«Ai ca raio!»
Então ainda não contou mais esta do Zeca Raio? Pois, desfiando para si mesmo, retarda a partilha. Está-lhe na massa do sangue. Valer-lhe-á de quê uma vida a patinhar num lodaçal de memórias?
Mas já nos falou do Cabeço, outeiro em cuja encosta nascente era a sua casa. Até já crismou tal ponto, quando um dia lhe vieram com a certeza documental de terem sido por ali uns Arneiros de S. Catarina. Que fossem, deu de barato.
Não calhava à Mãe que, na sua idade, ele se esquivasse para aquela propriedade da família. Sozinho num ermo, onde umas quatro ou cinco casas, modestas, desapareciam, no Verão, entre frondejantes figueiras. Ah, mas dali, adivinhava o Tejo, não a água - excepto no tempo das cheias! Todo o vale, até onde lhe chegavam os olhos. Pelo poente do cabeço, tinha a estrada nova: quem passava, onde ia, quantos carros em dias de engarrafamentos? Sempre que as ovelhas do tio Juvenal ali vinham pastar, a razão para trepar a encosta, redobrava. Hoje não, não quer tornar às feridas de tal sítio.
Vamos então delimitar num triângulo: o Zeca Raio, ou tão-só o Zé das Ovelhas; a Mãe, inquieta com o que se dizia de certos hábitos do moiral; e a Figueira. Será que a árvore ainda lhes sobrevive? Mesmo que lá não esteja, figure como vassalo neste recordatório.
Ouviu chocalhos e campainhas, meteu-se à ladeira. Ia aprender com o Zeca Raio o que mais ninguém admitia ensinar-lhe ou ser por ele questionado. Naquele dia, encontrou o moiral agastado.
Tenho ali uma ovelha a parir,
Tu não me digas, ó Zé,
Vamos lá ver se não dá prò torto,
Porquê?
Ansioso. Nunca vira parir. Saltos do carneiro na Primavera, cobrindo, já não o perturbavam. Como é que haveriam de nascer borregos, sem aquela divertida trepa de macho sobre fêmea. O seu interesse de momento era saber daquele teatro com os humanos? O Zeca Raio não se cortava nas respostas. De experiência.
Que conversas tens tu com o Zé das Ovelhas?, a Mãe.
Coisas sem mal, mãe.
Então já conhecia o mal, nos seus oito anos? E soube esclarecer, sem rodeios, quando a Mãe o interpelou sobre ocorrência de abusos sexuais, ou tentativas, por parte do pastor. Com ele ou com outros…
Não. Nunca! À mínima, já teria avisado. Ficasse a Mãe tranquila.
Ouvira, sim, sobre o sestro do Zeca Raio, sem mais revelar sobre o falatório dos rapazes da escola.
A cabeça da ovelha parturiente, virava-se para os quartos traseiros. Contraía-se. Tinha dores?
Está a cria atravessada, concluía o moiral,
Precisava de meter as mãos. Fosse pedir à mãe uma garrafa de azeite, para untar a natureza do animal! Assim mesmo devia dar o recado.
Frente à mãe, não se sentia à vontade. Atabalhoando: o mal-estar da ovelha, o Zeca Raio a pedir azeite…Para untar…
Rispidez materna. Já bastava de explicações. A Mãe iria ao Cabeço ver o que se passava. Não saísse ele de casa, até ela voltar, que o irmão dormia a sesta.
Aprestou o azeite, vertendo da almotolia uma porção num púcaro, e foi-se encosta acima.
Não costumava desobedecer, portanto não o levou a curiosidade para além do tanque. Dali ainda ouviria o irmão acordar. Esperou bastante, bastante lhe pareceu.
Até que voltou a Mãe de mangas arregaçadas, as mãos viscosas, ensanguentadas. Ensaboou-se enérgica, e mandou-o ir à cozinha por pano limpo.
O borrego estava morto. Tinha de ir levar uma enxada, para que o pastor o enterrasse. Não demorasse por lá, nada mais havia para ver.
Custou-lhe subir a encosta devido ao peso da enxada.
Quando o pastor deu a primeira enxadada, a ovelha, afrouxada a vigilância, teimava em vir lamber o borreguinho e mordiscar aquilo. Aquilo tinha nome?
Segundinas, acrescentou o Zeca Raio.
Secundinas, confirmaria o Pai ao saber do caso
Silêncio, enquanto o moiral cavava. Silêncio quando, com a enxada, arrastava o corpo e a outra coisa para o fundo do buraco. Só os balidos da ovelha. Tristeza de morte, em gente, já ele sabia o que era.
Toda a terra reposta, o Zeca Raio cortou a canivete um ramo de figueira, fendeu-lhe a extremidade e enfiou-o a fundo a meio da cova.
Vamos lá ver se…
Se o quê, Zé?
No ano seguinte, quando as ovelhas voltaram ao pasto do Cabeço, Zeca Raio engendrou uma vedação, para proteger a folhagem do ramo. Íamos ter uma nova figueira. Um tanto desalinhada das parceiras, a árvore foi fazendo pela vida. “Ai ca raio!”
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Juntem-se agora a esta história uns puxados quarenta anos. Regresso. Não me perguntem por favor o que, entretanto, fizeram às outras árvores da vizinhança. Na altura, parecia não haver melhor solução, mais tarde até o Pai se arrependeu da mudança que o Cabeço levara.
Como crescera a figueira! Primeiro ainda afastada do caminho de pé-posto, calcorreado por passantes no carrego de água, ou passageiros da carreira do Alto dos Anjos. Depois, a rua mais larga e asfaltada, aproximou árvore e frutos dos transeuntes.
Com o tempo, nem a Mãe se lembrava da origem daquela árvore. Recuou até ao caso do borrego nado morto, repetindo o dito do Zeca Raio: era uma figueira parida por uma ovelha!
O Zeca Raio? Não, ele não sabia nada sobre o antigo moiral.
E a mãe disse:
Enforcou-se há uns anos.
Ponto final
Mas o que a preocupava, além da solidão dos velhos, era a desfaçatez de quem passava pela agora rua de Santa Catarina e, tendo ali tanto figuinho pendente, não se coibia de ir tirando os mais apetitosos. Com que direito? Era roubo. Mais: aquela era a única figueira do Cabeço, onde ela, a Mãe, podia colher. A quem iria pedi-los, se para ela e para os seus nada sobejasse daquele constante cardanho? Tanta fartura e diversidade de fruta noutros tempos.
Por isso lhe pediu ela:
Fazes-me um letreiro?
Um letreiro, Mãe?...
Sim. Que denunciasse o atrevimento de quem passava e fazia mão-baixa, ou melhor, mão-alta sobre os ramos.
Calou-se, sem vontade de se meter em tal pendência.
Não queres? Faço eu!
Decidiu e executou.
Ela: Aqui tens, vais lá pendurar este letreiro…
?...
Ah também não?! Pois não fica por pendurar.
E coxeou pela encosta.
Com um pedaço de cartão de uma caixa de sapatos, escrito a negro de brasa apagada, foi engravatar a Figueira – “Na comão os figos Dêchem alguns prá dona. E voltou senhora de si.
Enterrando, agora o assunto: pudesse ele apartar a muralha do tempo, para:
Leia, Mãe, este segundo letreiro.
Rio de Mouro, Abril 2013
Andava sedenta duma escrevivência tua.
ResponderEliminarNão me transporta a épocas, nem a vivências, mas ao Cabeço, onde muito menina fui levada pela minha mãe, a ver a que ela dizia ser, a mais bela vista. E era! Agora, meio século passado, lamento não ter bebido mais do espetáculo que proporcionava. Como se de lamentos vivesse o homem.
Quiçá alguma vez comi um figo da figueira do nado morto, nalguma visita por essas bandas...
Estou a ver a Mãe, coxa, mas decidida no seu propósito de defender o que era seu por direito. É assim que recordo as Mães, decididas!
É por isto que eu gosto mais de ler do que de ver filmes, porque me proporcionam metragens de deleite, que como neste caso, me transportam a pessoas e locais por vezes adormecidos no tempo, involuntariamente, em mim.
Obrigado pelo excelente momento. Não há no mundo, coisa material que o pague.
Beijinhos
Tens razão. Dê a volta que der às teclas, acabo sempre a "escre(rre)viver". Obrigado pelo comentário.
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