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domingo, 5 de março de 2023

ESCREVIVÊNCIAS 24 Mágoas Açoriana


 

Do vaivém de cartas -fantásticas fingidas mentirosas - cruzadas sobre o Atlântico, entre os Anjos e a Terceira. Pelas mãos da menina Né e de sua antiga criada e amiga, Helena. Discreta e respeitosa tentativa de leitura.

Por que havia a Menina de lhe pedir ajuda, querendo reviver o  dia do casamento? Passados que estavam nove anos. Continuaria a sentir-se bem nos Açores? Tudo a correr de acordo com os seus desejos? 

Helena mudando de assunto: gostariam muito, ela e os demais do pessoal, de saber se a Menina tencionava vir à festa de Nossa Senhora? Tornou apenas um talvez, sem se compreender se sim se não. Melhor seria, não contar. Estava tão longe, que pena!

Festa na Quinta, em 1950. Hoje já ninguém pode informar sobre presença da menina Né, embora também não se certifique o contrário. No entanto, na memória do povo ficou um reflexo: o filho, o menino Efe. Foi visto e achado em quase todas as actividades festivas, parecia que os familiares se disputavam para lhe fazer companhia. 

Tinha oito anos. Teria viajado com o pai. Se a irmã, Isa, um ano mais nova, não é mencionada, nos festejos, é de admitir que tivesse ficado com a mãe, nos Açores.

Pouco depois, o menino regressou à Terceira. E testemunhou.

***

Não se realizavam desde 1930, as festividades em honra de Nossa Senhora dos Anjos. Né e Helena, em plena mocidade, encantaram-se com a chegada das fogaceiras, ao adro da Capela, por isso ficaram muitos anos a repetir que iriam participar no próximo cortejo. Cada uma com a sua fogaça à cabeça, se o Papá autorizasse, está claro.

Correu o tempo, levou o ânimo do povo,   deixou-lhe  medo. Veio a sombra das guerras, e os festeiros baralharam-se nas intenções. Em 1950, ora! Já não calhavam tais desejos de folia.

***

Nas primeiras cartas dos Açores, Né relatava a Helena como decorriam por lá as festas do Espírito Santo. Estabelecia paralelos: as fogaças da Senhora dos Anjos equivaliam às sopas dos impérios ilhéus. Pão para os pobres.

Agora, Helena apreensiva, a menina Né referia-se à outra função. “Lena, ajuda-me a reviver aquele dia”, lia-se numa das cartas. “O dia do casamento.” Aliás, dos casamentos. Pedia também que lhe esmiuçasse os preparativos das bodas. Tudo. Por exemplo, como se chamavam as divertidas raparigas e mulheres da Portela que, durante semanas, bordaram os enxovais , o dela e o da mana? Na cabeça de Né, subsistia apenas um nome: “Maria dos Anjos… Irmã de um rapaz moço de compras, um tal Eugénio.”

As bodas das duas filhas dos senhores da Quinta. Levadas ao altar, pelo braço do Papá, naquela quinta-feira, véspera de Santo António, de 1941… Ai! Ai! 

Então não foi a uma quarta-feira, 9 de Julho? Era isto que se esvaía na mente da Menina? Aquele dia tão importante? Como se podia acreditar? Por certo que Helena saberia apontar quase todas as coisas dessa altura. De tal maneira foram vividas com alegria pelas pessoas da Quinta, patrões e trabalhadores.

Todos radiantes. Os fatos, os vestidos, as jóias, penteados, chapéus… os fardamentos novos de criados e serviçais. Nem pensar em dizer quem tinham sido os inúmeros convidados, só se atreveria indicar os próximos da família. 

Mais: a acrescentar que houve gente da Portela, afoita na devassa das estremas da Quinta, com o fito de espreitar de longe as noivinhas. Quedaram-se meio escondidos, entre mato, edifícios e carros. Fez vista grossa, quem se apercebeu daquela coscuvilhice. Coitados! Era por bem.

Muitos, não tiveram a sorte de entrever as manas, não puderam comparar-lhes o bom gosto dos vestidos, contudo regressaram jurando que iam lindas. Outros, ficaram-se pela contagem dos automóveis. Intrigados: afinal, para os ricos, não estava a gasolina racionada.

Plena Guerra, lá por fora. Os militares presentes comentavam aqueles horrores. A meia voz, a fim de não inquietar noivos e convivas.

"Graças a Deus e a Salazar".., o senhor Capitão nunca teve problemas até ao fim da Guerra. Algumas vezes esteve temporariamente afastado da esposa, em diversas bases, mas desde que partiram para os Açores, estava tudo como Deus com os Anjos. Ainda bem.

«Lena, tu estavas de cabecinha no ar, com os uniformes de gala daqueles colegas do meu marido, não estavas?» Pois não era razão para menos, Menina.

Lembrava-se Helena de, durante o copo- -de-água, um dos jovens aviadores, empunhando uma taça de champanhe, ter declarado solenemente: «Houvesse justiça no mundo, Vossa Excelência, minha senhora, não se chamaria Dona Maria Romana. Mas sim, Dona Patrícia Romana!»

Protestos militares contra o desconchavo do camarada. Já a Senhora da Quinta, apanhando o propósito do rapaz, dominou um breve rubor e retribuiu sorrindo. «Patrícia entre as romanas?… Muito gentil, senhor alferes.»

«Para terminar, Lena, conhecerás a razão por que se dizia: “Duas irmãs casadas na mesma boda vão roubar a felicidade uma à outra”.

Coisas sem jeito, Menina, ignorância do povo. Como podiam duas manas tão amigas roubar a felicidade uma à outra? Fiquemo-nos por aqui.

Bem melhor seria que a menina Né continuasse a mandar-lhe notícias dos filhos. Estariam uns amores, benza-os Deus. Efe e Isa.

 Para quando o envio de mais fotografias à Senhora? A Mamã não sai sem os retratos dos meninos. Quer mostrá-los às amigas. Pediu ao senhor Fonseca, o chofer, que lhe pergunte, antes de entrar no carro, se «leva também os netinhos». Coitadinha da Senhora, pudesse ela tê-los aqui por uns dias, poucos que fossem… A confirmar-se a vinda do menino Efe, para a festa, vai ser um ai Jesus.

Helena sabe que está a repetir-se: pois muito se tinha rido, por causa  daquele encontro do menino com os cavaleiros… Não guardou segredo, é certo, – fez mal? Toda a gente na Portela acabou por vir a saber.

Contava a menina Né. Tinham ido de automóvel aos Biscoitos…. Biscoitos, Menina? «Nem mais, Lena, uma praia, no norte da Ilha Terceira.» Admiravam a paisagem quando, de repente, o menino Efe meteu conversa com dois jovens cavaleiros. Deslocavam-se para uma toirada à corda. 

Parecia conhecimento de longa data. Um dos rapazes pediu licença para montar o menino na sela. Encurtou as correias dos estribos, ajudou-o a subir, a firmar-se e passou-lhe as rédeas. Não estivessem os pais receosos, não senhor. O cavalo, obedecendo mais à voz do dono do que ao novo condutor, deu duas voltas, a passo vaidoso.

Quem diria, um menino de sete anos! Já nascera ensinado? Que tinha aprendido com o avô. E adiantou, com risota dos presentes: «Ó mamã, quando eu for à Quinta do avô João, posso trazer um cavalo, não posso? Depois vou passear com estes senhores.»

Viria o animal de barco ou de avião? perguntou um dos açorianos. Isso agora…Mesmo assim, ficou assente: logo que do Continente chegasse o animal, iriam todos ao pasto ver os touros. Uma pena o senhor Capitão, na altura, não ter mais rolo na máquina fotográfica.

E a menina Isa? Quando teria Helena a sorte de a abraçar?

Nem sempre Helena aparentava a mesma atenção pelas cartas dos Açores.. Por exemplo, passou ao lado do que lá vinha sobre a Outra.

«Como se atreve o Papá a instalar, de cama e mesa, na Quinta Velha, aquela senhora? A dois passos da nossa casa! Que falta de respeito pela Mamã…. Sim, sim, finge que não, mas está a par de tudo. Eu, eu morria, se fosse comigo.»

Estava, também ciente da ordem dada ao criado das compras. Fosse o Eugénio levar uma carroçada de produtos da horta, das capoeiras e da despensa ao hospital da Misericórdia. Estavam em apuros os irmãos mesários, sem conseguir calar bocas doentes e esfomeadas. Aproveitasse para deixar nos Correios, como de costume, toda a correspondência. De volta, trouxesse os jornais da Senhora!

Ao portão da Quinta, o Zé Melro fez alto à carroça. Contra-ordem: o destino não era a cidade. Seguisse antes pela estrada de Rio Maior e descarregasse na Quinta Velha. «Nem oh, nem meio oh, 'Génio!». Segunda recomendação: liberto da carga, fosse, então, para Santarém, pelos jornais, sem se esquecer de passar pelos Correios e… Acima de tudo: nem pio! Ou despedimento para os dois. Carroceiro e mensageiro. Quem manda pode, pois claro.

«Como teriam chegado aquelas coisas feias aos Açores, meu Deus?»

Finalmente. Poderia Helena imaginar a mágoa da menina Né? Sempre que ficava sozinha com os filhos, por o marido se demorar em serviço em Santa Maria ou S. Miguel. Ultimamente, perturbada até com as suas  mais curtas demoras. Estaria ele de facto numa reunião com o comando americano das Lajes? Nem todas as esposas dos senhores oficiais se dedicavam assim tanto aos maridos. Algumas …

Já se vê, nem precisava de pôr mais na carta, Menina.

Quanto ao mais, quer dizer, assim queixas, queixas concretas, apenas as da falta do aroma do pinhal e dos matos da Quinta. Ah, também qualquer alusão, aos pavões…

Embora isso já  não possa, de momento,vir à colação Fica para depois, muito mais tarde. Quando Helena foi chamada ao quarto da Senhora, e teve ensejo de ler aquela carta chegada com os últimos papéis dos Açores. Valha-nos Deus! 

Deixa lá, Helena – nem sei se ainda vives! – não contes mais hoje. Fiquemo-nos apenas pelas últimas linhas. Repete-as então, se faz favor.

.

«…muito triste, minha amiga. Afoga-se-me o coração numa lagoa de mágoa. Um grande abraço…»

***

Em minha casa, ouviram-se gritos. Convulsivo pranto da Ilda, nos braços do irmão Mário. Uma grande desgraça. Todo o trabalho suspenso, na Quinta. A menina Né! Tinha ido ao encontro da morte.

Ninguém sabia, ninguém sabe, porquê.

Escrito em 2011

 

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