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terça-feira, 12 de novembro de 2013

Tempos de segeiro

Cá estou, outra vez, na oficina do mestre Carlos do Samuel. Onde o meu pai aprendeu o primeiro ofício. Já nos esquecemos da sua triste experiência de britador de pedra, decorrida nas imediações deste lugar de fabrico e reparação de veículos de tracção animal: carroças e charretes, galeras e, até, o modernício  char-à-bancs
Sobre as galeras, registei que, entre outras missões mais vulgares, traziam, ao tempo, com muita chicotada e  várias mudas de parelhas, o peixe fresco, de Peniche. Fazia-se entreposto, em S. Pedro, no entroncamento da estrada de Rio Maior com a Nacional 3. As mulas espertas aproveitavam as paragens de descarga para, soerguendo alternadamente as patas, aliviarem os músculos do esforço da corrida. Também as pessoas deviam usar da mesma inteligência, para dar folga ao corpo, sem quebrar o rendimento do trabalho. Donde viria esta lição de meu pai?
O charabã? Pode-se perguntar à avó Google.  Se ela nos mostrar o boneco, logo me tira a vontade de mais escrever. Carro longo, dois relativamente cómodos bancos laterais, bagagens arrumadas por baixo dos assentos, entre as duas filas de passageiros…
 Mal comparado, como as carruagens do metropolitano de Lisboa, na linha do Aeroporto. A diferença: estas não têm cocheiro, trintanário, bestas e moscas. Digamos, numa primeira observação. Quanto aos cheiros, podem ser muito similares, depende da lotação.
Atenção! A nossa próxima paragem não será na Alameda ou nas Olaias, mas em Alcanede! Dêem tempo ao escrevenhador, nunca foi de mata-cavalos. Neste entrementes, troteja à média de uma página por semana.
Voltemos ao tal Carlos, mestre segeiro, filho do Samuel
Não conheci o Carlos nem o velho Samuel; deste apanhei umas luzes, pela boca da neta, uma senhora – ainda viva? -  da Portela,  a Maria Antónia, filha do pedreiro Brás, irmão do Carlos. Mestre Samuel fora carpinteiro da confiança do Alexandre Herculano, na Quinta de Vale de Lobos. Conforme ouvi, há um par de anos, num velório. Há pessoas que não suportam estar caladas nesses momentos.
Situava-se a oficina do segeiro, pelo que, mais tarde, se veio a chamar a volta do Melro. Uns dois passos da casa da nossa gente. Ferro e madeira tornaram-se materiais com que, cedo, o meu pai se familiarizou. Ter neto segeiro era o sonho dos Caréus. 
“ Tinha de arranjar uma maneira airosa de me safar dali”, recontava o meu pai. Não se libertava do desejo de ser aprendiz noutras oficinas; de automóveis, que se iam instalando pela cidade.
Embora não fosse escasso em habilidades, no segeiro: rodas, travões, molas, corte de madeiras, e mais o quê?... Também dava grande ajuda, na escrita, superando o próprio patrão na cobrança de dívidas. Por mais retardadas, o António sempre ia fazendo pingar para a bolsa do credor. Com frequência era mandado, com uma velha pasta, onde quer que houvesse um freguês atrasado. Transporte? Que se arranjasse, no vaivém dos carroceiros da estrada.
Andaria pelos quinze anos. Já tinha aquecido o lugar, quando o nosso avô lhe fez o reparo de, numa dada semana, ter saído todos os dias, de pasta. Meu pai não perdeu a oportunidade: ressentido, lembrou ao seu que não fazia sentido terem-no impedido de aprender mecânica de automóvel, em Santarém, – alegando a sua pouca idade, a distância entre a casa a cidade, as duvidosas companhias, estrada fora – se afinal passava o tempo em voltas mais largas.
Ora, estava dito, estava dito. Crescesse e aparecesse, talvez, com o tempo, as coisas mudassem.

Na oficina, as mais das vezes estava de ferreiro, junto da forja e da bigorna, malhando braçadeiras para as molas. Coisa tão simples como isto: tomar uma barra de ferro, aquecê-la ao rubro, dobrá-la de acordo com a espessura das lanças, arrefecê-la na água da selha; para, finalmente, lhe perfurar os orifícios por onde, mediante, parafuso e porca, abraçaria o jogo de lâminas de aço que amorteciam o veículo.
Sei como era, por ter visto alguém fazer esta operação, evitando assim que fosse meu pai a executá-la. Ocorreu durante uma avaria, quando seguíamos para a Nazaré. Por excesso de carga ou desequilíbrio na sua arrumação, numa curva, antes de Alcanede, o automóvel inclinou-se para a valeta. Mola partida.
Meu pai manteve a sua calma dos piores momentos. Continuámos, com todo o desespero da minha mãe e inquietação dos filhos - Chegaríamos a ver o mar?  Atravessámos  a localidade em archa lenta. Tinham-nos assinalado uma oficina de automóveis, na estrada para os Amiais. Tudo se resolveria.
Com mais entraves. O dono da oficina, ia fechar, já passava das cinco da tarde. Não tinha braçadeiras, a forja estava apagada e não sei mais quantas provas de desinteresse.
Na sua vez de falar, meu pai disse:
- Muito bem, pago-lhe o que for, não precisa de se incomodar, por favor, arranje-me ferro e carvão, eu faço a braçadeira. Se não, diga-me onde é o ferrador; tenho a certeza que o homem me há-de desenrascar.
Decisão e mangas arregaçadas, do lado meu pai. O outro aguentou o desafio:
- Não, eu trato disso.
Fosse  acendendo a forja, enquanto ele ia buscar o ferro, a um anexo da oficina.
Ao voltar, a forja estava ateada.
Depois vimos com quantas marretadas se fazia uma braçadeira. Em Alcanede, teria eu os meus catorze, dez o Titi. E a praia à nossa espera. 
Voltemos ao segeiro.
-Vamos visitar a oficina do Carlos, pai? – era o meu convite.
Entrávamos, farsantes:
- Olha ali ao fundo, a grande roda-de-balanço… E mais além, encostada à parede, a arca;  normalmente guardava feno, para o caso de algum animal precisar de penso. Por isso lhe chamávamos o caixão da palha.
- O caixão do galego?
- Pois é isso mesmo, “o caixão do galego”. Ah já ta contei? Contada está.
Não ma contara a mim, a do galego, ouvira-lhe uma tarde, repetida para gáudio da bisa Júlia, na casa-de-fora da avó Otília.
Parava, pela oficina, um galego, maltês dos sete ofícios, e mil destinos. Deixavam-no pernoitar, ou refazer-se com umas horas sono, durante o dia. Acomodado na palha. Quando acordava, berrava que ia dar a volta ao mundo, agradecia a todos los amigos e Hasta la próxima!
Acontecia que os aprendizes, por chufa, assim que o galego pegava no sono, baixavam a tampa da arca. Nem os ruídos da oficina o perturbavam nem o seu ressonar de trompa diminuía o compasso do trabalho.
Quando despertava, havia risota e palmas. Empurrava vagarosamente a tampa. Sorriso de santo malandreco, erguia o tronco e anunciava, com o sinal da cruz:
- Rixuxitei! Estan todos perdonados.
O Filho do Homem redivivo das palhas, segundo a revisão bíblica do meu pai.
A nossa bisa Júlia, numa alegria ofegante, pedia mais­­­­­­­­­­­­­:
- Ó Tonico, conta a outra. Que patifes vocês eram!
Começava a ouvir-se o ronco do galego, quando um aprendiz, não satisfeito por a arca já se encontrar fechada, refinou a partida:
Ó pessoal, ajudem-me a pôr aquela roda em cima da tampa.
Tratava-se de uma roda de nora, em ferro, cujos dentes tinham de ser rectificados, para poderem continuar a içar os alcatruzes da profundeza do poço.
Quatro esforçados pares de braços, assentaram a carga metálica. E voltaram às suas lidas.
Acordado, retido no interior da arca, berrava o galego por liberdade. Insultos, ameaças, rogos. Nada!
A certa altura, o drama:
Xá estói todo mixado!
-Ai Tonico. Cala-te, se não ficamos como esse coitado.

Outra imagem da oficina, guardada por meu pai até fim da vida era a da passagem dos carreiros de Alcobaça, para a feira da Piedade. Carros de bois, atulhados com cestos de maçãs. Saíam pouco depois do sol-posto de sexta-feira, seguiam por S. Jorge, Porto de Mós; venciam a serra; descendo  por Alcanede, Tremes… E paravam, no fim do sábado, em frente da oficina.
Ofereciam água ao gado, petiscavam com o pessoal, retomavam a caminhada. Até à feira. Deixavam maçãs-de-espelho, camoeses – um fartote –, esvaziavam uns púcaros de água-pé. Elogiavam a bebida e as azeitonas pisadas.
Prometiam voltar, no regresso. Por norma, não cumpriam. Com os carros aliviados, dois dias mais, tarde, rumavam por Rio Maior, até à terra de origem.
A serra dos Candeeiros não tinha altura suficiente para separar os povos  das suas encostas.

Nota: A 18 de Novembro de 2013, seria o centenário do meu pai.