à carroça. Contra-ordem: o destino não era a cidade. Seguisse antes pela estrada de Rio Maior e descarregasse na Quinta Velha. «Nem oh, nem meio oh, 'Génio!». Segunda recomendação: liberto da carga, fosse, então, para Santarém, pelos jornais, sem se esquecer de passar pelos Correios e… Acima de tudo: nem pio! Ou despedimento para os dois. Carroceiro e mensageiro. Quem manda pode, pois claro.

«Como teriam chegado aquelas coisas feias aos Açores, meu Deus?»

Finalmente. Poderia Helena imaginar a mágoa da menina Né? Sempre que ficava sozinha com os filhos, por o marido se demorar em serviço em Santa Maria ou S. Miguel. Ultimamente, perturbada até com as suas  mais curtas demoras. Estaria ele de facto numa reunião com o comando americano das Lajes? Nem todas as esposas dos senhores oficiais se dedicavam assim tanto aos maridos. Algumas …

Já se vê, nem precisava de pôr mais na carta, Menina.

Quanto ao mais, quer dizer, assim queixas, queixas concretas, apenas as da falta do aroma do pinhal e dos matos da Quinta. Ah, também qualquer alusão, aos pavões…

Embora isso já  não possa, de momento,vir à colação Fica para depois, muito mais tarde. Quando Helena foi chamada ao quarto da Senhora, e teve ensejo de ler aquela carta chegada com os últimos papéis dos Açores. Valha-nos Deus! 

Deixa lá, Helena – nem sei se ainda vives! – não contes mais hoje. Fiquemo-nos apenas pelas últimas linhas. Repete-as então, se faz favor.

.

«…muito triste, minha amiga. Afoga-se-me o coração numa lagoa de mágoa. Um grande abraço…»

***

Em minha casa, ouviram-se gritos. Convulsivo pranto da Ilda, nos braços do irmão Mário. Uma grande desgraça. Todo o trabalho suspenso, na Quinta. A menina Né! Tinha ido ao encontro da morte.

Ninguém sabia, ninguém sabe, porquê.

Escrito em 2011

 

quarta-feira, 1 de março de 2023

ESCREVIVÊNCIAS 23 Os Anjos da Ota



 Também a mim se me pendurou uma ideia no trapézio. A de meter aqui o Ruy, na pachorra destas escrevivências

Quero ir ao Vale Barco a Malaquejo à Marmeleira / roubar melões jogar ao murro ver nas festas o fogo preso…” 

Mais o dorido refrão: “quero só isso e nem isso quero”. 

Querer e o seu contrário – desquerer?, por descrer? -  simultâneos,  no poema do Ruy Belo. Nosso vizinho de além das encostas de Rio Maior, a ver nascer o sol por cima da Quinta dos Anjos.

Assim eu: quero contar, a mim e a nós, e nem isso quero.

 Neste caso, trazer o conto à última pausa, para dar alma à casa. Ao prédio deixado branco em verde pinho da Quinta 

Oh as casas as casas as casas / mudas testemunhas da vida / elas morrem não só ao ser demolidas / elas morrem com a morte das pessoas”. 

Até à próxima, Ruy. Urge seguir pelo meu pé.

 ***

«Hoje é quinta-feira, Helena… É dia do meu anjo!»

Os anjos da Ota.

Que desassossego. Tanta ansiedade, ao aproximar-se a hora do voo do senhor tenente. Como ficar perto?, Para dizer adeus, mandar beijinhos, correr a…

 

«Sossegue esse coração, menina!» Conselhos de criada.

 

Jota, muito criança ainda, observava as acrobacias da esquadrilha de instrução.

Já o tenente tinha o posto de capitão. Casado com a menina mais velha da Quinta.

 

 Havia momentos em que a sua avioneta passava mais baixo do que os píncaros dos eucaliptos do Cabeço. Os rapazes da Besteira acenavam com boinas e chapéus de palha. Por detrás da escotilha, uma cara sorria, animando o flying cap. A mão enluvada correspondia aos gestos da rapaziada.

 Coquelim, Rebelana, Bisoiro… todos iriam partir aos comandos dos seus aviões. Bastava-lhes enfiar as boinas até às orelhas, engendrar uns óculos «à aviador», com arame de fardo de palha. Fixar na boina caricas, insígnias de heróicas e imaginárias missões. De braços abertos.  que o Bisoiro ficou-se pela desmontagem dos segredos aeronáuticos, quando aquele obsoleto material foi adquirido em leilão, poucos anos mais tarde, pelo sucateiro da Calçada do Monte. 

Não aterrou muito mais longe  o Coquelim, cumprindo serviço militar nas oficinas de Alverca. Na especialidade de combustíveis e lubrificantes de aeronaves. 

E o Rebelana? Contrafeito, mar fora, no Niassa, para Moçambique, isso de certeza. Anos de violência.

Mas também arrisco imaginá-lo sobre os céus de Paris, enlevado apenas pela lábia do Cunha, a quem ele tratava por  Conarias

"Et quelles conneries, mes chers amis!" 

Façanhas de exilado. Até porque, sim, até porque, uma boa conversa pode ser um modo de voar.

 

Constava que, desde o começo do namoro, o aviador aproveitava instrução aos novos pilotos para treinos na zona de Santarém. Repetia Herculano Salsa.

Então, o nosso tenente metia as caranguejolas ao endereço da mata e, quando avistava o prédio, dava ordens de dispersão aos subordinados. 

Juízo! Rigor! Atenção! Nada de exibições. Sobretudo que não fizessem voos rasantes para acagaçar quem andava pelos campos a ganhar o pão. Chegou a haver desmaios de quem entendia aquelas exibições juvenis como sinal do começo da guerra.

O ponto de reunião, seria, passados três minutos, por cima do entroncamento do Saquiteiro. Guiassem-se pelo painel de bordo, pelas estradas e pelo "pinheiro gigante" do Alto da Portela.

Bem prega frei Tomás.

Entrementes, o nosso tenente começava as manobras de namoro.

 Fazia a sua avioneta rodopiar o prédio, curvas cada vez mais estreitas, apertando a tarraxa. Em alternativa, voos picados sobre o terreiro frontal.

 E a menina? perguntassem à Helena. 

Primeiro, nas águas-furtadas, com a ilusão de ter o namorado quase ao alcance da mão, dos lábios…

 Toda a casa se ressentia daquele inferno mecânico, convertido em vibrações de vidraças e baixelas. Mal disfarçada condescendência da Mamã: começava naturalmente assim, o amor! Aparatoso.

 

Paroxismo nervoso do Papá.

Desvairado, a mordiscar surdos impropérios, cuspinhava para todos os lados, encontrasse-se na sala ou no escritório, Sacudindo convulsivo o queixo afilado.

 “È louco, é louco, a minha filha vai casar com um louco” Refugiava-se na cavalariça. Ganiam cães, relinchavam éguas.

 Ficava agarrado ao pescoço do seu cavalo de estimação, olhos fechados, a acariciar o pêlo, até se lhe acalmar aquele involuntário estremeção cervical. Tique explicativo da alcunha: o Pica-pau

Quem se afoitava a chamar-lho? Nem os seus camaradas da Legião Portuguesa.

 

Rapidamente, cumprindo o plano, todas as aeronaves se reuniam para, em formação, se afastarem. Rumo às lombas do Montejunto. Adeus! Adeus!

 Um sorriso tolerante, da Senhora para as criadas. Não viria mal ao mundo, por tal demonstração de afecto .

 

Mas onde ia menina, assim estugada?!

Apanhar o pequeno bornal. Deixado caír, a uma vintena de metros da fachada principal da casa. Não estando visível de imediato, bastava procurá-lo um pouco, mesmo entre arbustos. Trazia bilhetinhos, páginas de um diário… E, pelo certo, aquela rosa.

«Vês, Lena?»

«Ai, menina, sejam muito felizes».

 

O pior, há sempre o pior nas histórias de amor, foi quando uma das chaminés de um fogão de sala se intrometeu no abraço que a avioneta do tenente parecia vir dar às águas furtadas do prédio. Esparramou-se a alvenaria, voaram pedaços de caliça. Era o fim. Senhora dos Anjos! Mãe Santíssima…

 ***

Não te cales já, Herculano!

Bastante descompensado, o piloto conseguiu aguentar-se no regresso até à base. Na cauda da formação, sem qualquer quebra na disciplina do seu pessoal. Como de costume, o nosso tenente fez-se à pista da Ota. Porém com o impacto das rodas, separou-se a asa fracturada, Só a experiência, na manobra de recurso, evitou um mal maior.

 

Chamado ao comandante, nada de disfarces. Responsabilidades assumidas, rosto erguido.

A outra versão do Herculano era a de que, por falha mecânica, afinal só teria algures ocorrido a colisão da aeronave com um chaparro. Um chaparro!

 Nessa não se deixou enredar a comissão de inquérito. Se colisão houvera, fora com superfície caiada, provas evidentes. Portanto: porrada pelo abuso, pagamento das reparações, faça-se lá ideia de quanto, e louvor. Pela perícia, coragem, sangue-frio, mais aquelas coisas que a tropa escreve em ordem de serviço. Tudo lido em parada. Destroçar!

Os anjos da Ota!

 

Tienem angel”, dizia ele, numa tarde na praia da Consolação. Assistíamos a um torneio de chinquilho, junto à fortaleza.

 De que falaria Ruy Belo? Das malhas de aço, cruzando o azul de mar e céu? Dos jogadores, silenciosos, alinhando o olhar sobre os tabuleiros?

 

Não. Estava apenas, com um sorriso largo de toda a terra, lembrando-se das raparigas de Madrid. Dos piropos que lhe ficaram por dizer, a tais chiquillas, nesse tempo de despedida. Distracções de poeta.


 Abril 2011

domingo, 26 de fevereiro de 2023

Rua ANTÓNIO HENRIQUES BEJA




(Legenda: António e Maria da Conceição, com neta Catarina, 1972)

O que vale um nome , mesmo como nome de rua? Quem foi? Quando viveu? O que fez, para que ali ficasse ao sol e à chuva?

Dizem-me por fotografias que o nome do meu pai foi dado a uma artéria  da Urbanização das Trigosas, em Santarém. Da velha Texugueira  - olival, figueiras, amêndoas, bandos de perdizes … - só resta  uma autoestrada, umas ruas com vivendas,  automóveis…  E pessoas que não conheço. 

Numa das ruas ,  nome do meu pai. Quem decidiu teve as suas razões que muito me agradaram.

Talvez a nota biográfica que então redigi, a pedido da Comissão de Toponímia, tenha aqui algum cabimento.

Nesse texto  tive por justo  sublinhar que se não fosse a minha mãe, Maria da Conceição Marona, a Rua António Henriques Beja teria outras razões para receber aquele nome. 



ANTÓNIO HENRIQUES BEJA JUNIOR

FILHO DE ANTÓNIO HENRIQUES BEJA E DE OTILIA DA SILVA – NATURAL DE PORTELA, S. SALVADOR, SANTARÉM – NASCEU A 19-11-1913 . FALECEU A 09-04-1995.

 INFÂNCIA

 Passou-a  até aos dez anos, na Quinta dos Pinheiros, acompanhado pelas avós Mariana (paterna), e Júlia (materna).  Enquanto os pais se ocupavam da  horta,  donde tiravam a  subsistência da família. António era  o irmão mais velho de Lucinda, Manuel, Piedade. 

As figuras dos avôs, Joaquim Henriques e Francisco Hipólito, ficaram-lhe sempre no coração. 

O avô Henriques (paterno) queixava-se de reumatismo. Era  fiel praticante  de três banhos, nas Caldas da Rainha, pelo S. João. Para  ele não havia melhor tratamento!

 Meu pai acompanhou-o nalgumas dessas expedições. E para o garoto, o mais excitante era a aventura de desafiar o assalto dos  hipotéticos malfeitores, escondidos  nas furnas do Alto da Serra, depois de Rio Maior. 

O avô Hipólito, deixou notícias de resistência a desmandos, emboscadas e crimes, por parte de um patrão das quintas onde foi feitor. Republicano, sim, mas com o sidonismo no horizonte.

 

ESCOLARIDADE 

Quatro bem sucedidos anos, na escola da Portela, com a Professora D. Angélica de Figueiredo, docente que permaneceu no posto de  1919 a 1954. 

Situava-se meu pai entre os melhores alunos, a par de outros socialmente  mais privilegiados. O sucesso merece-lhe o prémio de um livro de horticultura: A horta do Tomé, de Motta Prego. 

Na Primavera de 1978, António Beja reencontrou-se com a velha mestra, numa homenagem promovida pelos antigos alunos.

PRIMEIRO EMPREGO

 Aos dez anos: foi britar pedra, no entroncamento da azinhaga da Quinta dos Pinheiros com a estrada nacional 3

Grande oportunidade! Para o meu pai e para a escalavrada via pública. Só que o empreiteiro abandonou  a obra sem honrar o contrato. O pequeno britador nunca viu a jorna a que, durante três semanas, andara a fazer contas …“Foi para aquecer. Não para esquecer”, diria muito mais tarde.

Nunca esqueceu , porém, a almofada que a avó Mariana lhe entregou no primeiro dia de trabalho. Foi quando, à hora do almoço, apareceu em casa com o estômago vazio, as mãos em brasa e as "cruzes abertas".

Retirada de uma cadeira da casa-de-fora, a almofada esfarrapou-se em poucos dias.

 

SEGEIRO, 1924-1934.

 António insistia com  o seu pai em ser mecânico daquelas máquinas   modernas, os automóveis, que por vezes ultrapassavam os carros de tração animal no mau piso  da estrada,

Réplica paterna: fosse antes para a oficina do segeiro,  bem perto do sítio  onde, em vão, martelara a pedra.

Depressa aprendeu o trabalho do ferro e da madeira. Dadas as suas capacidades intelectuais,  o patrão confia-lhe tarefas de contabilidade e logística junto de clientes e fornecedores. 

Na experiência seguinte, o rapazote obteve autorização do pai para trabalhar numa carpintaria em Santa Clara. Foi  uma promoção, aquela ida diária à cidade, a passo  rápido, de lancheira na mão. Ele e tantos outros da Portela. 

Para comprar uma bicicleta teria de poupar do pouco que a mãe lhe devolvia da féria...

 

FUNDADOR DA SOCIEDADE RECREATIVA CRUZ DE  CRISTO FUTEBOL CLUB

A Sociedade. Na fase inicial, foi apenas o pontapé-na-bola, num efémero campo de jogos, na quinta do Casalinho… 

Depois, alguém conseguiu uns equipamentos usados pelos jogadores d'Os  BelenensesAtrás das camisolas, talvez viesse mais…

 Não veio. Mas o símbolo do clube ficou. As instalações da sociedade recreativa, permitram  melhorar a qualidade dos bailes, manter em actividade, enquanto a Censura permitiu e o cinema não usurpou, algumas representações teatrais. O ensino da música haveria de ter o seu dia … Era o projeto.

 António Beja foi um dos mais empenhados fundadores, em 1930 ou 31(????)

 MOTORISTA

Choferchauffeur, diziam as senhoras patroas. 

1936… Tinha começado a Guerra de Espanha, quando se orienta para a sua vocação de menino: o automóvel. 

Tirou, em simultâneo, as cartas de ligeiros e pesados, o que lhe aumenta as oportunidades de emprego, bem como o reconhecimento social.

 Conduz durante dois ou três anos viaturas de um negociante de rações, farinhas, azeites, vinhos…, -o senhor Pimentel, em Pernes. O patrão ajudou-o a compreender os valores da tolerância e do respeito, e ainda, o peso do humor e simpatia, como máximas para uma vida digna. António Beja citá-lo-á, ao longo da existência.

 Em Pernes, estreitou amizades, com gente da Música Nova e Música Velha, sem alinhar nunca em estéreis rivalidades das duas coletividades.

 Muitos anos mais tarde, revoltar-se-ia com a “chafurda” provocada pelo desenvolvimento industrial, no rio Alviela. 

E logo aproveitava para escandir pela undécima vez a tirada ciclística, Portela-Olhos de Água, numa tempestuosa quinta-feira de Ascensão. “Os rapazes só fazem algma coisa certa por engano”, garantia.

 Quando o Estado Novo quis preencher, com gente de confiança, as direções sindicais, recusou a disponibilidade, para o Sindicato dos Motoristas de Santarém, deixando  perplexo o autor do convite. Como é que um rapaz tão simpático não alinhava com a nova ordem corporativa?!

  No final da década de trinta, ofereceram-lhe emprego, na Quinta da Besteira, próximo da casa da namorada, Maria da Conceição Marona. 

Apercebeu-se desde cedo de que a atividade seria a prazo, dadas as deficiências organizativas dos patrões, que chegaram a sugerir-lhe  prescindir do salário acordado, visto que  se ia  casar com uma rapariga de família dita abastada.

1939, 29 de Junho. Estava desempregado, quando se casou com a filha de um médio proprietário rural da Portela. Joaquim da Silva Marona. Tiveram  dois filhos e com eles  partilharam   solidariamente todos os  projetos de vida. 

Considerar a memória de António é envolver Maria da Conceição no mesmo ato.


  AUTOMÓVEIS DE ALUGUER: 1939-1959.

Não tardou porém em voltar à profissão de motorista.Nos primeiros tempos, empregou-se por conta de um colega, o Batista, com quem aprendera a condução. 

Entrou-se num novo tempo de Guerra em que, apesar da escassez de combustível, os carros de praça se tornavam os mais úteis meios de transporte, mesmo quando movidos a gasogénio. 

Antes de 1944, já António Beja trabalhava por conta própria e começava a organizar uma carteira de clientes de relativo nível social, na Cidade e arredores.

Ter uma clientela certa, não o impedia  de aceitar ser acordado a altas horas da noite, quando no fundo da Azinhaga da Besteira, aparecia alguém implorando por um serviço de emergência: doença súbita, parto, acidente… 

Poder-se-iam exemplificar ocorrências de infortúnio em que o António Beja foi a voz e o ombro de apoio para vários  vizinhos. 

Ria-se, quando recordava que alguns desses vizinhos tivessem adiado até ao dia de "São Nunca" o pagamento do serviço. 

A vida  era dura. Mas  continuava a apresentar-se-lhe como um tempo de aprendizagem social: nunca  lhe escapou  a linha de separação entre humilhados e arrogantes.

Sabia  que havia  quem arriscava a vida pela Liberdade.  E teve a preocupação de ensinar os filhos a respeitar tais pessoas. Mesmo não compreendendo ou não concordando com as todas razões delas.

 

  AGRICULTOR

A partir de 1954. As suas raízes camponesas permitiram-lhe uma fácil adaptação à atividade agrícola, quando, sempre em conjunto com Maria da Conceição,  passou  a gerir a herança de  Joaquim da Silva Marona. 

O sogro falecera em 1948. Os bens seriam agora geridos por dois proprietários, independentes, meu pai e o meu tio Joaquim.

Como agricultor integrou-se  no ciclo de esperança-desespero do trigo, azeite, vinho… Dentro da tradição agrícola local. 

 De empregado de terceiros,  António chegara a trabalhador por conta própria e tornava-se, agora, empregador. Com a mesma modéstia de sempre. 

Embora o número de trabalhadores rurais fosse variável e diversificado, em função da natureza das tarefas, nunca ocorreram situações de rompimento entre as partes contratantes. Quando em 1974, com um dos filhos teve uma conversa sobre a consciência social do patronato, em tempos que se diziam de Revolução,  concluiu   com a serenidade do sexagenário:

“Nada me pesa! Talvez não tenha pago o salário justo, mas posso garantir que sempre paguei o ajustado.” 

 "E sempre em trabalho honesto”, sublinhou. Manteve a exploração agrícola até aos anos 80.

Em 1958, não teve hesitações e foi a correr votar no General Delgado, depois de ter vibrado com a visita do candidato a Santarém.

 COMERCIANTE: 1956-1986(+/-).

 As primeiras experiências como proprietário agrícola não foram economicamente tão compensadoras como as do falecido sogro, nos anos de 1910-40. 

A pequena agricultura confrontava-se com fortes desafios. Começava rarear a mão-de-obra, a mecanização era ultradispendiosa, a Corporação da agricultura só apoiava os grandes empreendedores… 

António Beja que, entretanto, não deixara o trabalho na praça de automóveis, embora se tornasse cada vez mais seletivo quanto aos clientes, decidiu enveredar por mais outra atividade económica: o comércio de vinhos e seus derivados.

 Para evitar o encerramento  da taberna da Besteira, adquiriu o alvará a um parente. Razão principal: escoar a produção vinícola por um preço minimamente compensador da despesa de cultivo. Minha mãe não esteve logo de acordo com a  abertura do negócio

Durante trinta anos o estabelecimento forneceu os camponeses dos arredores, e foi ponto de encontro de clientes vindos da Cidade, movidos pela simpatia do Beja e pela qualidade do serviço e produtos. A cozinha de Maria da Conceição era uma das principais  razões das preferências.

 A certa altura, para que se considerasse a sua dupla atividade de agricultor e comerciante, António Beja passou a referir-se à loja como a Tasca do Fazendeiro

Mais do que uma tasca, o comércio tornou-se uma espécie de cantina para os rurais e um refúgio de boa cozinha para os petisqueiros citadinos.

 Em 1959, negociou o alvará de taxista, pondo termo à tal profissão.

 

  PROMOTOR IMOBILIÁRIO

 Não se veja nesta designação qualquer objetivo de lucro rápido. Havia uma propriedade de escassa valia agrícola, no Alto dos Anjos, o Cabeço. Vendo-se sem segurança  social para a velhice, meus pais decidiram promover um loteamento habitacional. Só por essa razão se resignaram ambos a contribuir para a edificação de casas em chão de lavoura. 

Foi a última atividade que ocorre relembrar nestas notas.


NB: este texto foi redigido em 2010.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Simple and short

 Love Story

Como ela dizia:

  Dois olhares

  Duas bocas

   Uma palavra...

        "Breveternidade "

PS : Da outra margem do rio Atlântico, alguém concluiu: " It's the Kiss rule!"

Sintra, 17 fevereiro

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

ESCREVIVÊNCIAS 22


Rosas no arroz-doce

Minúsculas rosas. Plantadas há mais de um século por Justina - sim,  era Justina e não Ernestina. Justina  Direitinho faleceu por volta de 1948. 
Dela guardei uma tranquila fala, um sorriso, as queixas de quem procurava sobreviver, na quase penúria da nossa azinhaga da Besteira. Habitava um casal vizinho daquele onde nasci. Rodeada de fruteiras . Numa pequena casa toucada de roseiras . 
De lá trouxe comigo, há mais de cinquenta anos, estas minúsculas e perfumadas rosinhas brancas. Trouxe e perdi uma frondosa "bela portuguesa". De perfeitos mas efémeros botões.
Poderá perder-se também a roseira de hoje. Quando, não sei.
Um dia, já não muito distante, apagar-se-á  também o aroma do limão. Aquele!

 Verde, ainda em crescimento, apanhei-o sem autorização. E quando a J'tina me surpreendeu disse, ensinando o rapazinho: 
- Agora leve à sua mãe para fazer arroz-doce.
Não levei, escondi a falta. 
Mas o limão ficou. 
E procuro-o,  continuo a procurar, sempre que me dão arroz-doce sem aquele sabor.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Merendeira

 Bom dia.Estou de novo no Hospital. Exames continuam. Máquinas, intrusões,relatórios  .

Gelo! Em jejum desde ontem.

Vista-se, espere no corredor. Não! Não pode comer. Ainda não.

Gelo!Lá fora há sol, dizem uns maqueiros a empurrar uma inerte criatura.Gelo!

 Esperar  neste conversê sobre maleitas, gelo e fome.

Um médico e enfermeiras confraternizam um cafezinho. Espremido de outra máquina: BREAK Hot drinks...

Só me apetece aquela merendeira quente. A brindeira rasgada em quatro pelos dedos da minha mãe .

Nunca se queimava , mesmo quando dizia Poças! Deus me perdoe.E soprava nas mãos . 

Pão flumegante com aquele risco de azeite . Breve  luz desfiando-se da almontolia, à  boca do forno da minha avó... 

Porquê azeite?! Panaceia,  garante a nossa amiga Marilisa, sem nada topar de medicinas ....

Mas ao que vêm agora estas mulheres ? Não vos quero aqui no gelo deste  Hospital.

À merendeira, sim! Fumegante.  Com um fio de azeite e de sol.

São primos, sabias? Sim, azeite e sol - perguntou -me há muito anos uma pintora fotógrafa.

Espero no corredor que não se repitam os exames. Gelo!

Lisboa, 31 janeiro 2023

sábado, 28 de janeiro de 2023

Caminhemos

 


Caminhemos, Companheira,

Passo lento. 

Mãos dadas 

Até onde

no chão nos dissipem

as sombras... Além.

Além 

entregues à raiz 

do cipreste...

Virão o Sol, a Chuva

o Vento...

Com eles de novo

aprenderemos o voo 

das aves 

e daremos as asas.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

O Medo


Espantaram-se os pombos.

O medo
começa na classe média

Dá votos a extremistas
Promove generais
Azeda as vísceras 
Deserta soldados 
Atormenta-lhes as mães
Invade os palácios da Loucura 
Afunda na trincheira
os escravos da Guerra
Insiste em picar o brio
de heróis e aventureiros...

Mas talvez
 um sorriso fosse mais seguro
 do que gargalos de garrafa
plantados
nos muros dos vossos quintais, Vizinhos medrosos.

Talvez os pombos voltassem.



quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

O Velho

 O velho

Acossado
pelo fugaz
Tempo
Cambaleia
tropeço 
na sombra
da própria
Sombra