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terça-feira, 17 de setembro de 2013

O Petisco do Almoster



Quando, no fim da vida de meu pai, procurei o que lhe chegara dos amores da Maria Baixota, fiquei apenas com meia história. E dela me desembaracei no capítulo precedente. Sem acrescento de jota.

Entretanto, daquela mulher, remanescera mais um episódio. “Muito mais pândego”, trazido pela boca da avó Mariana. Ligado aos bailes.

1994. Domingo de Agosto, tarde longa, propícia a conversas transviadas. As últimas, seguramente. Estávamos a caminho do Cabeço. Se atingíssemos o cimo, assim as forças a tanto se lhe prestassem, tinha meu pai um pedido a fazer-me: volvesse a casa, para lhe trazer a cadeira. De rodas, as pernas estavam esgotadas.


 Depois de o acomodar, perguntou-me, para confirmar os seus débeis olhos:
- Lá ao fundo, a casa da ti’ Maria Baixota continua destelhada?
Que sim, desde um forte vendaval, Invernias atrás.
        - Está como eu… Já ninguém lhe pode acudir.
- Ora essa…
- Não te assustes. As casas vão-se como as pessoas. Continuarão vivas, enquanto alguém delas falar.

Semi-abre os olhos, com a mão encarquilhada estendida  mais para norte.
-  Por onde segue aquela roda-viva, entre a Quinta Velha dos Gatos e o caminho das Lobas, era a casa da Tecedeira. Entre amendoeiras. Ana tecedeira, amiga da avó Mariana.
Mais uma história, pensei.

Uma casa soterrada pela auto-estrada? No entanto, em garoto, cruzava eu aquele local com frequência, nas minhas errâncias, por via de ninhos, bicharada, fruta franca, sem nunca ter descortinado, nem ouvido sobre a existência de tal ruína. Amendoeiras, figueiras, abrunheiros, moldura contumaz de uma casa esbatida? Excepto essa hipótese, só me vinha à memória terra agrícola, nua, castigada pelo tempo e pelas searas. Mais uns ditos acerca dos lobisomens, aliás os blisomens, troteando entre o entroncamento da Oliveira Santíssima  e o  poço do
- Era o poço do… Ai, raios partam esta cabeça, exasperava-se meu pai.

Faltava-lhe o nome do homem que lá se fora afogar.
Imprevidência a minha, ter arriscado o retorno ao assunto do suicídio! Sobre isso, estávamos entendidos. Mudemos de rumo:

- Pronto, pai, havemos de esclarecer isso com a mãe.

A mãe tinha as coisas arrumadas: a auto-estrada passou sobre o preciso sítio onde morara a última tecedeira das redondezas. Na sua meninice, ela deslocara-se a essa casa com a sua avó Perpétua, que lá mandava fazer obra. Outro ermo, não muito longe dos Casais da Labaça, onde minha mãe fora nascida e criada.
O primeiro abalo sofrido pela habitação da tecedeira viera do António dos Gatos que, pela violência, reclamara a posse plena da sua propriedade, alegando rendas em atraso. Indiferente à privação de abrigo da artesã. Contra o rigor de uma tal exigência, protestava a avó Perpétua, desde o dia em que vira a tecedeira ser arrastada pelo senhorio, até ao fundo da escadaria do prédio. Sem valimento. A rendeira morreu; o António dos Gatos mandou demolir. Caída a casa, caiu a causa…
- De que família era a artesã?
- Ana Tecedeira, sogra do Calqueres…
O Calqueres, de quem eu mal me lembrava, tinha sido capataz da lavoura do meu avô Marona.
- Onde isso já vai, mãe!
- Pois é para que saibas: o teu pai está de todo, só fala do passado, dos seus avós. Ao que nós chegamos, nós os velhos…

Voltemos então aos bailes da Maria Baixota.

Numa noite de festança, o companheiro dela, um a quem chamavam o Almoster, surpreendeu por oferecer petisco à rapaziada. Pouco, mas de boa vontade, não se armassem em glutões.
Saladinha de orelha. Grelhada na véspera, talvez com algum esturro, admitia, mas temperada a preceito: sal, cebola, alho, coentros, bom vinagre e melhor azeite. Cornichos ou pimenta, se preferissem pitéu mais puxavante. Por sorte que o vinho era farto. Espetaram-se garfos e navalhas. Escorria molho pelos dedos e queixos.

- Mas, ó diabo, isto é orelha de quê, ti’ Almoster?
- De porco, r’paz, não te sabe bem?! Apanhou calor a mais, mas por este preço…

A carne era oferta, quem entrava na roda só pagava pão e vinho. Ajudando nas custas do petróleo.

Muito embora de invulgar sabor, bem demolhada nos temperos e na pinga, estava a orelha um pitéu, acabaram todos por concordar. Só restou o prato. Enxuto.

O prato, e uma dúvida: onde é que se escondia a marosca do Zé d’Almoster? No regresso do baile, geraram-se rumores.

Que poucas horas depois, ao lusco-fusco da madrugada, foram conprovados. O João Carolo e um vizinho, petisqueiros vorazes, voltaram, ocultos por balças e valados, à Besteira. Perto da casa da Maria Baixota, no Cerrado do João Trigoso, afastaram as palhas e silvas: ali seria. Tinham vindo apetrechados para cabal esquadrinhamento.
 Não foi preciso muito esforço. Meia dúzia de pazadas de terra fora, o dito ficou escancarado: mal cheiroso, sem orelhas e asno.
Patifório do Almoster!

4 comentários:

  1. Patifório mesmo! Já tinha ouvido estórias de gato por coelho, mas de orelhas de burro não. Já a minha mãe dizia: Todos os burros comem a palha, é preciso é saber-lha dar! Eram as formas de divertimento popular, que acabaram perpetuadas pela criatividade O João Carôlo era o pai do tio Adelino?

    A Ana Tecedeira trouxe-me à memória a avó Otília, cá em Almeirim, na cadeira baixinha, a fazer intermináveis bolas de tiras de tecido, que pacientemente cozia umas às outras e enrolava. Um dia chegou uma mulher, de carroça, para recolher as bolas e mais tarde entregar a manta de tear. Não sei se antes, se depois da manta, chegou uma outra também de carroça, para “coser” o pé da nossa avó. Tinha dado um mau jeito e recusava-se a ser tratada pelo médico, queria o pé “cosido”, que era mézinha mais certa. Eu assistia, depois de selado o compromisso do silêncio absoluto, tanto durante o “tratamento”, como sobre o assunto, era tabu! A criatura passava a agulha numa bola de trapos, muito parecida com as que a doente fazia para o tear e ia debitando uma ladainha. Sei que foram umas três ou quatro, as visitas da curandeira e o que se sabe, é que a avó ficou tratada.

    Agora revejo-me nas palavras da tua mãe. Também me sabe bem falar dos nossos avós e ler sobre eles. Muito bem mesmo.

    E a bisa Mariana, cá continua viva.

    Beijinhos e obrigado

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  2. A nossa bisa Mariana virou não motivo principal, mas pretexto para eu coser & cozer estas estorietas. Reparto-as contigo, se não fosse assim comigo só se apagariam.
    E o que eu estou a aprender, no domínio cultural da nossa família! Então a avó exigia o pé virtual cosido pela virtuosa? Ainda há quem diga que a macumba não atinge o alvo.Claro que se curou, se esse era o seu desejo de fé, e a maleita pouco grave.
    Tu, Tilinha, foste parte da conspiração. A tal intimidade que me faltou em relaçao aos nossos avós Caréus, embora a pouca não fique por contar. A seu tempo, lerás.
    O João Carolo era mesmo o avô da Bia. E sendo aquilo patuscada dos seus tempos de rapaz, bem poderia ter passado da bisa Mariana ao Tonico. Lembro tão bem do avô Carolo como da velhota a quem chamo Maria Baixota. Morreram com menos de um ano de distância, primeiro ela. Seria mais velha, creio.
    Ouço-a brigar com os gatos, talvez os únicos seres que dela esperavam alguma coisa,já que os craveiros amarelos, brancos e vermelhos, permaneciam quase indiferentes aos seus cuidados. Cresciam-lhe à porta em velhas latas caiadas, tinham perfume. Talvez isso levasse a gataria a parti-lhes hastes, com muita fúria da dona.
    Por vezes, A velhota pedia-me bugalhos. Os seus gatos eram uns incompetentes, lamentava-se. Contudo com os bugalhos a coisa resultava. Depois direi.

    A Becas também visita este canto?
    Obrigado por leres e comentares.
    Beijinhos

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    Respostas
    1. Que bom que as repartas comigo Quim. Agora que a idade ou a vida me acordaram o prazer de saber sobre os nossos - a necessidade de os manter vivos - só tu me podes acudir. É com uma imensidão de carinho que leio as estorietas.
      A nossa avó exigiu o pé cosido sim. O meu pai vacilou com a ideia, o médico dava-lhe outra segurança, penso que foi a única vez que não conseguiu demovê-la. Gostavam um do outro como mãe e filho, mas a avó fez finca-pé e a minha mãe lá teve que se informar da curandeira e mandar recado. Foi cosido e bem cosido, que não voltou a doer.
      Agrada-me especialmente fazer parte desta conspiração, penso até que nem consegues imaginar quanto. É uma grande satisfação.
      Até te digo mais: Senti o cheiro dos cravos da Maria Baixota.
      A Becas visita este canto sim, como seguidora, que também ela se delambe com os teus textos.
      Obrigado pelo que escreves.
      Beijinhos

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  3. Pois claro que visito Quim, muito lembrada pela Tilinha, porque às vezes não chego para tudo...
    adorei e adoro ler-te. Apesar de não ter conhecimento destas histórias pela minha avó Lucinda, gosto e delambo-me sim senhora com a tua escrita. Beijinhos.

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