Caminhemos, Companheira,
Passo lento.
Mãos dadas
Até onde
no chão nos dissipem
as sombras... Além.
Além
entregues à raiz
do cipreste...
Virão o Sol, a Chuva
o Vento...
Com eles de novo
aprenderemos o voo
das aves
e daremos as asas.
Bornal de um velho trapeiro de palavras
Caminhemos, Companheira,
Passo lento.
Mãos dadas
Até onde
no chão nos dissipem
as sombras... Além.
Além
entregues à raiz
do cipreste...
Virão o Sol, a Chuva
o Vento...
Com eles de novo
aprenderemos o voo
das aves
e daremos as asas.
O Medo
Pedras
soltas e só
para além do olhar
pedras em cinza
deserto.
Porquê este plaino
em silêncio?
Day after... implosão
de montanha
nuclear desgovernado
escórias de abusiva mineração...?
Minguante luar
faz sobressair lajedo.
É o palco vazio onde chega
a voz de conhecido ator anunciando a última
representação .
Ficamos até ouvir:
"Acta est fabula".
Caem mais pedras.
Rio de Mouro, 15 dezembro 2022
O MIGALHEIRO DE NATAL
«Que é a vida, s’ Toino?», atirava-lhe o
Domingos, quando entrava na taberna.
«Oh!... É uma vela de sebo a apagar-se»,
gemia.
Deixemo-nos hoje de lamúrias, António Metaneiro, que temos obra à nossa espera. Nem mais, o prédio da Quinta.
A residência dos proprietários era a mais imponente da Portela. Um edifício de dois andares, farto de janelas.. Entrada principal, abrindo-se a sul -depois de quantos degraus? - por um arco de pedra, apoiado em mainel, ao centro. As águas do telhado: duas mestras, a nascente e poente fechadas por duas tacaniças. Chaminés.
Mas tudo se dilui… Neste absurdo que me prende a uma casa onde nunca entrei. Lastro de paisagem em renúncia. Flocos alvacentos, laivados de vermelho terroso e cobalto. Num horizonte de verde-pinho.
***
Quem tinha tudo aquilo na cabeça era o António Metaneiro.
Vinha de uma família de metaneiros
(1), nados e criados na Quinta. Pais, irmão e irmãs
lá deixaram dedicação, saber, suor e pragas.
***
António. Enfermiço, agarrado à pinga. Entretinha-se com biscates em madeira: Ora peanhas para as candeias de azeite e candeeiros a petróleo ora galheteiros, caixas de costura, saleiros….
Objetos de venda difícil, dada a resistência
à compra de coisas passadas pelas mãos de um tuberculoso.
Tomava como matéria-prima tabuinhas toscas
de caixote de sabão, cedidas pelo Gil da mercearia. Ou desperdícios de carpintaria da Quinta.
:***
Uma manhã, ao balcão da taberna, o Domingos tinha o António Metaneiro. Serviu-lhe a dose do costume, para mata-bicho: um traçado de aguardente e abafado.
Escorrida a pinga, o bebedor confirmava a retirada do seu copo para longe do uso dos outros bebedores, por via do contágio. Que fosse passado a cloreto e guardado debaixo do balcão.
Já lhe bastava a ele! Nem ao maior
inimigo queria pegar aquele mal.
Felizmente só tinha amigos, gabava-se. Muito embora.
« Então e
hoje, o que leva aí na talega?»
Abriu e colocou em cima do balcão três
peças cheirando a tinta fresca. Azul, branco, vermelho.
«Como vês, Domingos, consegui! E cesteiro
que faz um cesto…»
Estariam à escala? Tinha de construir uma bitola, para poupar tempo e material.
Arranjara compradores, melhor
dizendo, compradoras, no dispensário em Santarém. Haveriam de surgir
mais encomendas. Talvez até o patrão do Domingos autorizasse a venda daquilo
ali na loja. Iria deixar um exemplar para amostra.
Era o prédio da Quinta, sem tirar nem
pôr. Do lance de escadas, na entrada principal, aos para-raios!
***
Agora a porca torce o rabo. Como vou
eu talhar na escrita o que o Domingos me garantiu ter visto afeiçoado pelas
mãos do Metaneiro?
Talvez com a ajuda da Maria Afilhada.
***
Encontrámo-nos num almoço de confraternização de parentes, há uma dúzia de anos.
Mesmo alegando roubada de memória, ajudou.
A mãe era lavadeira na Quinta. Para não a deixar sozinha em casa, levava-a consigo. Por lá passou a infância, descobrindo cantos e recantos
«Ali também era a minha casa... Gostava que
fosse. estão a ver...?
« A MINHA CASA
Tem lareiras e fogões a minha casa...»
Assim começara uma redação, na Escola,
quando a professora pediu que descrevessem a casa onde moravam.
Continuando, a garota chamou a si: a cozinha grande e farta, despensa e copa conformes. Salas e salões, escadarias, mármores, lambris...muitos quartos quadros e retratos. Aromas de ceras e perfumes de banho…
Estarrecida, pausava a leitura em voz alta, para ver o
efeito na audiência.
«A tua, casa, Maria!! » gritou-lhe a professora.
Risota na aula. Que vergonha!!!
«Olhem que ainda hoje tenho lágrimas nos
olhos!!! Pois não! Aquele nunca podia ser o meu casulo. Havia na sala crianças descalças. Estava-se no inverno.»
Voltemos à taberna...
O Metaneiro não tardou, para mostrar o molde.
«Trinta e duas janelas ... conta, Domingos! Toda a gente sabe, o prédio tem mais uma janela
do que os dias do mês.»
Agora, mãos à obra. Ia fazer os seus migalheiros!!!!
Ou seja, mealheiros! Siga a conversa.
************
Nascera e residira na Quinta dos
Anjos mais de trinta anos. Como a doença não cedesse, António teve de sair para, com a
mãe, se fixarem na última casa habitável nos fundos da
azinhaga da Besteira. Quase a chegar ao Cervato.
Se nem o pinhal da Quinta nem o sanatório
o haviam curado, deixassem-no, ao menos, ali morrer em paz, no isolamento do olival.
Com os olhos vidrados no prédio da Quinta, riscava, cortava, colava, pintava os migalheiros. Comprassem-lhos, sem asco. Soubessem apreciar cada miniatura, desde a barra azul do rés-do-chão à alvura das paredes.
Apreciassem o rigor do entablamento, as inclinações do telhado, o alinhamento de chaminés e águas furtadas. A minúcia dos cunhais, cantarias, varandas.
E tirassem
proveito das poupanças ali guardadas.
Moedas ou até notas. Inseridas por uma ranhura horizontal, aberta a meio do trapézio da agua furtada do tardoz, caíam no bojo do prédio.
Viessem horas de aperto, bastava deslizar o fundo para retirar a quantia em falta.
Se para os gastos chegasse.
Os migalheiros do António
Metaneiro.
***
Naquele ermo, o doente e a mãe viviam sobretudo das dádivas do proprietário da Quinta. Com as quais ela procurava pagar a renda da casa, comida, alguns medicamentos… E, antes de mais, vários carregos de vinho por semana, da taberna da Besteira.
Reserva e compaixão da vizinhança, frente
aos vaivéns e à desdita da velha Maria Metaneira
Pano sujo das escarnicadeiras, aquele martirizado viver
de mãe e filho.
Diziam que o Metaneiro se lhe desfazia em pedidos de perdão por coisas contra os costumes e a moral pública.
Nunca se descobriu o contorno entre verdade e infâmia naquilo que o António teria dito ou naquilo que os vizinhos lhe teriam posto na boca.
***
Constava ter mandado, em vésperas de Natal, oferecer, ao patrão dos Anjos, uma das mais perfeitas miniaturas do migalheiro . Com um bilhete que ninguém leu…
Que o destinatário arrepiasse caminho. Quanto a mancebias, ostentações marialvas e esbanjamentos da fortuna…Seria tão bonito se o patrão deixasse de ser o «velho gaiteiro» e prezasse mais os seus.
Num mundo ao contrário, o
beneficiado pregava virtude ao benfeitor.
O homem dos potes
E o homem dos potes aqui me tornou. Com um atraso de....
Mas, primeiro, quem era ? De onde vinha? A que propósito ou despropósito?
Sabe-se lá hoje! E décadas?
***
Conta tu, Domingos!
«Passos de bestas na areia da azinhaga. Vim à porta.
Duas, arreatadas uma a outra, escondiam o dono. Pela carga, logo compreendi: era o homem dos potes !»
Vinha aí o vendedor de potes, como todos os anos, quando a azeitona amadurecia e o sol quebrava.
Espantava que as suas garranotas aguentassem tantos barros no lombo? Sem escoicinhar.... Nem desobedecer às vozes do condutor: Sempre certas nos batimentos dos cascos. Sempre em parelha.
Mais uma venda à vista:
«Aí, primas!»
Quem não queria ter uma vasilha para adoçar azeitonas ? Para garantir conduto pelo inverno fora.
Vinham aqueles três, sabe-se lá....
«Dos Alentejos!»
****
E cheguei a isto, digo eu, porque, em boa hora, me convidaram a largar o telemóvel e ouvir
"O homem da gaita", do Zeca Afonso.
A gosto fiquei , A gosto os meus ouvidos registaram a toada daquelas tamanquinhas do Zeca.
****
Só me distraí com a galhofa do Domingos:
"Vocês não acreditam!... O gajo seguia para a Azoia... Póvoa...Alcanhões.... Pela azinhaga.
O nosso Trrritrrró, ainda lhe gritou:
«Dê a volta pela estrrrrada nova, homem de Deus!
Qual quê!... Meteu por ali mesmo, direito a Vale de Lobos.
«Já 'tão a ver o resto... Ai que estojo!»
Quem conhecia o atalho daqueles tempos arriscava concluir a narrativa.
Não era caminho, era um córrego. Despedrado, escorregadio.
Onde se punha um pé logo se esborrachavam os queixos....
Deixá-lo ser casmurro. Há de arrepiar caminho.
***
Não tardou...
Aos berros... Quem estava na taberna confirmou o previsto.
« Bestas malvadas! Só me apetece dar cabo delas!Estou desgraçado, Amigos!»
Tinha de ser! Embicaram as azémolas. Adornaram e..
Perdera-se quase toda a mercadoria. Na borda da azinhaga, ficou um montão de cacos.
Ora porquê?
«Mas ouviu-se o quê, compadre?»
« Ouviu-s...um rai' que parta dum sei lá o quê... Coisa maléfica que aluou as bestas.»
***
Que aquilo aluara as bestas, repetiu-se por lá durante décadas .
Aquilo era, só podia ter sido, o homem da gaita! Bolas! Já por ali andaria...
E bruto eu sou por nunca tal me ter ocorrido!
Aditamento:
Quando o meu irmão leu este relato tardio do desmemoriado que eu sou, alertou-me:
«Ponto de ordem ao contador...»
Faltava a opinião do Trrritrrrró....
Manel Direitinho, assistiu a tudo calado. Quando acabou a lamúria do vendedor arruinado, saiu da taberna. Ia ver com os seus olhos.
Esteve no local com o Zé Lázaro. Observaram discutiram e, em conclusão:
Os potes, sim senhores, os potes é que se atiraram ao chão! Fartos de andanças no lombo das bestas .
Zé Lázaro manteve-se agarrado à ideia de coisa ruim...
E, na manhã seguinte, atravessou o pinhal do Gato, para se pendurar numa oliveira .
***
Ponto de ordem aceite, meu irmão. Obrigado.
Rio de Mouro , 2022
.
Por agora
resistiria a encafuar-vos já na Quinta dos Anjos. Até porque não sei como
tratar o tema de hoje.
Então, voltamos ao sota ervanário? Ao meu trisa Emídio, herói do meu pai-menino, por quem soava alarme, sempre que o velhote empurrasse a bengala para lá dos limites. Vedado sair do picadeiro casa-taberna da irmã-casa ou esgueirar-se para a horta…
Ouvissem-no e logo ele voltava às suas expedições de coletor de ervas. Localizando e colhendo com cuidados de mestre, as ervas das suas mezinhas. De mestre, sim senhor. Mestre Feijão!
Não, amigos: Por hoje mais não digo acerca do Serpa Pinto. Porém hei de completar-lhe a crónica, se me ocorrer.
Resigno-me a continuar o despejo do saco da Quinta, só depois me entregarei a outros alívios. Sim, é verdade, as memórias podem tornar-se flatulências. Não haja dúvidas. O desejável é que as vidinhas não tenham sido mal digeridas. Estômagos rijos, fígados de santo precisam-se!
*
Cresce o meu
pai mais uns palmos, não muitos , que de família herdara a
franzinice. Enrola-se no varino do seu avô Joaquim Henriques…
«Aonde vais, António?», pergunta-lhe a avó Mariana. Àquela hora?!
Deixar para trás o resto da ceia e meter-se à escura friagem da noite?
António: que não ia sozinho, tanto podia voltar daí a uma hora, como um bocadito mais tarde...
Destino? Quinta dos Anjos, se as contas não saíssem furadas.
A família entendeu. Tinha-se ouvido foguetório ao fim do dia. Anunciava-se a festa da Adiafa.
*
«Pelo menos já cá moramos», disse alguém.
E digo eu a quem me lê. Não vos tiro desta Quinta!.
«Até aqui não nos podemos queixar...» , acrescentou outro dos vultos que acabavam de transpor o porto do valado. Intrusos, furtivos...
Pouco barulho!
Se a invasão desse para o torto, só se perdiam as passadas e depressa regressariam à Portela. Ganhariam mais umas horitas de sono. Que o dia seguinte não iria diferir da rotina de empurrar andantes e lancheira Calçada do Monte acima. Pegar às oito, nas oficinas .
Mas, naquela noite, a sorte havia de bafejá-los. A sorte e o calor do baile. Era uma fezada.
Então, despachem-se, rapazes! Cuidado até ao quartel do pessoal da azeitona.
Que eram gaibéus, caramelos, bimbos, gente da Bord’água, da Charneca, arraia de Montalvão?…
Ignoro de que recanto tinham migrado os apanhadores daquela safra.
Gente de fora. Os da terra não chegavam para as tarefas.
E saídos da Escola, r cada vez se afastavam mais do trabalho no campo.
*
«Estamos quase!», cochichavam os rapazes.
Ouviam a concertina. Confirmando a notícia de que só tinham tido conhecimento no regresso do trabalho na Cidade. Adiafa da azeitona na Quinta dos Anjos.
Já os avós contavam ...Mas isso será conversa para outra altura.
Tivessem os intrusos sabido mais cedo, teriam preparado as coisas de outro modo, sem irem assim ao calhas.
Bem conversadinhos, por algum dos trabalhadores locais –o Sílvio, o Antero, o Guilherme Barra...-, os organizadores da função não recusariam entrada aos da terra.
Tanto mais que a questão era sempre a mesma: por que haviam as raparigas de dançar umas com as outras, à falta de parceiros suficientes?
Bom, vamos lá andando, que com sorte…
Continuavam a abrir caminho na noite cega e fria. Espicaçados e pelas tojeiras agressivas. Matagal dos Anjos!
Rodearam o quartel do rancho com devidas precauções. No alpendre, onde se caldeirava, assava-se chouriço ou toucinho.
Que, pela Adiafa, havendo oferta do petisco, do vinho e do abafado, dar ao dente e regar a goela era a melhor forma de agradecer a liberalidade do patrão. Mais uns vivas, umas pulhas, uns descantes … Por fim, bailarico.
Sem excessos!
Recomendavam os velhos. Não era a noite do fim do mundo.
Mas a geada, a alegria, o petisco, a pingoleta puxavam pelo desejo. De abraçar a música e o par.
Então e eles, os visitantes.?
Amoitados no escuro, transidos, como fazerem-se convidados?
Dar a cara? Mas a quem ir assim, do-pé-para-a-mão, revelar o desejo de participar no rodopio?
Por mais que as raparigas estivessem interessadas em mudança de par e conversa mais saborosa, não era provável que os homens da família fossem pelos ajustes.
Não se avistando ninguém da terra, só havia uma saída., virar costas. Ir para vale-de- lençóis .
*
Alto lá! Querem ver que...
Abre-se uma porta a poucos metros dos intrusos. Lá dentro, adivinhava-se a animação.
Que querem estas, agora?
Raparigas palradoras, a queixarem-se da falta de rapazes. Uma voz, mais velha, a quebrar-lhes o fervor: sabia muito bem o que as cachopas estavam a pedir.
Gargalhadas.
«Mijem que vos passam os calores! Mas não se arranhem no mato.»
Mais gargalhadas.
E assim teriam todas elas feito, até à última gota, se…
*
Os pretendentes dançarinos, ajoelhados no chão, a uns metros, acotovelavam-se. Pschiu!
Continham a respiração.s E o riso. Meu pai “ferrava a dentuça na gola do varino”… Iam aguentar-se, ao som de tais repuxos?
Que remédio! À menor fungadela, armava-se logo uma grande balbúrdia. Deixassem escorrer! Não estavam ali. Nem eles nem elas.
Só que…
Como diria o doutor Feijão. “Por um dedal de vento….
Descuidou-se uma
das mijonas. E o estampido perdeu-se no pinhal.
Ah pernas,
para que vos quero! Disparam os metediços, diretos ao valado por onde tinham
entrado.
Alarido, sobressalto, calou-se a concertina. Lanternas de palheiro.
Desafios ameaçadores para o escuro, Na direção dos fugitivos.
E quem seriam aqueles filhos da dita?
Voltassem que haveriam de levar os chifres amassados. À paulada.
E uma mulher, esganiçada, apregoava artes de capadora: «Venham cá que eu vos arranco os...»
Só pararam na azinhaga da quinta dos Pinheiros. Fora de perigo.
Alguém perguntou:
«Porque fugimos, caraças?» «Ninguém fugiu, poças! Viemos foi atrás dum traque!»
Outro sentenciou calmamente:
"Por um dedal de vento, não se vai perder um alguidar de tripas.”
Máxima do doutor Oliveira Feijão (1) . Professor da Escola Médica de Lisboa. Sábio, respeitador das forças da natureza e par do Reino. O povo repetia-o: “Por um dedal de vento”
Pouco mais conheciam do valor cívico, intelectual e empresarial do patrão da Quinta da Mafarra.
2010/2022.
Nota biográfica
1) Mestre Feijão
https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Francisco_Augusto_de_Oliveira_Feij%C3%A3o