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segunda-feira, 21 de novembro de 2022

ESCREVIVÊNCIAS 2. 19 Um dedal de vento

 

"Por um dedal de vento..."


Por agora resistiria a encafuar-vos já na Quinta dos Anjos. Até porque não sei como tratar o  tema de hoje.

 Então, voltamos ao sota ervanário? Ao meu trisa Emídio, herói do meu pai-menino, por quem soava alarme, sempre que o velhote empurrasse a bengala para lá dos limites. Vedado sair do picadeiro casa-taberna da irmã-casa ou esgueirar-se para a horta…

Ouvissem-no e logo ele voltava às suas expedições de coletor de ervas. Localizando e colhendo com cuidados de mestre, as ervas das suas mezinhas. De mestre, sim senhor. Mestre Feijão!

Não, amigos: Por hoje mais não digo acerca do Serpa Pinto. Porém hei de completar-lhe a crónica, se me ocorrer. 

Resigno-me a continuar o despejo do saco da Quinta, só depois me entregarei a outros alívios. Sim, é verdade, as memórias podem tornar-se flatulências. Não haja dúvidas. O desejável é que as vidinhas não tenham sido mal digeridas. Estômagos rijos, fígados de santo precisam-se!

*

 Cresce o meu pai mais uns palmos, não muitos , que de família herdara a franzinice. Enrola-se no varino do seu avô Joaquim Henriques…

 «Aonde vais, António?», pergunta-lhe a avó Mariana. Àquela hora?!

 Deixar para trás o resto da ceia e meter-se à escura friagem da noite?

António: que não ia sozinho,  tanto podia voltar daí a uma hora, como um bocadito mais tarde...

Destino? Quinta dos Anjos, se as contas não saíssem furadas.

 A família entendeu. Tinha-se ouvido foguetório ao fim do dia. Anunciava-se a festa da Adiafa

*

«Pelo menos já cá moramos», disse alguém. 

E digo eu a quem me lê. Não vos tiro desta Quinta!.

 «Até aqui não nos podemos queixar...» , acrescentou outro dos vultos que acabavam de transpor o porto do valado. Intrusos, furtivos... 

Pouco barulho!

 Se a  invasão desse para o torto, só se perdiam as passadas e depressa regressariam à Portela. Ganhariam mais umas horitas de sono. Que o dia seguinte não iria diferir da rotina de empurrar andantes e lancheira Calçada do Monte acima. Pegar às oito, nas oficinas .

Mas, naquela noite, a sorte havia de bafejá-los. A sorte e o calor do baile. Era uma fezada.

 Então, despachem-se, rapazes! Cuidado até ao quartel do pessoal da azeitona.

 Que eram gaibéus, caramelos, bimbos, gente  da Bord’água, da Charneca, arraia de Montalvão?… 

Ignoro de que recanto tinham migrado os apanhadores daquela safra

Gente de fora. Os da terra  não chegavam para as tarefas.

 E saídos da Escola, r cada vez se afastavam mais do trabalho no campo.

 *

«Estamos quase!»,  cochichavam os rapazes. 

Ouviam a concertina. Confirmando a notícia de que só tinham tido conhecimento  no regresso do trabalho na Cidade. Adiafa da azeitona  na Quinta dos Anjos. 

Já os avós contavam ...Mas isso será conversa para outra altura.

Tivessem os intrusos sabido mais cedo, teriam preparado as coisas de outro modo, sem irem assim ao calhas.

Bem conversadinhos, por algum dos trabalhadores locais –o Sílvio, o Antero, o Guilherme Barra...-,  os organizadores da função não recusariam entrada aos  da terra. 

Tanto mais que a questão era sempre a mesma: por que haviam as raparigas de dançar umas com as outras, à falta de parceiros suficientes? 

Bom, vamos lá andando, que com sorte…

 

Continuavam a abrir caminho na noite cega e fria. Espicaçados e pelas tojeiras agressivas. Matagal dos Anjos!

Rodearam o quartel do rancho com devidas precauções. No alpendre, onde se caldeirava, assava-se chouriço ou toucinho. 

Que, pela Adiafa, havendo oferta do petisco, do vinho e do abafado, dar ao dente e regar a goela era a melhor forma de agradecer a liberalidade do patrão. Mais uns vivas, umas pulhas, uns descantes … Por fim, bailarico.

Sem excessos!

Recomendavam os velhos. Não era a noite do fim do mundo.

 Mas a geada, a alegria, o petisco, a pingoleta puxavam pelo desejo. De abraçar a música e o par.

 Então e eles, os visitantes.?

Amoitados no escuro, transidos, como fazerem-se convidados? 

Dar a cara? Mas a quem ir assim, do-pé-para-a-mão, revelar o desejo de participar no rodopio?

Por mais que as raparigas estivessem interessadas em mudança de par e conversa mais saborosa, não era provável que os homens da família fossem pelos ajustes. 

Não se avistando ninguém da terra, só havia uma saída., virar costas. Ir para vale-de- lençóis .

 *

Alto lá! Querem  ver que...

Abre-se uma porta a poucos metros dos intrusos. Lá dentro, adivinhava-se a animação. 

Que querem estas, agora?

Raparigas palradoras, a queixarem-se da falta de rapazes. Uma voz, mais velha, a quebrar-lhes o fervor: sabia muito bem o que as cachopas estavam a pedir. 

Gargalhadas. 

«Mijem que vos passam os calores! Mas não se arranhem no mato.» 

Mais gargalhadas.

 E assim teriam todas elas  feito, até à última gota, se…

 *

Os pretendentes dançarinos, ajoelhados no chão, a uns metros, acotovelavam-se. Pschiu! 

Continham a respiração.s E o riso. Meu pai “ferrava a dentuça na gola do varino”… Iam aguentar-se, ao som de tais repuxos?

Que remédio! À menor fungadela, armava-se logo uma grande balbúrdia. Deixassem escorrer! Não estavam ali. Nem eles nem elas. 

Só que…

Como diria o doutor Feijão. “Por um dedal de vento….

Descuidou-se uma das mijonas. E o estampido perdeu-se no  pinhal.

 

Ah pernas, para que vos quero! Disparam os metediços, diretos ao valado por onde tinham entrado.

 

Alarido, sobressalto, calou-se a concertina. Lanternas de palheiro. 

Desafios ameaçadores para o escuro, Na direção dos fugitivos. 

E quem seriam  aqueles filhos da dita?

Voltassem que haveriam de levar os chifres amassados. À paulada.

 E uma mulher, esganiçada, apregoava artes de capadora: «Venham cá que eu vos arranco os...»


 

Só pararam na azinhaga da quinta dos Pinheiros. Fora de perigo. 

Alguém perguntou:

«Porque fugimos, caraças?»  «Ninguém fugiu, poças! Viemos foi atrás dum traque!»

Outro sentenciou  calmamente:

"Por um dedal de vento, não se vai perder um alguidar de tripas.”

 Máxima do doutor Oliveira Feijão (1) . Professor da Escola Médica de Lisboa. Sábio, respeitador das forças da natureza e par do Reino. O povo repetia-o: “Por um dedal de vento” 

Pouco mais conheciam do valor cívico, intelectual e empresarial  do patrão da Quinta da Mafarra.


2010/2022.

Nota biográfica

1) Mestre Feijão

https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Francisco_Augusto_de_Oliveira_Feij%C3%A3o

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

CONTAS DO RECADO.

UM SMARTWATCH 

Sorriu e aceitou a minha prioridade, na passagem de peões. Para o velho que sou, é ouro uma simpatia destas. E vinda de um jovem desconhecido...

Que logo encostou o carro e chamou:

-Senhor! Senhor!

Ia apressado, para a calista. Peço desculpa, Fábia, era mesmo podóloga que eu queria dizer….

Quando um indivíduo deixa de ser capaz de domar as unhas dos pés...Ai! Ai!

O jovem continuava a sorrir. Repetia um sorriso de quem?

- O senhor está igual. Mais uns cabelos brancos ...  Na mesma!  Há anos que não  o via .

Embora  atrasado e sempre na defesa, quanto a este tipo de encontros, prestei-lhe mais atenção .

Não, nunca tinha estado com aquele jovem!

Consciente de  que um sorriso pode não ser uma ponte 

-Sou o Ricardo!

Ricardo?... Só me ocorreu  o Agua-Ruça. Que não era para ali chamado.

-Então o Ricardo conhece-me do... Centro de Saúde, não é?

Anzol mordido. Deixa ver o que isto vai dar. Ó Fábia não se ria, . escute o resto, se faz favor.

Pois era mesmo do Centro de Saúde. Quem havia de dizer?! Com mais uma palavra e o Ricardo confirmava:

- Exatamente! Centro de Saúde da Amadora. Lembra-se do meu pai... O Vítor Pereira? Toda a gente o tratava por Vitimho. Era segurança.

Dois trampolineiros à compita, pensei.

Do pai?... Bem, tinha  uma vaga ideia. Não nos podemos lembrar de tudo.E como é que esta conversa vai acabar?

A vida dá voltas. 

O  pai Pereira reformou-se. Pensão de miséria. O filho foi para a Suíça ,  que isto por aqui não dava.

-Saiu-se bem Ricardo?

Que sim. Estava agora de férias. Vinha ajudar o pai.

Daí a uns dias inaugurariam uma ourivesaria no Cacém. Mesmo ao lado dos Correios. Tinha facilidades em colocar ali relógios de boas marcas 

- E o senhor está desde já convidado. Aqui tem...

- Relógios, Ricardo?! Que boa ideia! Só que. no próximo sábado, estou ocupado. 

E desejei que o negócio fosse próspero.

Fiz o gesto de me despedir. Estavam à minha espera.

Que antes, ele , Ricardo , certo de que o pai apoiava a decisão,  me oferecia um brinde de promoção da Loja.

-Aqui tem, abra. Vai gostar. Tem netos? Quatro?!...

Aí, entristeceu. Brindes para todos não prometia...

Abri a caixa, a peça em nada me atraía . E agora ?

- Isto não é um relógio, é um smartwatch 

--Claro, Ricardo!!! Daqueles que até têm escova de dentes....

O sorriso ficou amarelo. Eu exagerava. Mas tinha medidor de tensão, muito importante na minha idade...Tinha podómetro...

Ponto final  Estava na altura de eu  sair de cena:

-Ai não, amigo! Pegue o seu relógio que tenho a podóloga à minha espera.


Consegui chegar a horas, sem o smartwatch suíço.

Trago -lhe uma história fresquinha, Fábia !


(Continua)


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