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segunda-feira, 27 de agosto de 2012

A ORIGEM DO MUNDO


Lamenta-se a fotógrafa do excesso de luz. Retorquir-lhe-ia que se desfigura o roxo da glicínia,   não o sorriso dos pais fundadores, aqueles  dois casais,  emoldurados pelo conjunto da trepadeira.   Obrigado pelo disparo e pelo envio, Sandra.

Ainda há domingos da volta saloia,  dos tristes, com  apetites de cozido à portuguesa.

Pelos sabores famosos de um certo restaurante, rumaram às encostas de Sintra.   Assim explicaram quando lhes foram franqueados o jardim, a casa, a memória. Coisas que pareciam mendigar.

Momentos antes, parados ao portão das traseiras, apontavam… Embevecidos com quê? Quem é esta gente? O pai, a mãe... -ah deduzo -  filha, neta e genro. Embora não hostis, os cães latiam. A contragosto, recuaram  para o canil. Tranquilos, bichinhos,  julgo saber de quem se trata.

Anteriores inquilinos da casa, num tempo recuado, finais da década de 60

- Então o  senhor é o médico? Dr. D*...?

Exato. As mãos apertaram-se como se nos conhecêssemos. Daquele tempo, desta casa, da partilha dos frutos desta nespereira, onde o olhar do médico perscrutava, como pássaro, a próxima maturação. Será   a mesma árvore ...  Mas vamos entrando, por favor.

Confirmo o desaparecimento da  outra nespereira, sombrosa,  junto ao muro. Houve  ampliação da cozinha, quando passei de inquilino a proprietário.  Sim, sim, tudo tão acanhado para as quatro crianças.   Medida extrema que bastante me pesou.

Durante anos  resisti a súplicas da vizinha americana. Sheila: "Corta o árvore, please". Roubada de sol, num constante enfado a varrer folhas e restos de frutos debicados. Até que. Doída de alma e corpo, um dia, retirou-se para os Estados Unidos. Notícias de divórcio, autismo de um filho, cancro… foram caindo.
Porém, desculpasse a Sheila. Abater a árvore, não estava, ao tempo,  na minha mão. Quando arrendei a casa, comprometi-me perante o senhorio a conviver pacificamente com as árvores  do quintal: duas nespereiras e um limoeiro.

Acabo de saber:  fora ideia da esposa do médico, a plantação do limoeiro. Quanto  à nespereira, a grande,   já  ali se inclinava sobre  o quintal dos vizinhos - não ainda a tal senhora americana -  quando os D*..., com um filho de tenra idade, aqui chegaram.  A nespereira pequena...
O marido:
- Foi semeada por mim e pelo meu rapaz.

Uma ocasião, enquanto colhia as primeiras nêsperas, surpreendeu o garoto,  três anos, de boca aberta, colada à vidraça da cozinha. Caçando moscas.
Que porcaria! Abrisse a boca! A criança abriu, libertando – incrível! - duas, e  a voar.. E quantas teria engolido? Desde quando se entregava àquela devoração? Ralhete teatral.

Sentida choradeira, proposta de tréguas: fossem pai e filho  semear uma nespereira. Tão simples como isso: escolher o local, abrir uma cova e atirar para lá caroços. Não seriam  as nêsperas muito melhores do que as moscas?

- Pois lamento, doutor mas tem de esperar mais umas semanas, se quiser provar desta sua árvore. Combinado, não deixem de vir. Quanto à  nespereira em falta...

Dessa colhera repetidamente.  Repartira com os amigos, chegando a levar frutos para o consultório e até para a maternidade.
Obstetra na Alfredo da Costa, também fazia clínica geral aqui na localidade.

Entretanto, passamos pela cozinha, sala, corredor. Enternecem-se, abraçam-se Na biblioteca, ergue-se da secretária a Filomena  perplexa, enquanto não fiz as apresentações.   Anima-se a conversação

Mergulha-se   nas vidas:   eles, alguns anos antes de 73; nós, a partir daí. Guerra colonial, duas filhas gémeas nascidas  naquele quarto. Não perguntámos se por opção profissional ou impedimento de chegar à maternidade. Tudo correu sem sobressaltos, e sem ajuda. Apenas a criada, atenta ao rapazinho que dormia no quarto ao lado. Sim, no quarto depois partilhado  pela Leonor e Catarina.
Aos nossos rapazes – o mais novo veio já morávamos nesta casa –  restavam mais um quarto e o sótão.   De  facto, Casa piccola ma acogliente, diria anos mais tarde um amigo italiano.

Sobressalto, lembrava-se a esposa do médico de um. Fevereiro de 1969. O marido em comissão na Guiné ela, sozinha, apenas com o rapazinho  bebé. Tremor de terra. Fuga pela porta da frente com a criança nos braços.  Na ideia de se salvar pelo jardim,  esqueceu-se dos três degraus do caminho até ao portão. Queda, felizmente sem consequências para a criança.   As equimoses da mãe foram  de somenos.

- Esta foi a  casa onde a mamã e a titi nasceram - emocionava-se Sandra, sorrindo lágrimas para a filha.
- Estou a vê-las aqui na  sala, a brincar numa cerca de rede – a mãe.

- Tudo passa tão depressa, minha senhora – acrescentava a Filomena

E o limoeiro? Da nespereira já se falara, mas o limoeiro? Afinal também gostariam de ver o tal limoeiro.
Pois bem, acreditem ou não,  o limoeiro mudou de sítio. Não teve a má sorte da nespereira, foi de padiola para a frente da casa. Ali está carregado de limões. Também são vossos.

Ao voltar com um saco de frutos, estava a Sandra a tirar as primeiras fotos.

A nossa casa! A origem do mundo.

1 comentário:

  1. Na realidade, consideramos sempre um pouco “nossas” as casas por onde passámos. As emoções conjugam-se com as vivências, uma parte de nós fica ali para sempre e uma parte da casa é levada no coração.
    Tão bem que eu compreendo a Sandra.
    Beijinhos

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