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segunda-feira, 23 de maio de 2022

BIBLIAMBULE

 Bibliambule 1

A questão:

 Será que os carrinhos-de -compras contam estórias?

 Vejamos...Aceitei o desafio, John! Serei capaz de dar conta do recado? 

Voz ao carrinho!

***

 A madrinha. Foi no Porto que a Gui disse.

Já não seria o Rodas nem Rodinhas... tampouco Charriot ou Camionette! Seria a Bibliambule!

Dos porquês da mudança nada sei.

Gui levara-me no Alfa, carregando  livros.....

***

Até ali, enquanto me usaram na Fraternal da Achada, cumpri em todas as atividades  durante anos. Carregador, na minha indiscutível condição. Carrinho de compras.

"Alombei", como dizia o Maça, com os mais diversos materiais. 

Apoiei nas mais diferentes tarefas. Começando pela instalação no novo espaço da Associação. Usaram-me na arrumação do espólio do Patrono.

Usaram-me na  Biblioteca. Fui prestável ao Coro . Ajudei na  montagem de exposições, nas sessões de Cinema e Teatro, nos debates e palestras...

Desculpem a vaidade de dizer que até entrei  numa das representações. Encenada pela Gui. Como adereço, está claro!

Desloquei trastes e bugigangas, por ocasião das feiras de velharias. Ali mesmo, ao ar-livre, no Largo da Achada.

Trouxe do supermercado viveres para  as confraternizações.

 

Muito se divertia o Angel nos passeios de S Cristóvão  à Baixa... Ele, com uma indumentária de palhaço, umas orelhas de elefante, peitorais e  dorsais...   Incansável painel publicitário  do muito que se fazia e faz na nossa Associação.

 Ouvi falar de Resistência, de Abril em festa, de Abril em Maio... Sem perceber muito  do assunto.

Havia sempre um modo de as minhas rodas e o meu saco ajudarem na construção dos dias. 

Repetidamente, também ouvi por lá da necessidade de construir e dar um novo sentido aos dias. 

***

Foi no Porto, repito, que a Gui, me mostrou uma nova maneira de servir a Fraternal da Achada.

Até o JN nos deu honra de fotografia e desenvolvido artigo. 

Gui desafiava os passantes, nos Aliados, a tirarem um livro do meu saco. Escolhessem, a gosto... 

E agora? 

- Pois agora vamos ler e dar vida ao texto.... 

Era a Gui no seu melhor.   Ler a meias: moitié-moitié ! Dramatizar. Improvisar texto.

Moitié-moitié?! Olha! Só agora me lembrei de dizer que a madrinha pensava em francês. 

Nascida em França, filha de emigrantes portugueses,  radicada em  Bruxelas. Fluenciava nas duas línguas. 

Visitava várias vezes por ano a Achada. Era só sentir a falta dos amigos, logo se punha a caminho. Sempre recebida em festa!

Foi no regresso do Porto. A Gui anunciou aos amigos:

- Vamos ter duas bibliambules!

Eu, que ficaria em reserva na Fraternal…

E uma outra?

A Gui já tinha em vista uma  nova companheira de rua ....  Para continuar os desafios aos transeuntes. Em Bruxelas: 

A Bibliambule 2!! 

Já pedira o risco a um designer seu amigo.

Tal decisão em nada me afetou. Pudesse a minha sucessora ser lá tão prestável, como diziam que eu era aqui.


(Continua)

quarta-feira, 18 de maio de 2022

ESCREVIV. 2.15 Branca e Alice, no alto dos Anjos

 Só atentos à realidade, poderemos ser surpreendidos pela fantasia.

 Como eu queria que esta parlenga trouxesse aqui, ao portão da Quinta dos Anjos, os poderes de três magos. A quem  crianças como vocês -Marta, Sofia ,Tiago...Álvaro, Pedro   - tanto devem. Já sem falar  dos que, antes e depois deles, temperaram tal  magia.

***

Agora,  voltando à  Portela e arredores. Sabem os meus leitores, se os tenho e se me assiste o direito de os incomodar com perguntas, quem foi o primeiro leiteiro-à-porta lá/cá do sítio?

 Esse mesmo, velhotes!

 Adílio Henriques, filho do cesteiro ti’ Manuel da Susana e da ti’ Maria Águeda.

Tinha ela, sim senhores, olhos de aço polido. Por injustiça e ignorância, assustadas mães lhe esquivavam as crianças de colo, não fosse a velha dar-lhes quebranto. Carcaça sofrida. Tuberculose, sanatório, morte de descendentes… cercaram-na de dramas. 

Teve ainda de assistir, noutros palcos, a chufas e dichotes:«Ai que estojo!!!». 

Farsas do acasalamento. Outros quebrantos, pois até no melhor pano… 

Ora, uma tarde, apareceu em minha casa, sem aviso prévio, o Adílio. Bata branca, bilha e caixa das medidas refulgindo higiene. Sorria garantias de qualidade. Futuramente seria ele a fornecer o leite, vendedor da Cooperativa. Interessados? À primeira vezada, tratava-se apenas de prospeção do mercado.

A bilha, vazia, falava por si. Querendo-se confirmar, bastava tirar a tampa e abrir a caixa das medidas. Tudo alumínio de primeira e  respetivas aferições. Tanto lustre por dentro como por fora. Coisa rigorosa. 

A partir do dia seguinte, todas as bilhas sairiam seladas da Cooperativa. Onde é que já alguma vez se tinha visto uma coisa assim?

Nem a ti’ Luísa Caréu da Quinta dos Anjos que, até então, assegurara uma venda  satisfatória. Secas que fossem as tetas do Gana ou do João Hipólito, salvo seja. Das suas vacas, está claro!!!!

A seu tempo se falará destes dois fornecedores sazonais. 

Já chega para atestar que, antes da Cooperativa, quem queria beber ou dar a beber leite fresco, tinha de se deslocar à fonte do dito. E por vezes voltar a casa com a vasilha vazia.

 Então e os magos  ? Tenham paciência, que a patranha demora, como dizia o meu amigo Joaquim Ferrador, enredado em histórias de caça.

O leite, para mim, «podia correr por uma telha», parecer da minha mãe. Para em cada manhã me deliciar com uma tigelada de sopas, salpicadas com café de mistura. Mesmo que se tratasse de leite gordo e enjoativo das ovelhas da minha avó Marona. Por uma telha!

 Levei anos até compreender os inconvenientes deste mata-bicho.

Quanto ao meu irmão, desde muito cedo que ficou dependente de leite artificial, passando posteriormente ao  de vaca, destemperado com água.

Daí que quando a Palmira foi servir para casa da minha avó incumbiram-na de ir, todas as tardes à Quinta dos Anjos, aviar-se do precioso alimento. Eu acompanhava-a, ou melhor, fazia parte do grupo de clientes.

***

 Subíamos ao cabeço dos Anjos, tomávamos o carreiro a que chamam hoje de rua de Santa Catarina. Atravessada a estrada, era só seguir pelo arruamento saibroso da Quinta...

 Perguntavam-me quando é que deixava aquele bibe de xadrezinho. Preto e branco, por luto do meu avô.

Apoiada numa cana, chocolateira de cobre na outra mão, encabeçava a fila, aos solavancos e gemidos, a ti’ Maria Pequena. Avó do Coquelim, tia-avó da Florinda… Chega de mais parentescos por agora.

Velha e coxa. Uma chaga incurável numa canela, abrigava-a, no regresso da quinta, a fazer pausa em casa irmã, a ti’ Júlia Boleeira. Para lhe fazer o penso.

Quando a Palmira deixou de trabalhar em casa da minha avó, eu mantive a ida diária à Quinta dos Anjos, agora entregue à Maria Pequena. Garrafa dentro de um saco de retalhos e juízo na cabeça!

Ufff! Nunca mais acabava a volta do leite. Depressa me fartei. Dos constantes lembretes sobre o meu comportamento, dos passinhos curtos da velhota, mais da conversa mole na paragem no sítio da ti’ Boleeira.

O casal era mesmo em frente do portão da Quinta dos Anjos. Evito agora pintá-lo, em verdes, vermelhão do saibro,  alvadio da casa…

Sim, e a charca! A charca das mil navegações, embalado pelo coaxar das rãs, enquanto à volta das espadanas me perseguiam monstros…

 Sosseguem, eram apenas cobras de água que eu avistava da margem, contemplativo entre as estevas. Adiante, para me poupar o coração.

 Só mais uma pincelada, desculpem. 

Sobre toda a propriedade da Júlia Boleeira, distinto de ambas as margens do Tejo, erguia-se o Pinheiro. Manso, rico de ninhos e pinhões. Gigante de harmonia e majestade,  no tronco e na copa. Nunca vi árvore assim entre as da sua espécie. Multissecular, figurava nos mapas.  Cheguei a deitar cálculos: quantas crianças seriam necessárias para, de mãos dadas, lhe abraçarmos aquele espesso tronco? 

Ai de quem se arriscasse  abatê-lo! - dizia-se.

Naquela tarde de Maio, estugávamos o passo, para não sermos apanhados pela trovoada. Eu queria correr, Maria Pequena ralhava-me, entre rezas a Sam Jirolme e Santa Barba. Que podia cair, entornar o leite, cortar-me nos vidros da garrafa. Aquilo eram só trovões! De momento. Íamos conseguir abrigo no casal, antes da chuvada grossa.

***

À justa! «Agora, que Deus a mande… Santa Barba e Sam Jirolme…»

Na sala, que servia de atelier de costura, estava uma menina desconhecida. A Florinda! Mais velha do que  eu. Indiferente aos receios com que a modista, a sua tia Constância, e a avó Júlia escondiam agulhas e tesouras. Não fosse um raio entrar pela casa dentro. 

Florinda folheava cadernetas de cromos.

 Sobre a casa caía um dilúvio, relampejava por todo o vale . Ramalhava ameaçador o grande pinheiro.

 Devido ao súbito escurecimento, acenderam dois candeeiros a petróleo, um dos quais foi colocado sobre a mesa onde a Florinda me começava a identificar os bonecos dos seus livros. Ela já sabia ler. E eu, aos cinco anos começava a sentir vontade de aprender. Quando?

Esquecido do mau tempo, entrei na primeira caderneta de cromos, A Branca de Neve. Inédita e doce ansiedade. 

 Posteriormente, quando a Florinda foi para a escola da Portela, e eu já me aventurava na leitura e nas visitas sozinho ao casal da avó Boleeira, pedi-lhe por empréstimo a caderneta da Branca de Neve. Então, ela avançou outra coleção que, entretanto, concluíra. Alice no País das Maravilhas.

Aqui está a chave dos meus três magos: dois irmãos Grimm mais o Lewis Carroll. Que disseram eles todos sabemos, o que quiseram dizer com aquelas personagens e peripécias,  fica por  nossa conta. Ainda hoje procuro ali significados escondidos.

 Releitor que revisita o local onde abriu pela primeira vez os livros.

***

Apagaram os candeeiros, porque  reclareava a tarde. Nesse caso,  que a Florinda me levasse  a ver os cachorrinhos. Sugeriram as adultas.

 Ela pegou-me pela mão e puxou-me para  o recanto onde a cadela tinha, horas antes, parido a ninhada. Tantos!

Mexer-lhes, nem pensar! Aviso de que a bicha estava sôfrega. Rosnadelas, olhos turvos.  

Dias depois compreendi que, à exceção de um, sempre o primeiro a ser abocanhado pela mãe, todos os outros tinham sido afogados. Pelo criado da avó Boleeira. Na pia dos carneiros e por que não na charca?

***

Era tempo de nos pormos a caminho. 

 A  meio do Cabeço, ouvi pássaros. Sacudidos dos ninhos pelo vento, piavam impotentes na boca de dois gatos que em vão espantei, sem conseguir libertar as vítimas.

Como se não tivessem bastado a trovoada e as maldades da rainha madrasta, a cadela  ameaçadora…

Branca e Alice, no alto dos Anjos. Aqui vo-las deixo.

Tudo soçobrou: pessoas, casas, matos… Terraplanaram a charca. Para construir ali um centro comercial, no ramo dos móveis importados.

Mas o pinheiro? Que lhe fizeram? Quem? 

Se me tivesses telefonado, teríamos cumprido a promessa de nos acorrentarmos ao tronco! Estava combinado, camandro!

  E o Rebelana fechou-se em copas.

 «Então, meu?» ,  gaguejei-lhe com a  faca no peito. 

«Não te disse nada. Não havia nada a fazer. Esquece.»

Tinhas razão, amigo.  Esquecer pode ser a chave.

Contudo nunca esqueci. Branca , Alice e  o Pinheiro.

Aqui tens, Florinda.

Novembro 10, 2010 

 

terça-feira, 10 de maio de 2022

ESCREVIVÊNCIAS 2.14 À unha! De caras

 

À unha! De caras!

O Marino, disposto a dar uma bem-vinda mãozinha escrevivente, nas estórias da Quinta dos Anjos. Instado pelo Alfredo.

Convicto, este, da minha completa ignorância, quanto a um pormenor da vida do Joaquim Caetano.  Meu já declarado amigo de infância e tratorista da Quinta.

Só faltava agora sabermos  tudo sobre a vida dos nossos amigos, meu irmão!


E o Alfredo invetivando-me:

 «Sabes tu, sabes tu de quem é este castelo?»

 Essa não!…Era de outra lenda. Lá para os lados de Barcelos.

 Peço desculpa. Em tempo, se corrige:

 «Sabes tu, como começou a promoção a tratorista do Joaquim Caetano?»

Contorci-me. Em branco, menino! Não sei, não vi, não estava lá.

Nunca, o mano Alfredo deixa sem resposta:  

«Ainda bem que lá não estavas, teria sobrado também uma cornada para ti. Conta lá, Marino!»


*


«Muito antes do Braga, que se arruinou nos amanhos da Quinta das Trigosas, esteve lá o João Caldas. Lembram-se?

Rendeiros.

Mas isso  já eu aduzi, metendo lavoura escrita na Texugueira, empoleirando, no valado da Oliveira Santíssima, a santinha da minha avó Gertrudes. Sem desfazer em mais nenhuma das outras avós do mundo. A berrar pelo neto.

Só que  a tal promoção do Joaquim Caetano dera-se uns anos antes. O mais certo até,  antes de eu ter nascido. Quando?...e o que é que isso importa!

Marino acredita, pela atenção do concílio dos primos, que a curiosidade rebenta.  Estávamos à mesa os netos da avó Otília, do avô António Caréu.

Então foi ele, Marino, com sete/oito anos a ouvir a gritaria da vizinha  Sapata... No sitio do Canto. Aquela nesga de modestas habitações, entre as Trigosas e o Casalinho.

 Que levavam ali, enrolado numas sacas, deitado e desmaiado ou morto, sabia-se lá, um rapaz boieiro do Caldas.   No lastro de um carro de bois. A caminho do hospital. Nunca mais lá há de chegar, se não vierem os bombeiros. 

Entrementes, alguém teria ido por eles, de bicicleta.

*

Joaquim Caetano. Por azedumes. Com um dos bois da junta que lhe fora atribuída. O boieiro recorrendo à aguilhada por dá-cá-aquela-palha, o bicho respondendo tão-só com olhar turvo.

Cada vez mais bistre e sanguíneo. Quem é que sabia ler o olhar de uma animal que até ali fora a pachorra, a moleza da lama,   a todas as vozes de comando. Sem castigo nem ralhos. Sem desconfianças de parte a parte. Ao tirar e pôr a canga ou a soga. Atrelado ao charrueco,   à grade, ao lamego, ao carro. A quatro ou de singelo.  

 À manjedoura nunca o bicho passava sem retribuir cuidados de postura alimentar ou de cardoa,  lambendo as mãos ao tratador.   Boi e boieiro como irmãos. Salvo seja. Até que… E vá-se lá saber a razão. Assim pode começar uma guerra!

 Verão, fim da sesta. A junta de bois remordia, por desfastio, uns ramos de freixo, pelas sombras, na frescura das várzeas da Ribeira Grande. Joaquim Caetano amodorrara um pouco para recobrar forças. Mas,

Ao trabalho! Era preciso voltar a meter os animais ao carro regressar à Quinta dos Anjos.  

Nesse momento. O boieiro teve a certeza: aquele bicho estava a pedi-las!. A coisa tinha de ser tirada a limpo. À unha! De caras!

Contava-se, depois do acidente, que o Caetano, sem se aperceber da gravidade, mudara o nome do animal. Três anos seguidos, Doirado isto, Doirado aquilo. Companheiros de trabalho, jorrando suor para a bolsa do mesmo patrão.  

Mas quando o animal se firmou em desafio. Na Ribeira Grande, já está dito. Bateu-lhe as palmas, o boeiro. Fez peito e saltitou. Eh Boi! 

«Eh Mal-capado!».

 Duplo e feio insulto. Tanto atinge o machorro como o emasculado. Ouvido por boi, nem por isso obriga a perdão ou desconto. Mesmo boi manso, pisado de trabalho. E já esquecido da pancada do malho, com que o do ferrador lhos moera. Pois é, mas tudo tem os seus limites.

É preciso chamar os bois pelos nomes, Joaquim Caetano. E tu devias saber isso desde os tempos de menino, lá em Óbidos. Quando com os da tua idade tocavam as juntas, para dar aos barcos aquilo que areia da praia lhes roubava. Movimento. Muito antes de chegares à Quinta dos Anjos.

Este boi não teria trapio nem cornamenta para ti? Cuidado!

Logo, o bicho se soltou da soga e levantou a cabeça. Ainda te dava uma oportunidade de corrigires. Cerejo, Ramalhete, Doirado, Cabano, Trigueiro, Formoso, Salgado, Castanho … eram nomes de boi. Quem não se lembra? E os bois gostavam de ser chamados pela sua graça. Só que, só que foste longe demais. Repetiste: 

Mal-capado!

Corrida breve para acolher o impacto. A tua última, sem perna desnocada. Vamos … Vai-te a ele. Embarbela-te, homem. Aguenta o derrote. Torce-lhe a cabeça, caraças!

 

Foste sacudido. Marrado, pisado… O Marino até garantiu que mordido! 

Não será fantasia, relato de rapazola de sete anos há-de ter seu fundo de verdade.

 E um remate a preceito: por fim, atirado ao ar!

Caiu o boieiro como uma pedra. Baque!

Tranquilo, o boi regressou aos ramos dos freixos. Por desfastio.

O resto já se sabe. Hospital, milagre dos médicos e das irmãzinhas da enfermaria.

Sobretudo, o bom coração da senhora D. Maria Romana. Insistindo para se conseguir a decisão soberana de João Caldas. Manter o Joaquim Caetano ao serviço da Quinta. Mandando-lhe tirar a carta e comprando um trator. 

A Nação precisava de trigo. E do suor do povo. Mandava o Chefe. 

Olá! O senhor dos Anjos era dele  incondicional

*

Tudo isto estava fora do meu conhecimento, Amigos!

 Obrigado, Marino e Alfredo. Aqui temos um trabalhinho de equipa. 

De facto, tratavam o Joaquim Caetano por Coxo.

 

segunda-feira, 2 de maio de 2022

ESCREVIVÊNCIAS 2. 13 Trigo!

Trigo, tanto trigo!

Queremos pão!

A grande lavoura. Estava-se ainda no auge dos três ciclos de produção. Trigo, azeite, vinho.

 Sustância para o corpo, linimento para a alma. 

As carências, da primeira metade do século, ditadas pelas guerras mundiais e pela sanguinária confrontação civil em Espanha, determinaram incentivos à produção. 

Particularmente quanto aos cereais panificáveis

Ganâncias e... fomes. 

Tanto trigo!

Queremos pão!

Por aqui nos ficamos, que isto não é requentada doutrina neo-realista.

 Nos finais de 40, o lavrador João Caldas trazia de renda a quinta das Trigosas e o lavrador José Ribeiro Tropa, dono da Granja, amanhava a Quinta da Besteira.

O empreendimento levava-os a investir fora dos seus domínios.

Produzir! Produzir! 

***

Segue ali, o semeador, com as balizas de caniço entaladas debaixo do braço, esquerdo, contra o sementeiro. Compasso a rigor. 

Parecia retirada do peito, aquela mão cheia de promessas. Recuada até os ossos rangerem, avançada de seguida, aberta e repartidora, em direção ao ombro esquerdo. Distribuindo o cereal em sucessivas meias luas. Regular. Nem ralo nem basto.

“Abençoada mão que fez este trabalho!” diriam as mondadeiras. 

Do mesmo modo, junho fora, as ceifeiras, os gadanheiros. Porque, às vezes, se reconhecia a  perfeição, mesmo quando as forças das gentes se esvaíam em suor e dor.

Julho, já com a colheita enceleirada, as debulhadoras dos Anjos e da Granja acudiam à produção dos pequenos e médios agricultores.

 “Quem não tem bois, ou antes ou depois” .

Provérbio de conformação de pobres e remediados.

***

Música Velha, Rebelana!

«Tu ‘tás-me a ouvir isto?» 

O quê, Rebelana? 

A conversa parecia já descarrilar, por efeito de um copo a mais.

 Sons vadios. Vadios? 

«Sobem do passado…» 

Eram os pregões do Có, do Pronto Caleiro, do peleiro, do Rica-Prima… 

Chega, Rebelana, apre! 

"' pera aí, pá!"

Faltava  ainda o  homem da enfardadeira!

Qual homem, Rebelas?

"Na 'tás a ouvir, gaita?


***

Às vezes, dava-lhe para comparar o som da corneta do João Macho com a do Francisquinho. Sardinheiros da Azoia, fornecedores da Besteira. 

Um alongado chifre de boi, aventado pelas bochechas de cântaro do João Macho. A par de um sopro tísico,  numa corneticha de metal, espremido pelo Francisquinho.

Mulheres a saírem dos quintais. Comprar para elas e para quem tivera de ir trabalhar mas fizera encomenda e deixara prato e pano. Para que as moscas não viessem logo pôr larvas nas sardinhas ou no chicharro. 

Mais do que peixe fresco, a carroça do João Macho trazia  novidades. 

De frescura garantida, numa manhã, sem jornais. Nem telefonia. Com um telefone, único e mais próximo, na dita Quinta dos Anjos.

***

A  debulhadora

Na Besteira nunca acontecia nada. Quase nunca, a bem dizer.

«Não é verdade!», contestava-me, pela década de 80,  o  meu amigo Rebelana, na taberna do Cunha.

Acontecia a chegada das debulhadoras!

Sempre à tardinha, de um dia tórrido. Quando a polícia de trânsito autorizava, sem que os rastos de ferro das máquinas estragassem ainda mais o alcatrão fundido pelo sol.

Vinham em primeiro lugar as galeras, puxadas a muares. Carregando bidões de combustível e lubrificante, correias de transmissão,  a balança, rolos de arame, o cavalete do esticador.

O esticador instalava-se na periferia da eira. Sabendo dos ventos, do curso do Sol, protegia-se, assim houvesse oliveira a jeito. Passava todo o dia: estica, enrola uma alheta na extremidade, corre à outra ponta do cavalete e guilhotina. Arame de ferro, dúctil e oxidado Atilhos de trefilaria para os fardos de palha.

 Aglomerava-se, vindo do cu-de-Judas, o primeiro rapazio, tomando posição para o resto do desfile. O alarme  correra pela Portela.  Esperem por mais! Chegava a debulhadora!

O segundo elemento do cortejo era a enfardadeira, puxada por uma junta de bois.

Tratava-se de uma máquina finalizadora do trabalho: comprimia a palha, aramava os fardos e expulsava-os. Para o chão, se os homens encarregados de os levarem ao ombro não ocorressem a tempo. 

Prensado o fardo, quem estava nessas funções dava duas pancadas com o alicate. Aviso duplo, para o carregador e para o homem que alimentava a palha. Pusesse mais um separador de madeira, fronteira de um novo fardo. 

O alicate contra um pedaço de folha de charrua. Aço contra aço.

Rebelana não tinha ali nada, na tasca do Cunha, para reproduzir os sons que lhe brigavam nos ouvidos.

Aquela estridência sobrepunha-se a todos os outros ruídos da eira. E afastava-se agressiva e monocórdica pelos campos de restolho. Com as revoadas de palhunça.

 Faz lá outra vez, Rebelana!

Se o Rebelana lesse hoje esta relação, já estaria a espingardar. Com razão, pois pus o pessoal a compactar os fardos, sem ter ainda instalado a maquinaria principal.

Faltavam debulhadora e fagulheiro. E ainda o trator, que os rebocava na estrada e accionaria todo o conjunto na eira.

No rabo do desfile, a pé ou empurrando bicicletas, atravancadas com bugigangas, seguiam os trabalhadores. 

Quinze, vinte? Um rancho! Mantas e alforges. Material de refeição. Seira de palma com talher, temperos, côdeas de pão, rodilhas. Caldeiras fuliginosas, as burras, ou sejam, as negras hastes de ferro em que as ditas caldeiras seriam suspensas sobre as chamas. Alguns também levavam frangos. Debicando de eira em eira, engordavam os bichos, a custo zero, para patuscada, no final da época.

A petizada, embasbacando-se com aquela tropa fandanga, nem dizia em casa para onde se ausentara. Voltariam, dos mais pequenos aos mais matulões, nos dias seguintes, à eira, fascinados com tanto avanço de maquinaria.

Calcadoiros, trilhos, uma parelha de éguas em rodopio, padeja de palhas e moinhas, impropérios contra os ventos, ora amainados ora em desalinho, eram obra do passado. Embora ainda usadas para as favas, o grão-de-bico, os chícharos…

Quem é que se vai lembrar do nome de todas as alfaias do trabalho nas eiras, daqui a cinquenta anos? Daquele seco martelar na relha com o alicate?

Que te poderia eu responder, Rebelana?

Santarém não tem hábitos, cultura, políticas de museologia. Nem orçamento nem vontade. Já lhe chega ter de armazenar os achados arqueológicos, sempre que escavam um arruamento.

Afora os azulejos do mercado municipal, muitos deles espelhos do labor desenrolado ali ao lado, no Campo Sá da Bandeira, o Concelho não honrou devidamente com um museu etnográfico, o trabalho. Quem lhes produziu riqueza nos  campos, no rio, nas oficinas  de artes e ofícios. Salvou-se a jaqueta do campino e viva o velho. Tanto mais absurdo quanto a cidade se quer, segundo alguns, conservadora, mas quase necrófila.

Na Portela, onde todos os utensílios de lavoura foram levados pelo caruncho e pelo ferro-velho, Rebelana foi, até aos seus últimos dias, um guardião de sonoridades. Desde a pancada do alicate, cadenciando o rendimento da enfardadeira, ao gorjeio de todo e qualquer passaroco. 

Tal como o Mané-Mané, foi o último assobiador, estrada-a baixo estrada-a cima.

«Tu ‘tás-me a ouvir este som?» 

De nada valia retorquir ao Rebelana que eram coisas do antigamente.

Música velha!