Para a Tilinha (1)
Médico da família. «O doutor Meira era um cara-unhaca», dir-me-ia, muitos anos mais tarde, o meu pai. Tinha consultório à esquina da praça dos carros de aluguer, ou seja, entre o largo do Padre Chiquito e o beco do Feleijo, (Feleijo?), no rés-do-chão, onde depois se veio instalar uma loja de roupas.
Até aos meus seis anos, ali me impacientei eternidades. «Nunca mais chega a nossa vez, mãe!» E se o médico se lembrasse de me receitar injecções? Já se me quadrava que, à boca do Verão, ele decretasse: «Estas crianças necessitam de praia!» Meu pai acatava logo a ideia: «É preciso? Vai-se!» A minha mãe puxava para a recusa, agoniada pelas despesas, os sacrifícios de se ver sozinha com dois miúdos, na Nazaré. Acudia-lhe o Dr. Meira: «Os homens estão sempre prontos, mas as mulheres é que sabem como elas mordem».
Na sala de espera, procurava distrair-me com a pasmosa cavaqueira de uma multidão despudorando-se em mazelas. De repente, a Ricardina! Surgia do gabinete de consulta, e estrangulava-me. Estivesse lá outro miúdo, a vítima era sempre eu: enrodilhado em beijos e afagos. Fartíssima de saber, obrigava-me a repetir-lhe vezes sem conta o nome.
- Já lhe disse que me chamo ***!
- Eu sei, ***, como o teu padrinho. Rapazinho bonito!
Depois, Ricardina, virada para a minha mãe, carregava-a de perguntas, sobre a saúde dele, do meu padrinho. Estranho, não me constava que ele estivesse doente.
Soube-o com o tempo: a coisa tinha voltas. “Rapazinho bonito!” Seria etiqueta para outro freguês: pública confissão dos desejos que a Ricardina, a empregada do médico, abeberava pelo meu padrinho. Por isso ele não se tirava do consultório.
Viam-na meter-lhe bilhetinhos nos bolsos do casaco, como se fossem prescrições do médico, ouviam-na bichanar-lhe derrames de água-mel: «Vá, xô-xô, agora vai-te embora, ante, que o senhor doutor te veja. Espera, quando voltas?» Se ele esperava consulta, fazia-o passar à frente de outros doentes. Ou retinha-o, na penumbra da saleta dos Raios X. Crepitavam linguarudas.
A ponto do médico pedir ao meu pai que convencesse o cunhado a deixar-se de fitas. Sim, fitas. Tinha saúde para dar e vender, não andasse para lá com queixas fingidas.
- Qual coração, qual carapuça, António... O que o teu cunhado tem sei eu.
Segundo o meu padrinho, o médico, na última vez que o observara, cresceu para ele: « Isto é para teu governo, rapaz. Antes de dois anos, não voltas a pôr aqui pés. Nem mais, desampara-me a loja! Tretas! Eu, eu é que precisava de ter um coração como o teu!»
Sempre dado a crendices, meu padrinho tomou as palavras do médico como premonição. O doutor sabia. «Sabia!» secundava a minha mãe. Então haverá quem seja capaz de prever o momento da sua própria morte? Foi a questão que o meu padrinho levou à D. Engrácia.
Se entendida em males do corpo, D. Engrácia zelava sobretudo por sofrimentos da alma. Recebia, pelo que lhe pudessem pagar, em Vale de Estacas, donde se dava a secretas conversas com santos, videntes de outros climas, defuntos... Em particular, se ainda azamboados pela cisma de cá tornar. Em espasmos, chegava-se D. Amália à fala com as hierarquias do Além, dizia quem lhe frequentava a casa.
Por essas visões, achou-se a minha vizinha, Dona Maria Alva, na necessidade de se fazer operar ao apêndice. Ainda que para o marido aquilo não passasse de «mais uma vaidade da manienta». Sem deixar de lhe dar razão, o Dr. Meira conformava-o: «Deixa lá cortar um niquito à barriga da tua mulher. Talvez isso lhe acalme as neuras! Mas olha que, na clínica do Puga, a coisa queima, e pagas adiantado!».
Dona Maria Alva ainda hesitou, vendo o marido cada vez mais afogado em vinho e dívidas. Pensassem bem, entrepunha-se a D. Engrácia: porque tudo iria correr ao gosto da D. Maria Alva, conforme a revelação. Tudo, já se sabe, só podia ser a operação à apendicite. Erro pensar que a vidente de Vale de Estacas gozava de estatuto inferior ao médico.
Após a intervenção, Dona Maria Alva caprichou em fazer retumbar o sucesso no Correio do Ribatejo. Embora de escassas letras, atreveu-se a rascunhar o anúncio de gratidão ao distinto corpo clínico, às inúmeras senhoras amigas que lá foram visitá-la e ao “dedicado esposo, pela promessa”. Qual promessa? Ora, a sempre incumprida, de deixar de beber. E só por este despropósito, se recusou José Alva a levar o escrito à redacção do semanário. Assunto encerrado.
Com a minha mãe, foi um desatino, por longos anos. Não lhe falassem em ser operada. Benigna que a coisa parecesse, ou fosse, batia o pé contra todos os diagnósticos. Agarrada à última palavra do Dr. Meira.
Dera-lhe a entender que aquela proeminência, ao lado da maçã-de-adão, era da mesma raiz do cancro que liquidara o meu avô. Minha mãe escandia a sentença do clínico: «Nunca deixes que te tirem isso. Olha o que aconteceu ao teu pai». Conversa havida a poucas horas do desfecho.
2
Quem dizia que o Dr. Meira era amigo de toda a gente esquecia-lhe uns inimigos de estimação: os colegas da cirurgia!
- Metem a lanceta e nunca falham no golpe da carteira.
Meu pai, que durante anos, dia ou noite, foi o motorista de praça escolhido pelo Dr. Meira, atrevia-se a pôr em causa o preconceito.
- Achas então que é exagero, António? Quando esse professor de Lisboa apanhou o teu sogro, levou-o três vezes à sala de operações... E afinal de contas?
- Afinal, foi o que se sabe, senhor doutor. Ele morreu e nós cá andamos a reformar as letras no banco.
- Estás a ver. Vai lá perguntar aos joalheiros de Lisboa quem são os seus melhores clientes? Os da faca! Ou melhor, as amantes deles!
Meu pai calava a réplica. Fora ou não fora o Dr. Meira que encaminhara o meu avô para a clínica do cirurgião, Professor Franco Mendonça? Que animosidade era então aquela contra o célebre patrão do Hospital Escolar? Ressentimentos do tempo da faculdade? Talvez isso explicasse a história dos perus.
Aproximando-se o Natal, o Dr. Meira encarregava o meu pai do serviço dos perus? A viagem do costume, a Lisboa, portador de anafada ave, até à residência do professor Mendonça, um chalé na Rua de Entrecampos.
Aconteceu que naquele ano, a criada do professor recusou a oferta. Tinha instruções precisas, categóricas, dos senhores: «Nem mais um peru, venha donde vier!». Havia uns seis ou sete lá em casa... Fora dois, que já tinham sido despachados para uns amigos do senhor professor.
Os glu-glus do bando estralejavam no minúsculo jardim residencial, pressentindo a aproximação de um novo parceiro que, monco caído, ofegante, mal estrebuchava de patas amarradas, na mala do carro. Meu pai, sem querer admitir o regresso do quase defunto avejão a Santarém, ainda enveredou pela lábia-doce. Tempo perdido: a sopeira porfiava em não desobedecer aos patrões.
- Como a fomeca apertasse, entrei numa taberna, ao fim da rua. Já que não dava conta do recado, compunha o estômago...
Enquanto petiscava, assaltou-o a ideia de oferecer o peru ao taberneiro, deixá-lo ali, na certeza de que o bicho não aguentaria a viagem de retorno: morrer por morrer... E não se alargou a mais explicações.
O homem agarrou-se à dádiva. Vinha mesmo a calhar, combinara com a mulher pagar com um peru um favor de um vizinho. E que favor! Demorou-se nos pormenores.
- Faça-me um preço jeitoso, que eu fico-lhe com...
- Valha-me Deus, homem, para uma coisa dessas, até lho dou!
- Dado, nem pensar. Troca, troca com a balança a roubar par o meu lado.
- Se você deixar cá o peru, não paga o petisco.
- Feito!
Meu pai viajou para Santarém, ansioso por prestar contas do encargo.
- Pois é, António, Sua Excelência sofre de fartura. Quanto ao resto, fizeste muito bem em não ter trazido o bicho.
Acendendo cigarros uns nos outros, o Dr. Meira divertia-se a criar cenas delirantes nas casas dos poderosos de Lisboa, inundadas, em cada Natal, por corbelhas, com e sem perus, provindas de bandos de pretendentes e suplicantes. Imitava até o Salazar em contracena com a governanta, a propósito da natural bondade do bom povo português...
- Pare com isso, senhor doutor. Parece que estamos no Parque Mayer.
- Isto não é para rir, António! Somos o país das empenhocas e compadrios, Jeitinhos, bons ofícios, recomendações... Sempre foi e há-de ser.
A ele, Dr. Meira, também chegavam perus de Natal. Negócio governado pela esposa, por intermédio de um galinheiro do mercado, que se prontificava a dar guarida à bicharada, antes de a empandeirar. Não sendo a senhora apreciadora do pitéu na sua cozinha, achava que era de justiça tirar dali uma pequena recompensa, pelas horas que o marido passava fora de casa, na luta contra a doença. Tomava o rendimento dos perus como um fundo de previdência, frisando, todavia, que o galinheiro não lhe ficasse com o bicho mais vistoso. Esse sempre destinado ao professor Franco Mendonça.
- O senhor doutor quer mesmo saber a quem é que o taberneiro foi levar o peru?
- Espera..., tu não me digas, António?!
- Ai digo! O senhor professor Franco Mendonça operou-lhe a mulher... Sem levar um tostão.
O médico arfava de tanta gargalhada.
- Não posso crer. Andamos a atirar perus à cara uns dos outros. Feliz Natal, António.
3
Quando eu já não suportava o enfado da sala do consultório, atrevia-me a pequenas escapadelas. Colado à parede, deslizava até ao Beco do Felejo. Dali, fartava os olhos na montra da Livraria Escolar. Mesmo sem conhecer ainda as letras, não deixava de me estarrecer com os livros, e outras coloridas bugigangas.
Numa dessas sortidas, descobri, a meio do beco, à sacada de um andar, uma rapariguinha. Dois laços nas tranças, pela minha idade. Embalava uma boneca. Sentindo-se observada, virou-me costas. Amuo? Logo volveu, com uma gaiola de grilo. Mas àquela altura, eu não conseguia avistar o locatário da gaiola. Enchi-me de coragem: «Mostra o teu grilo!» Tudo estragado. Recolheu-se e fechou a janela. Durante décadas, aquela menina mais o seu grilo moraram escondidos na cinza da minha memória. Reapareceram ontem, quando ali parei, para interrogar a placa toponímica: “Beco do Feleijo?”.
Noutros dias, arriscava pelo passeio, em frente do consultório, donde me punha cruzar os aromas da padaria do Ventura com as carnes fumadas do Artur Lopes dos Santos. Também fantasiava a maneira de retirar do gancho o molho de tripas secas, que o vento balouçava, à porta do merceeiro. Agradariam ao Coquelim. Cheias de ar, arrastariam pelos céus, sobre os olivais do Cerrado, um papagaio tropeço, que ele tinha tentado construir, com papel de saca de cimento, numa manhã de vendaval.
Noutros dias, arriscava pelo passeio, em frente do consultório, donde me punha cruzar os aromas da padaria do Ventura com as carnes fumadas do Artur Lopes dos Santos. Também fantasiava a maneira de retirar do gancho o molho de tripas secas, que o vento balouçava, à porta do merceeiro. Agradariam ao Coquelim. Cheias de ar, arrastariam pelos céus, sobre os olivais do Cerrado, um papagaio tropeço, que ele tinha tentado construir, com papel de saca de cimento, numa manhã de vendaval.
Apanhando a minha mãe mais entretida, escapulia-me para o Largo do Padre Chiquito. À procura do meu pai.
Se ele não estivesse, perguntava pelo seu colega, o senhor Melancia, proprietário de um gigantesco Chevrolet branco. Saberia o Melancia até que ponto eu era admirador das suas artes? Encontrava-o amiúde absorvido, de palito na mão, a descodear a dentadura. «E agora que vai ele fazer ao palito?» perguntava a mim mesmo, quando o via reencaixar a prótese no maxilar. Começaria nervosamente a mascar o pedacito de madeira, até acabar por cuspinhá-lo na sargeta? Ou guardá-lo-ia no bolso do casaco, de reserva para a próxima faxina?
Aqueles quatro incisivos da prótese apavoravam à garotada que aparecia pela praça dos automóveis. Estava o chofer muito bem à fala com um ganato e, zás!, fazia-lhe uma climana. Num estertor, libertava a postiça e projectava-a monstruosamente com os lábios. Se o miúdo visse o Diabo, não ficaria tão gelado. A mim, já não me abalava dentuça do Melancia.
Não lhe dando para morder palitos, o Melancia pavoneava uma estranha boquilha, ponteada com um cigarro fingido. Explicava-me o meu pai que o homem queria libertar-se do tabaco. Daí, eu vê-lo ou a puxar fumaças em falso, ou a mastigar palitos.
Quem nunca parava de fumar era o Dr. Meira. Com frequência, recorria ao maço do meu pai.
- Compras cigarros por minha causa, António.
- Não pense nisso. Eu sei resistir ao vício, senhor doutor!
Meu pai foi, durante toda a vida, um fumador disciplinado: um cigarrito depois
Do almoço, outro depois do jantar. Um charuto, nos casamentos.
Um charuto, ponto e vírgula.... Em todas as fotografias que os choferes tiravam com os noivos, aparecia o meu pai a brandir um charutão. Mero adereço. Dados os primeiros sorvos, dispensado das exigências do fotógrafo, extinguia-lhe a brasa. As beatas dessas tochas, ressurgiam depois, bolorentas tentações, dentro das gavetas, em casa. Quando eu fosse homem, havia de fumar todos aqueles charutos, se, entrementes, a minha mãe, enojada, não os fosse atirando para o lixo.
4
Uma noite, o meu pai regressava com o Dr Meira, do Secorio, quando se deu o atropelamento. Um miúdo cruzou-se detrás de um rebanho de ovelhas e foi atingido pelo carro. Alarido, polícia, impasse.
De nada servia o médico repetir que o garoto estava apenas em estado de choque, o povo desautorizava-lhe a ciência, descompunha, clamava pela prisão do motorista
Quebradas as primeiras altercações, a polícia e a família do sinistrado aceitaram a proposta do Dr. Meira: a criança seria de imediato levada ao hospital, no carro do meu pai.
O prognóstico confirmou-se, a criança voltou a casa sem registo de traumatismos. Em tudo isto se levou uma boa parte da noite, em que o Dr. Meira foi queimando cigarros, incluindo os da reserva do meu pai. Àquela hora, já não havia loja aberta onde se fossem reabastecer...
Convenceu-se o meu pai que o seu cliente, resignado com a privação, se tivesse deixado adormecer, no banco traseiro do carro. Não tardou muito, o Dr. Meira pataniscava o isqueiro e lançava uma baforada rançosa.
- Então ainda tinha cigarros, senhor doutor?
- Não, António, estou a aproveitar uma beata que um teu cliente deixou aqui
no cinzeiro. Espero que o gajo não seja sifilítico.
- Cuidado, senhor doutor… a sua esposa anda preocupada…Desculpe dizer-lhe isto.
- Pois é. Tens razão. Tenho de cortar com o tabaco.
Noutra noite, no final do ano de cinquenta, o meu pai levou o Dr. Meira a mais uma consulta domiciliária. Ao voltarem, ouviu-o falar dos progressos da medicina, durante e no após-guerra:
- Mas vê lá tu, inventaram não sei quantas máquinas para matar milhões e não foram ainda capazes de arranjar corações artificiais...
Na manhã seguinte, em toda a cidade não se falava de outra coisa. O Dr. Meira, chegara a casa, gritara à mulher por um Saridon e, quando esta lhe estendeu o comprimido com um copo de água... Caiu, à entrada da cozinha.
Foi isto pouco depois do meu ingresso na escola primária. Semanas passadas, as raparigas da quarta classe não se contiveram sem confrontar a professora com o boato trazido da Cidade. D. Angélica, explodiu-lhes a reprimenda: «Umas estúpidas. Estúpidas e mentirosas».
Se toda a gente sabia que o médico tinha falecido, com um ataque de coração, que disparate era aquele? Encontraram-no de bruços, dentro do caixão?! Onde é que já se vira? Dona Angélica arrancaria as orelhas, se alguém repetisse que médico tinha sido enterrado vivo. Assunto proibido. Na aula e no pátio do recreio.
Vivo, dentro de um caixão de chumbo? «Houve qualquer coisa que nunca ficou bem esclarecida... Quando transladaram os restos mortais do médico, para o jazigo da família, no Porto...» ouvi eu, anos mais tarde, numa conversa de bêbedos.
O quê? Para a D. Engrácia, tudo tinha sido claro como a água. A alma do clínico, arrependida de ter partido, deixando-o estatelado à porta da cozinha, decidiu voltar para o libertar. Dar mais uns anos de esperança aos desgraçados a quem o médico assistia. Todavia, o corpo despertado esbarrou-se contra a parede de chumbo que o encurralava. Agora imaginem.
Deixo o meu pai concluir:
- Essa foi mais uma patranha que o teu padrinho acabou por ir meter nos ouvidos da tal Ricardina. Resta-me saber se a inventou, ou eram realmente coisas da D. Engrácia.
Segundo parece, os derriços com a Ricardina não findaram, à data do encerramento do consultório do Dr. Meira. Logo que a rapariga foi contratada pelo oftalmologista do largo do Seminário, o meu tio deu de barato os achaques de coração, passando a queixar-se de vista toldada...
«Era um cara-unhaca, o Dr. Meira». Cara-unhaca?! Numa das suas últimas parlendas senis, o meu pai vendia-me aquela palavra pela cotação do dicionário: “pessoa íntima, amigo”.