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terça-feira, 4 de março de 2014

Celestes com espargos


 

Que procuras nestas ruas? No cabide das sombras penduraste a Direita, a par da de S. Nicolau. Sempre que as percorres, por ti repassas.

Perguntas por lojas e lojistas do antigamente. Lembras-te dos inválidos do comércio? Nem esses te poderão facultar o rol. Tenta no talhão dos barbeiros, merceeiros, sapateiros e afins. A sul, sobre o rio, nas lápides do cemitério. Concordo, então não percas tempo e feitio, por esses lados. Volta ao empedrado das tuas ruas.  

Ignora estes avisos de ‘vende-se’, ‘aluga-se’; a sedução de reabertura num novo ramo. Aqui, como pelo país fora, figuram um sushi, armazéns de chinesices, negócios de telemóveis… A par de toda a quinquilharia das marcas estrangeiras, ou labregamente. Dás de barato?! Como te consegues aturar com esse feitio?

Optas pelo que te resta, na cauda do tempo? Aquela pastelaria persistente em adoçar os sentidos dos transeuntes.

 Entra, pelos celestes e conventuais. Quem dizia que a dúzia lhe parecia sempre seis? Avalia os maneios do empregado, enlaçando a encomenda. Como quando, um palmo abaixo do balcão, observavas, ao lado da tua mãe.

No salão, a esta hora ociosa, antes loteadas de vaidades e maledicência, apenas duas mesas ocupadas. Duas idosas, reclamando que lhes amornem as chávenas, com um cheirinho de conversa. “Já vai, dona”, enfada-se o outro empregado. Sais.

Atenção ao ressalto, rebaixaram o pavimento, com o intuito de exclusividade pedonal da rua. Estás no ponto onde deitavas os olhos, por cima do largo, que foi do Colégio e do Seminário. Desfruta, enquanto te não for vendado, o fugaz orgasmo do sol sobre o bronze heroico da estátua esverdeada. Ao fundo, detém-te nos fustigados mármores da igreja onde te batizaram. Só ali voltaste, depois, pela social razão de casamentos ou velórios. De terceiros.

Alto! A poucos passos, no primeiro portal, acocoradas junto de um alguidar… estas dirias que vendiam vassouras, aquelas duas mulheres. «Espargos, senhor!» Apanhados ao lusco-fusco da madrugada, na charneca de Muge. «Cortados por estas mãos.» Confessam que, após cada coleta, desencardem e retocam a gel. Verdes unhas, laivadas de violeta. Modo e atrair compradores. Sobrevida de quem ficou no desemprego. Selvagens – garantem- os espargos. Não fosse a invernia, também já poderiam trazer trufas.

Comprámos espargos, pois claro, contando com o resto da família. A vê-los dali na frigideira. Faltava a colher, para os revolver com cebola e ovos. Não dando para revolta, faça-se ao menos uma revuelta. Quanto à colher, procurássemos à boca da travessa do Postigo.

Precaríssima banca: artefactos de pinho. Colheres de pau, à maneira. Pois levem-se três!

Então e cordas para meninas saltitonas? Ou piões?

«É necessário que as nossas crianças voltem a saber jogar ao pião», sentencia o vendedor.

Boa! E as crianças, onde estão elas? 

 

 

 

6 comentários:

  1. Duas iguarias de alto gabarito. Assim o campo sobe à cidade em forma de espiga verde, sábiamente colhida dum ninho de espinhos e as mãos das freiras de outros tempos continuam a tender massa de ovos com amêndoa em caixinhas de obreia.
    Rebaixaram o pavimento, mas lojas fugiram e os transuentes também. Estão todos no shopping, deixam umas parcas migalhas pactuando para que o Sr fulano tal continue a ser o mais rico do país, ou o número dois.
    Difícil gerir emoções quando se passeia pela cidade. A cidade em que campinos cavalgavam levando toiros para a feira, os desfiles, a vida que borbulhava. Menos mal que ainda não mudaram o curso ao tejo, nem as portas do sol de colina.
    As raras crianças, estão na aula de hipismo, ténis, inglês avançado ou outra coisa qualquer, não têm horário para brincar. Como hão-de aprender a jogar ao pião?

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  2. Olá, querida Til.
    Agradeço o troco. Escrevinhei a croniqueta sem grandes emoções, endurecidos que estão os picos dos meus espargos. Invade-me uma tentadora tranquilidade.
    No mais, encontrei a guiseira e o bico de escamisar. Á eles voltarei brevemente.

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  3. Quim, permite a invasão e goza a tranquilidade.
    A guiseira há-de aparecer um dia, quando menos se esperar.
    Beijinhos

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  4. Olá Til. Que solinho bom para não escrever, e nem por isso sentir remorso. Jardinagem, hoje! Sim, consciente de que toda a escrita tem no bucolismo um dos seus grandes princípios inibidores.
    Eu disse que tinha encontrado a guizeira, guizeira deveria ter grafado: pelo que não teria mais desculpa para preguiçar sem estórias.

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  5. Boas meus queridos, cada vez que aqui me encontro divago nas vossas escrivênçias. Gostei muito das celestes com espargos, em tudo podemos encontrar o doce da vida, talvez até nas coisas mais simples, o que não é o caso deste texto. Bjkas para ambos.

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  6. Isto está parado, o que é uma injustiça quando aparecem outros visitantes como tu, Becas.
    O último texto, aqui a abeberar por dois ou três dias, não me agradava. Tinha muito da nossa memória familiar mas isso não jogava com as notas de atualidade que eu não soube colar. Por isso recolheu à oficina.
    beijinhos para as primas amigas
    Q

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