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sábado, 29 de junho de 2013

Carta com velhos trapos : a cinta genealógica


Carta de férias, junto ao Douro, como as que as tias escreviam, por conveniência social, nas raras tardes, se as tinham, de sol e lazer. Tinteiro, papel, caneta, de molhar ou de encher, mata-borrão.
“ Estimo que ao receberes desta, etc… na companhia de todos quantos estimas.” Aqui se lhes detinha a mão, numa de hoje falta de bateria no telemóvel. Inquietavam-se, as tias, fugindo-lhes o assunto. Que, afinal, se resumia a: estou aqui, tu não estás comigo.

Para esta carta de Aregos, Priminha, deu-me ontem o médico das termas o mote, deixando-me sem desculpa para não ta escrever: «Velhos são os trapos, senhor.» Que lhe teria eu atirado, para ele me replicar com tão diminuta originalidade clínica? Os trapos?! É verdade, não me posso esquecer de escrever à prima, sobre o cachené da nossa bisa Mariana Beja. Perfeito enlace entre afecto e objecto.

Diversos e reiterados objectos  me agitam o charco da memória. Do lado nos nossos bisas Caréus, além do dito tapa-boca - esta  não me cheira a francesismo-, hei-de dizer  do fato  do casório,  dele Joaquim Henriques. E da cinta, que me ocorreu neste entremez de panos, a minha cinta! Bons têxteis, asseguro. Então e o varino? Mais o varino.Trapos!


Lá fora, vai uma caloraça de eiras, própria dos trabalhos e dias daquelas nossas gentes mas, mesmo assim, veio a cinta à colação. A cinta do avô Caréu está cuidadosamente engavetada com as minhas roupas de Inverno. Dá-me conforto o seu uso. Pela qualidade da lã espinhada, atravessou todo o século vinte, sem traça nem pontos frouxos. Uma faixa preta, já não a asa de corvo da original tintagem, mas ainda de um negro muito apresentável, capaz de cumprir hoje, e na perfeição, o intento de quem a tirou do tear. Um palmo de largura, franjas em ambos os extremos; alegrada, antes de cada ponta, por quatro finas e vivas riscas vermelhas, transversais... Resistente.


Fornalha!!! Arregacemos as mangas, pois muito há para contar.

Qual das minhas netas, me perguntou sobre a origem da cinta?
 «Do nosso tetravô ?!»
Nem mais: tetravô. Pois, Marta, Sofia, tu também, Tiago, equilibrem-se aí nesse ramo da nossa árvore e vejam como o tempo escorre sob os nossos pés: no ramo logo a seguir, as vossas mães e pais; abaixo, o avô Quim e a avó Filó -Ai que o vento me leva! Não foi desta, uff! -; nos ramos inferiores, empoleiraram-se os bisa António e Maria, ele, filho dos vossos trisas António e Otília; e bem ao fundo, o tetra Joaquim Henriques, Caréu. Casado com a avó Mariana, dela nos chegou este apelido de Beja. Na nossa árvore, ainda há primos que guardam o apelido de  Henriques
Agora vamos fazer um teatrinho, meninas e menino.

"
 Vem o tetra Joaquim Henriques da feira da Piedade, onde comprara a cinta. Tira a jaqueta, perfila-se, à entrada da cozinha, mostra a novidade.
- Mariana, ó Mariana, olha-me só p’ra isto!
-Tu sempre compraste uma cinta!... Fica-te bem, está mal posta, homem. Vem cá, que ta componho.
Desenfaixou a magra cintura do marido. Contou, quatro, as voltas que o pano dava. Apreciou pormenores. Encostou o tecido à cara, não estava a cheirar, não senhor, mas a sentir-lhe  a macieza. Vagarosa, foi enrolando, até a cinta se reduzir apenas a um canudo negro.

- Jaquim, agora ficas aí, ao pé da mesa, até eu dizer.

Avançou para a porta da rua, fixou as franjas na trinqueta, esticou o pano até junto do homem, para lhe meter as outras franjas, na ilharga esquerda, entre calças e camisa.

-Agora, rodopias, até à porta. Ajusta, para não amarrotar.
-Assim?
-Isso mesmo. Fica quieto.
Faltava apenas ocultar as franjas, por debaixo da primeira volta da faixa.
Sentenciou:
-Homem que mostra as franjas é desleixado.
Joaquim Henriques sentiu o vigor, levantou o peito
-Sinto-me capaz de pegar um toiro!
-Deixa-te de valentias. Pega-me antes a mim.
Abraçaram-se. 

"


Terminaria esta cena com várias perguntas sobre os cuidados da avó Mariana, todavia decidi eliminá-las. Basta de porquês, se a resposta é oca.

De qualquer modo, a história da cinta pausa aqui. Transformada que um foi uma centenária roupeta em suporte de genealogia. Cinta genealógica, apetece dizer. Não creio que o avô Joaquim Henriques nem os homens que lhe sucederam na família lhe tenham dado muito uso. Caso contrário, não teria chegado à minha posse, assim tão utilizável.

Se eu me esquecer, lembrem-me que prometi falar do cachené, e não só.

Caldas de Aregos, Junho de 2013


1 comentário:

  1. Lembraremos todos. O cachené, o não só e coisas mais que algum dia a curiosidade desassossegue. Com os aliados que me arranjaste no interesse na nossa história, não faltarão lembranças. Assim não serei só eu a chata. Deixa-me aliviada.
    Gostei tanto do teatrinho. Alegra-me que conserves a cinta do nosso bisa. Que bem tratada tem sido, para sobreviver a tantas vidas. Se a conteúdo que ela transporta ocupasse espaço, onde arrumarias tu as tuas roupas de inverno?
    Abençoado o médico, cuja sabedoria fez trazer a nós, as franjas bem arrumadas
    Nós por cá todos bem... Carta de Aregos nunca tinha recebido. Muito me alegra esta. Que os tetra e os bisa sejam tocados na mesma folha, envolve-me na familiaridade com os pequeninos e faz-me sentir dentro da bendita cinta genealógica.
    Continuação de boas férias à beira Douro e muito, muito obrigado

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