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terça-feira, 16 de julho de 2013

A almofada

Cachené ou cachiné? Pela  voz do meu pai: «o lenço cachiné da minha avó Mariana». Dará para a conversa de hoje? Começando já pela questão: a peça para tais usos há-de ter sempre nome francês? Ele é écharpe, ele é cachecol, ele será cachenez, pois faz-me espécie. Tapa-boca, conforme propõem os puristas, ah, nem pensar! Deixem-nos protestar, que abundam as razões. Bem basta o sufoco do passado

Lenço vermelho, malha de lã, inseparável agasalho da avó Mariana, nas idas à horta, às lojas, vender ao mercado.

Naquela noite impunha ela que o neto, rapazola de dezoito anos,  tão amigo do trabalho como da folia, não saísse de casa sem o varino do avô,  mas  sobretudo sem o  cachené. Desde garoto, enfermiço da garganta, podia-se ir assim com umas anginas, e não seria o primeiro. Mais: antes de ele sair, ainda havia de lhe aplicar a mezinha:

«Tonico, vou-te besuntar o pescoço com enxúndia de galinha. Depois, enrolas o lenço e só o tiras quando entrares àquela porta.»
« Temos muito que fazer esta noite.Volto tarde, minha avó.
«Mais razão para te cuidares.»

Encargo premente, na Sociedade, bota que ninguém sabia descalçar. Véspera de baile da pinha. E o pior...

Concordou com a avó. Lembrando-se de quando, anos atrás, ao sair da escola, ela   tinha ido levá-lo, pelo nascer do sol, ao primeiro trabalho. Na estrada, junto à taberna do Melro. Andava-se a atamancar o macadame, quase impraticável, por somadas incúrias. De repente, alguém mandara deitar mãos à obra, veio um empreiteiro não se sabe de onde, contratou-se pessoal das imediações, tudo a calhar. A Portela ajudava a zelar pela sua estrada, ignorando que quanto mais viável a tornasse, mais custos em vidas lhe seriam devidos. Adiemos este ponto.

Tonico Caréu teria ali o seu primeiro trabalho remunerado. Não se queixasse, pois muitos da sua idade, mesmo sem a escolaridade concluída, já andavam pelos campos a amargar.

«Qual trabalho infantil, qual léria! Quem é que então falava em direitos da crianças?» comentará o avô António aos seus netos.

Contrafeita, a avó Mariana entregou-o ao capataz. Que fizesse do rapaz um homem, nunca um escravo. Certamente que assim desejava, num silêncio conformado. Sempre era um começo de vida.
Pedra da Atalaia, transportada em galeras e carros de bois. Qualquer rapaz sadio se poderia ocupar da britagem, a baixo custo. Para tanto, mais não precisava do que tomar assento num calhau menos rugoso e pegar nas ferramentas. Daí, marretada certeira, cabo firme na mão,  cuidado com os dedos e os olhos. Todo o dia, que o cascalho nunca demasiava para os buracos do caminho.
Quando ao fim da primeira manhã, foi a casa pelo almoço, estava a avó Mariana a acabar  a almofada.
«Não vou levar isso, minha avó. O que dirão os outros?»
«Não te rales, filho, que eu a levo»

Pouco depois do regresso à pedra, tocou-lhe a  avó no ombro. Tirou a almofada da alcofa e num gesto de quem se quer fazer ouvir, esclareceu os restantes britadores:
«Esta almofada é para o meu neto pôr debaixo do sim-senhor! Está entendido?

Ninguém abriu bico. Exemplo para que no dia seguinte, aparecessem  outros miúdos com sacas enchouriçadas de trapos, a fim de melhor aguentar a rudeza da tarefa.
Também para o dia seguinte, já a avó Mariana havia engenhocado outro alívio. Fizera ao neto, a partir de uns peúgos rotos, umas luvas, meias-luvas... Impregnadas com sebo de carneiro, para que as mãos se lhe calejassem, sem empolar. A lata do sebo, não continha apenas solução para botas e arreios do gado. E tal como se conservava o sebo, também não se deitava fora a enxúndia de galinha.

Na volta do Melro, mal saído da azinhaga onde nascera, Tonico venderia  o seu primeiro esforço. Venderia,  se o empreiteiro, finda a  primeira semana, não fosse dado como desaparecido. Obra embargada, estrada mais intransitável do que antes, pessoal praguejando sem salário.

Muitos anos mais tarde, António, a lavar o táxi, ouve o filho mais velho lendo no manual: “Salazar construiu hospitais, pontes, estradas…” Alto aí! O homem teria mandado construir, mas quem martelou? Quem lá deixou o suor?
“Quem  construiu Tebas a das sete portas…?” , perguntará o poeta alemão.

Ainda faltariam uns tempitos para o povo se pôr a elogiar os milagres do Estado Novo, quando o Tonico Caréu teve de abandonar o seu breve primeiro emprego, sem vintém. Que maçada para uns senhorecos que, entretanto, iam comprando o seu automóvel.
Meteu-se a almofada de permeio, acabei por não  nãotratar  do cachené. Irremediável, a minha deriva. Desculpado estarei?

2 comentários:

  1. Desculpado sim Sr, que aqui a tua leitora número um, até agradece que vá sobrando assunto.
    Tonico, o meu Tonico, foi assim que sempre ouvi a minha mãe chamar ao irmão, parece que estou a ouvi-la. Por ser o mais velho, terá sido o que mais conviveu com os nossos bisas, o que mais teria que contar sobre eles. Acho que era a avó Mariana que levava os rapazes à praia, naquela longa viagem de dois dias em carroça. A Piedade nunca foi, por nunca ter padecido de escrofulose, com grande pena dela, no seu entender de criança.
    Eu nada sabia do primeiro trabalho -afinal gratuito- do meu tio, mas sempre soube que foram tempos muito duros. Aquece-me a alma, a dedicação da bisa, mulher de armas, determinada, um exemplo.
    Do cachené, se mais houver, será muito bem-vindo.
    Obrigado Quim, um abraço

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  2. As viagens à Nazaré? E não só. A seu tempo. Carroça, inicialmente, depois o "charabã", outro francesismo à "cachiné", mas no mundo dos transportes colectivos. Lá iremos. Devagar, pois os caminhos não ajudavam.

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