Sofreados por algemas, beijam-se à saída do tribunal. Pela última vez. Entretanto, a milhares de quilómetros, Pablo Picasso procurará ainda libertá-los, numa gravura: Julius e Ethel, sorrindo. Em vão.
Terminaram na cadeira eléctrica, em 19 de Junho de 1953. Sexta-feira. “It had to be!”, tinha dito Julius, quando, dois anos antes, os juízes os encarceraram em Sing Sing.
O caso emocionou o mundo. Chegou-lhe aos ouvidos, tinha ele nove anos.
Chama-me a atenção para o magazine do Público, de um domingo de Agosto: “Fotos do Século XX”: “A despedida dos Rosenberg”. Mais disse, andara a pesquisar na Net: Um caso de amor, espionagem, falsidade e traição.
Ainda hoje, os filhos do casal, naquele tempo com seis e dez anos, pugnam pela inocência dos pais. Traidores? Não! Vítimas da cegueira ideológica e de amizades apodrecidas.
Enquistou-se-lhe na memória. Cruel enigma, trazido dos jornais pelo tio Jaime. Compreendera que um homem e uma mulher iriam ser mortos, numa cadeira eléctrica, mas a razão não lhe foi explicada. Eram comunistas? E espiões? Segredavam aquelas palavras, à mistura com inquietas alusões à guerra na Coreia... Onde era a Coreia? O que era uma cadeira eléctrica? «Não são coisas para a tua idade, menino.» Com um olhar doloroso, a mãe excluía-o da cumplicidade dos adultos.
Saiu de casa e subiu ao Cabeço, para pedir explicações sobre os Rosenberg ao vizinho Fernando Palã.
Ele havia de saber. Marçano na Cidade, parava a puxar fumaças do maço High life, à porta do Café Central... Tinha uma galena. E, como ia todos os sábados ao cinema, nunca lhe faltavam coisas interessantes para contar. Além disso, aquele vizinho gostava dele, prestava-lhe atenção
Fernando Palã confirmou-lhe as palavras do tio. Acrescentando que os condenados levavam vários segundos a morrer. Segundos que pareciam anos...
Cada vez mais calado e arredio, decidiu pôr-se a rezar pelo perdão dos Rosenberg. Deus ajudaria.
Não tardou que a professora estranhasse o comportamento. Seguia-o à hora do recreio, tentando decifrar as razões da apoquentação. Nada de zangas familiares, nem com os colegas da escola? …
- Então, vá, diz!
- Senhora, não quero que lhes façam aquilo…- e calou.
- A quem?
Silêncio.
Medo? Nervos? Só podiam ser nervos! Não bebesse café ao pequeno-almoço. «Que café bebo eu, senhora?». Duas gotas, mistura de grão-de-bico e chicória, com que a mãe lhe desenfastiava a gordura do leite nas sopas. Quem alguma vez compreendeu as razões de tanta ansiedade? Ele não!
Uma manhã de domingo, voltou ao Cabeço, à espera de ouvir o vizinho falar sobre o filme da véspera.
Até ali, quantas vezes tinha ido ao cinema? Uma ou duas.
Sentou-se à sombra de um sobreiro. Só muito anos depois chegariam os serradores.
Do lado da Quinta dos Anjos, refrescava alguma brisa resinosa. Ouviam-se as rolas no pinhal.
Aproximou-se o vizinho Palã. Não para contar o filme da véspera. Mas…
- Ontem vinha no Diário Popular…
A execução dos Rosenberg. Ficou a tremer. Deus teve mais em que pensar!
Acabou-se!
Acabou-se, também, o Cabeço, onde ia espreitar as serranias, as cheias no vale do Tejo
Assujeitado pela Cidade, o sítio perdeu os aromas do arvoredo, matos, searas. Afastaram os rebanhos, fugiram os pássaros. Partiram as pessoas: velhos e novos. Demoliram-se os poucos casebres de adobe. Até que um dia…
Urbanização! Terraplanagens, novas construções, automóveis, gente apressada, desconhecida. Conflitos por causa de drenagens de esgotos e parqueamento de carros.
Antes da asfaltagem chegar a meio, já o antigo carreiro do Cabeço tinha crisma...
- Desculpem, se não atino com o nome da santinha... Santa Catarina? Talvez, talvez tenha sido isso que escreveram na placa, à entrada da rua. Dantes, diziam os avós, tinha havido por ali uns arneiros de Santa Catarina, também uma ermida, salvo erro. Outro mundo.
Calou-se e perdeu o olhar. Em que margem do Tejo estaria agora? De súbito, concluiu:
- Olha, como dizia Julius: It had to be!
Deste modo me falou dos Rosenberg.
Sintra, 2003
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