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segunda-feira, 29 de julho de 2013

Anginas


Sábado à noite,  véspera de baile da pinha, na nova sociedade. Pesava a responsabilidade. E ardia a garganta de António, mas não pensava faltar ao combinado.
A avó Mariana insistia: ficasse em casa. Saindo, não deixasse de ir agasalhado com o varino do avô, só depois de ela lhe aplicar a mezinha. 

-Está bem, minha avó, duvido que isso me tire as dores.

Gargarejos mornos, uma infusão  de diabelha e agrimónia, mais a enxúndia de galinha. Pena já não ter mentol, nem gota para uma zaragatoa.

E papel? Onde iria a avó encontrá-lo ou a quem pedi-lo àquela hora? Lembrou-se do que forrava a gaveta dos talheres, pardo, mesmo a calhar. Com a tesoura cortou duas tiras, deviam chegar

-Alcança-me o frasco da enxúndia. Ali, no alto da prateleira.

-Que ideia minha avó, essa besuntice só me….
-Vais ver que te faz bem.
Impregnou o papel com a gordura, aqueceu as tiras junto ao vidro da lanterna. Depois, enrolou-as ao pescoço do neto, ajustadas com um farrapo de lençol velho.

Só faltava o cachené. E a última recomendação
- Andas com isto até voltares para casa. Tenho o sono leve, quando te ouvir, venho cuidar de ti.
Não  se  esquecesse de levar  o varino do avô Joaquim

Mariana sabia que os Henriques não tinham a rijeza dos Bejas. O marido e o filho lamuriavam dores reumáticas durante todo o ano. O neto, embora com a genica dos Hipólitos, à menor corrente de ar, ficava naquele estado.
Não devia ter saído.

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No fundo, a avó concordava com a tenção. Com outros rapazes da Portela - o Adelino Carolo, o Méu, o Tonim das Neves, um dos Pagantes… - queriam fundar uma sociedade recreativa. Na casa onde fora o armazém de cereais e rações dos senhores Campos. Bom cabimento para sala de baile, teatros – havia por lá gente cheia de jeito. Tonico ajudava nos ensaios, soprava na caixa do ponto, à falta de actor, subia ao palco. E cinema? Talvez, Mariana não havia de morrer sem ver uma fita. Bailes e ensaios eram quase a única oportunidade de convívio entre rapazes e raparigas. Fora isso, ficavam elas em casa e eles marchavam para a taberna.

Entretanto, António ocultara à avó que o projecto também tinha muito a ver com jogos de bola.

Meu pai esclarecia-me ser o futebol um pretexto para contornar os entraves legais ao associativismo, dada a política restritiva de liberdades. Estava-se no arranque da década de 1930. Os clubes conhecidos de Lisboa, com interesse na criação de “sucursais”, pela província, competiam entre si na prestação, ainda que simbólica, de apoios.
 Assim surgiu, na Portela, o Cruz de Cristo Futebol Clube. A cruz de Belém. Como reconhecimento do novato clube por umas já suadas camisolas do Belenenses. Que acabariam de se esfiampar em renhidos desafios, no improvisado Stádio do Casalinho.

 Por empenho do estarola D. Caetano, fora posta uma parcela, pouco produtiva, da Quinta do Casalinho, à disposição da rapaziada. Sol de pouca dura.
 Na sua propriedade de devaneio, D. Caetano de Noronha não dispunha de área cedível, daí que tivesse abordado o lavrador vizinho, com vista à cedência do campo de jogos. Rejubilava, sentindo a sua gente, de hábitos urbanos, acamaradar, em tempo de férias, com operários e camponeses da Portela. Todos iguais atrás de bolas, mais ou menos, trapeiras, vociferando palavras inglesas e vernáculos impropérios.

Ora, uma tarde, visitantes e visitados pegaram-se  à bulha.  Pretexto suficiente para o dono do stádio, mesmo sem dar satisfação ao D. Caetano, revogar a cedência. Assim como antes mandara o boieiro Tito Botelho gradar, e compactar o piso a rolo de pedra, ordenou ao mesmo lhe metesse charrua, após as primeiras chuvas de fim do Verão. Acabava-se a bola, por alegadas faltas de respeito. E só na mocidade dos bisnetos de Mariana, os rapazes da. Portela voltaram a dispor de lugar apropriado para chutos e cabeçadas na bola..

Agora bailes, numa sala decente? Isso sim, velha era ela, Mariana, mas havia de lá ir com as netas.
Lembrava-se, desde garota, dos bailes que se iam dando, principalmente em casas onde havia raparigas. Se os pais fossem de as ver casadas, o que nem sempre acontecia. Filha casada podia ser uma perda de mão-de-obra.

 No casal do Dr. Pombo, estava, uma noite, o tocador a embalar a mocidade, quando o vinho se fez ouvir: «Ò Mestre Pedro, pare já com esse fado!» Quem mandava? Teimoso, o guitarrista só se deteve quando um cachaporro derrubou o candeeiro. Seguiu-se balbúrdia. Na escuridão, de que mal se aproveitaram alguns pares, desandou toda a gente em direcção ao poço, a fim de dar combate ao incêndio. Sentado no bordo do poço, o toucador continuava com a mesma música.
 Anote-se que o nome deste Mestre Pedro me chegou  pela boca do velho Manuel Barra, muitos anos após o  falecimento da bisavó Mariana.

A Taia, calceteira de homens, embora nunca lhes  tomando as medidas pelo corpo, satisfazia-os pelo acerto na costura. A partir de uma peça usada. E pelo modo como organizava decentes funções dançantes, na casa que depois havia de ser comprada pelo Camilo Gomes, fabricante de gelados, barquilhos de canela, e assador de castanhas.

Mais acima, na Besteira, bailava-se em casa da Maria Pequena ou, com mais recato, na casa do Augusto do Marmelal.

Contente por virem a ter, com a ajuda do seu Tonico, uma sociedade, a dois passos de casa, Mariana deixou-se passar pelas brasas. Resistiu, no entanto, a ir para a cama, antes da chegada do rapaz.

2 comentários:

  1. Olha, Tilinha, a nossa bisa Mariana está a virar personagem de ficção. Diverte-me, embora não fosse essa a minha ideia inicial. Digamos apenas que estou a recolar os ingredientes de mais uma mezinha.

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  2. E eu estou a adorar. A bisa Mariana e a sua determinação, encantam-me. Só tu para me proporcionares este enriquecimento. Penso que o divertimento supera a ideia inicial, a ideia vai-se ajustando ao prazer do que se escreve. (digo eu, humildemente)
    Exemplar a dedicação ao neto mais velho. Coisa mais natural, afinal foi o primeiro. O Tonico que eu conheci era cativante sim. Sem dúvida que aquela avó terá sido das primeiras pessoas que cativou, “anos-luz “antes de mim. Porque ocultou ele, os jogos de bola? Iria transpirar e piorar as anginas, seria isso?
    Esse D. Caetano era cá uma peça que só visto. Muito haverá que contar sobre ele.
    A Taia não me é estranha, apesar de não ter ideia nenhuma do contexto em que ouvi falar dela.
    E venham as mezinhas todas. São recebidas com muita alegria e satisfação.
    Muitos beijinhos e muito obrigado

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