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sexta-feira, 25 de outubro de 2013

A guizeira


 Chegaram-me repetidas notícias daquele cavalicoque do avô Joaquim Henriques. Teria o garrano, de jarretes nervosos e rijos, ficado a substituir a mula assustadiça? Aquela azémola emperrada pelo terror taurino, à Carne Coita? Fantasio pela positiva, querida Til, querendo reviver os dias serenos dos nossos bisas Henriques.
Do cavalo também me chegou a guizeira. Acompanha-me há mais de cinquenta anos; passou por Coimbra. Nunca a pendurei ao pescoço de animal nem lhe dei outro préstimo, conforme à sua função primeira. Pendurada sim, na parede: peça de um museu a-haver. Mais uma extravagância dos vinte anos. Quantos objectos de então – e quantas quimeras – se perderam?
Dirás: ficou a cinta… E pouco mais, acrescento. A guizeira extraviou-se. Saiu do prego, para pintar a parede, e por aí anda, entre livros. À mistura com um bico de escamisar da minha bisa Perpétua, mais uma caneta de marfim. De um lavrado finíssimo, afiada num extremo, onde recebia a pena de pato. Bugigangas do meu escritório? Não, peças anárquicas neste gabinete de curiosidades, sedeado na memória.
Da caneta, acrescentarei ainda a proveniência: a quinta dos Sampayos. Onde aquela minha bisa, chegou com uma filha nos braços, para ser ama de leite. Ali casou com Jacinto Marona, teve mais três crianças e viveu até à mudança de proprietário. Por outras palavras, da quinta dos Anjos foram os Maronas residir para os Casais da Labaça. Apago isto? Não apago! Flutue o parágrafo, enquanto lhe não dou seguimento. Porque a minha  presente obrigação é falar do tal cavalicoque.
 Retomando a  crónica ouvida ao seu cuidador.
Por muito exausto que a voltasse da oficina, não descartava o Tonico a incumbência de zelar por água, palha, ração devidas ao bicho. Também volteio, no pequeno lote que o nosso bisa adquiriu, por aforamento da quinta dos Pinheiros. Atrevia-se a jogos hípicos, motivado pelas recentes rivalidades de cavaleiros célebres.
  Antes de mais, uma corrida em osso, no lombo do cavalinho. Circuito fechado, saindo do palheiro, descendo a azinhaga pelo lado da propriedade do avô Francisco Hipólito, a que se viria a chamar o “Bairro Azul”, e entrando, para poente, na fazenda da quinta dos Pinheiros. A galope o bicho, grito de encorajamento a um voo sobre a valinha de drenagem daqueles foros. Que mais queria um rapazola, com fumaças de Zé Tanganho, montado num cavalo sempre tão dócil? Ou quase.
 Uma ocasião, lançado a galope, nega-se o quadrúpede ao salto, passa-lhe o cavaleiro por cima das orelhas, para aterrar, de rabo, além do obstáculo. Sem lesão de osso, por sorte.
Normalmente o giro completava-se contornando a propriedade do Zé Beja. Um nico de caminho, se comparado com o apaixonante volta nacional de 1925. Ganha por José Tanganho; não pela velocidade, antes pela inteligência e respeito do cavaleiro para com a montada.
Ao comando da carroça, Tonico aprendia com o avô a ser igualmente respeitador do animal da casa. Evitando o esfalfá-lo em aventurosas correrias.
Pela manhã, António desatava-o da manjedoura; na rua, oferecia-lhe umas favas na palma da mão, depois punha-lhe o arreio, atrelava-o à carroça da venda.”Tudo em ordem!” , concluía o avô, atento. Apertada ao pescoço do garrano, lá estava a “coleira dos dezoito guizos”, música suficiente tal gente e tal sítio. Estava pronta a "carroça da venda".
Mas onde é que eu fui encafuar o diabo da guizeira? Há-de aparecer, quando menos se espera. Prometo que voltarei a limpar os guizos. Tentando de novo uma explicação para o facto de todas aquelas ruidosas esferas terem sido fundidas para uso de equinos militares, conquanto provenientes de diversos regimentos. A correia estará ressequidíssima, há-de levar sebo. Depois, tiro-lhe uma fotografia e - por que não?- ponho no Facebook. Curto!
A venda dos produtos da horta, foi continuada, na praça ou pelos arredores, pela nossa avó Otília, quando os sogros envelheceram. Com o mesmo cavalinho. Será por um tempo em que o meu pai rompe com o seu. A tia Piedade, tua mãe, me deu razões, não vindo agora ao caso. Tonico passa a viver com os avós Caréus. Por força de um grito de rebelião, a paredes-meias com a habitação paterna. Talvez o carinho com que a avó Mariana tratava aquele primeiro neto, desde garoto, o empurrasse para essa mudança. Que em nada alterou a ligação com os pais e irmãos: sempre cordial e solidário, embora sem ceder no protesto. Contra o excessivo consumo de vinho do seu pai. Aliado a indolência de trabalhador. “Quantas vezes a minha mãe teve de desempenhar o papel da mulher e do homem da casa?” – perguntará a tua mãe.



Sei, no entanto que, além  da avó Mariana, o avô Joaquim Caréu lhe era do mesmo modo querido. Foi ele que o convenceu a ir aprender o ofício de segeiro, na oficina do mestre Carlos do Samuel.
Tonico, no fim da infância, acompanhava este avô, pelo S. João, às Caldas da Rainha, para o banho tradicional. O avô enfarpelado no fato do seu casamento: jaqueta, colete, calça à boca-de-sino; cinza-azulado, padrão de xadrezinho miúdo. Para cumprir a devoção que, em vez de lhe aliviar os queixumes reumáticos, o expunha a um  ano de galhofa. Como poderiam, repetia a avó, a fé no santo, mais um par de encharcadelas nas termas, remediar as dores do seu homem? Talvez as senhorias, que pelas Caldas preguiçavam semanas, fossem mais favorecidos pelas virtudes termais.
 Segundo a avó, tinham de mudar de destino. Atravessar a serra, pois claro, mas chegar à beira-mar. Levar as crianças, por dois ou três dias, à Nazaré. A olhos vistos viriam saradas das escrófulas, mais desemborradas. Quanto ao reumatismo do avô, experimentasse os banhos quentes da praia, nada que se comparasse às águas das Caldas, era o que diziam. Como todos mal cabiam na carroça, ela, Mariana sugeria que fossem de charabã. Não, não ficava barato, pois não; olha: vão-se os anéis sobram os dedos.
O serviço de charabãs, entre a Nazaré e Santarém, trouxera as peixeiras. Uma tarde, apareceu em casa da avó Mariana a peixeira a quem, de manhã,  passaram a comprar. Tão fresco como o peixe que chegava, de galera, ao mercado. Mais barato. Depressa a vendedora despachava as duas canastras.
Por desencontro com o charabã de regresso, viu-se a peixeira sem saber onde passar a noite. Tendo  ido pedir cómodos  aos Caréus,  responderam-lhe com  ceia e mantas, dormiu no palheiro. Satisfeita, ao café do dia seguinte, ofereceu acolhimento em sua casa,  quando aquela família  fosse à praia. Se os pobres  e remediados deste mundo mutualizassem os pertences, não haveria ricos.Aí estava mais uma razão para a Avó levar os netos a banhos. O Tonico, a Lucinda e o Manel. Quando nasceu a Piedade, não sei se foi incluída no grupo de banhistas.

Meu pai, mesmo partilhando das dúvidas da avó Mariana, não perdia oportunidade de estimular o seu avô a realizar, só com ele, a viagem anual às Caldas. Via-se incumbido da condução, mas também, na véspera, de uma passagem pela oficina do mestre Carlos, para lubrificação de rodas e rosca do travão.
- Levamos a guizeira, não é, avô?
- Nem a carroça andava, se o cavalo não tivesse charanga!
Até durante os raids fantásticos do Tonico, à volta da casa, a guizeira era atada ao pescoço do cavalo.
Daqui estou a ouvir meu pai, muitos anos depois, a outras velocidades, no velho Vauxhall-14 conduzindo-nos para a Nazaré. Apontando os fontanários onde o cavalo se dessedentava, o número de carroças ultrapassadas. De outros banhistas do S. João, a caminho das Caldas, com tiro de bestas mais ronceiro.
 Ocasionalmente, no primeiro de Setembro, o avô, saindo como sempre de madrugada, com lanterna acesa, ficava-se na feira de Rio Maio; por umas arrobas de cebolas, um pipo para agua-pé. Viagem muito menos emocionante, confessava o meu pai.
É que, passado Rio Maior, no Alto da Serra, atravessavam “uns ermos medonhos”, onde quadrilhas  acoitadas  nas furnas, por cima da estrada, atacavam outrora  os passantes. Sem deixar às vítimas oportunidade para se irem dali contar desgraças. Terrores antigos, felizmente. Muitos anos mais tarde, mesmo de automóvel, esses medos ainda me contagiavam, pela  voz do  meu pai. Minha mãe apontava nomes de chefes quadrilheiros, alguns a quem a justiça nunca conseguiu deitar mão.
Por mais que o avô lhe garantisse a segurança do caminho, Tonico tudo fazia para que o cavalo dali os levasse depressa. Mas a carroça parecia não andar, nunca mais chegavam ao destino.
Adiante, cavalinho.
- Valha-me Deus, avô Caréu. Segeiro é ofício sem futuro.
Queria, sim, ser mecânico de automóveis. Fascínio inexplicável. Contrariava o pai:
- Ainda és muito novo para ires aprender outro ofício em Santarém.
Que se aguentasse. Até um dia.
Agora eu. Pelos meus dezassete anos, regressava da quinta dos Pinheiros, com uma carroçada de milho-basto: forragem para o gado. Em frente da sua casa, o avô António pediu-me que parasse. Disse com voz roufenha - quantas onças de  Superior já tinha queimado? - que aquilo era uma oferta para eu estimar.
Aquilo era a guizeira.
- …do cavalo do meu pai, neto… Fica sabendo que teu pai gostava muito desse animal.
Rio de Mouro, Setembro-Outubro de 2013