Lamenta-se a fotógrafa do excesso de luz. Retorquir-lhe-ia que se desfigura o roxo da glicínia, não o sorriso dos pais fundadores, aqueles dois casais, emoldurados pelo conjunto da trepadeira. Obrigado pelo disparo e pelo envio, Sandra.
Ainda há domingos da volta saloia, dos tristes, com apetites de cozido à portuguesa.
Pelos sabores famosos de um certo restaurante, rumaram às encostas de Sintra. Assim explicaram quando lhes foram franqueados o jardim, a casa, a memória. Coisas que pareciam mendigar.
Momentos antes, parados ao portão das traseiras, apontavam… Embevecidos com quê? Quem é esta gente? O pai, a mãe... -ah deduzo - filha, neta e genro. Embora não hostis, os cães latiam. A contragosto, recuaram para o canil. Tranquilos, bichinhos, julgo saber de quem se trata.
Anteriores inquilinos da casa, num tempo recuado, finais da década de 60
- Então o senhor é o médico? Dr. D*...?
Exato. As mãos apertaram-se como se nos conhecêssemos. Daquele tempo, desta casa, da partilha dos frutos desta nespereira, onde o olhar do médico perscrutava, como pássaro, a próxima maturação. Será a mesma árvore ... Mas vamos entrando, por favor.
Confirmo o desaparecimento da outra nespereira, sombrosa, junto ao muro. Houve ampliação da cozinha, quando passei de inquilino a proprietário. Sim, sim, tudo tão acanhado para as quatro crianças. Medida extrema que bastante me pesou.
Durante anos resisti a súplicas da vizinha americana. Sheila: "Corta o árvore, please". Roubada de sol, num constante enfado a varrer folhas e restos de frutos debicados. Até que. Doída de alma e corpo, um dia, retirou-se para os Estados Unidos. Notícias de divórcio, autismo de um filho, cancro… foram caindo.
Porém, desculpasse a Sheila. Abater a árvore, não estava, ao tempo, na minha mão. Quando arrendei a casa, comprometi-me perante o senhorio a conviver pacificamente com as árvores do quintal: duas nespereiras e um limoeiro.
Acabo de saber: fora ideia da esposa do médico, a plantação do limoeiro. Quanto à nespereira, a grande, já ali se inclinava sobre o quintal dos vizinhos - não ainda a tal senhora americana - quando os D*..., com um filho de tenra idade, aqui chegaram. A nespereira pequena...
O marido:
- Foi semeada por mim e pelo meu rapaz.
Uma ocasião, enquanto colhia as primeiras nêsperas, surpreendeu o garoto, três anos, de boca aberta, colada à vidraça da cozinha. Caçando moscas.
Que porcaria! Abrisse a boca! A criança abriu, libertando – incrível! - duas, e a voar.. E quantas teria engolido? Desde quando se entregava àquela devoração? Ralhete teatral.
Sentida choradeira, proposta de tréguas: fossem pai e filho semear uma nespereira. Tão simples como isso: escolher o local, abrir uma cova e atirar para lá caroços. Não seriam as nêsperas muito melhores do que as moscas?
- Pois lamento, doutor mas tem de esperar mais umas semanas, se quiser provar desta sua árvore. Combinado, não deixem de vir. Quanto à nespereira em falta...
Dessa colhera repetidamente. Repartira com os amigos, chegando a levar frutos para o consultório e até para a maternidade.
Obstetra na Alfredo da Costa, também fazia clínica geral aqui na localidade.
Entretanto, passamos pela cozinha, sala, corredor. Enternecem-se, abraçam-se Na biblioteca, ergue-se da secretária a Filomena perplexa, enquanto não fiz as apresentações. Anima-se a conversação
Mergulha-se nas vidas: eles, alguns anos antes de 73; nós, a partir daí. Guerra colonial, duas filhas gémeas nascidas naquele quarto. Não perguntámos se por opção profissional ou impedimento de chegar à maternidade. Tudo correu sem sobressaltos, e sem ajuda. Apenas a criada, atenta ao rapazinho que dormia no quarto ao lado. Sim, no quarto depois partilhado pela Leonor e Catarina.
Aos nossos rapazes – o mais novo veio já morávamos nesta casa – restavam mais um quarto e o sótão. De facto, Casa piccola ma acogliente, diria anos mais tarde um amigo italiano.
Sobressalto, lembrava-se a esposa do médico de um. Fevereiro de 1969. O marido em comissão na Guiné ela, sozinha, apenas com o rapazinho bebé. Tremor de terra. Fuga pela porta da frente com a criança nos braços. Na ideia de se salvar pelo jardim, esqueceu-se dos três degraus do caminho até ao portão. Queda, felizmente sem consequências para a criança. As equimoses da mãe foram de somenos.
- Esta foi a casa onde a mamã e a titi nasceram - emocionava-se Sandra, sorrindo lágrimas para a filha.
- Estou a vê-las aqui na sala, a brincar numa cerca de rede – a mãe.
- Tudo passa tão depressa, minha senhora – acrescentava a Filomena
E o limoeiro? Da nespereira já se falara, mas o limoeiro? Afinal também gostariam de ver o tal limoeiro.
Pois bem, acreditem ou não, o limoeiro mudou de sítio. Não teve a má sorte da nespereira, foi de padiola para a frente da casa. Ali está carregado de limões. Também são vossos.
Ao voltar com um saco de frutos, estava a Sandra a tirar as primeiras fotos.
A nossa casa! A origem do mundo.
Na realidade, consideramos sempre um pouco “nossas” as casas por onde passámos. As emoções conjugam-se com as vivências, uma parte de nós fica ali para sempre e uma parte da casa é levada no coração.
ResponderEliminarTão bem que eu compreendo a Sandra.
Beijinhos