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quarta-feira, 1 de março de 2023

ESCREVIVÊNCIAS 23 Os Anjos da Ota



 Também a mim se me pendurou uma ideia no trapézio. A de meter aqui o Ruy, na pachorra destas escrevivências

Quero ir ao Vale Barco a Malaquejo à Marmeleira / roubar melões jogar ao murro ver nas festas o fogo preso…” 

Mais o dorido refrão: “quero só isso e nem isso quero”. 

Querer e o seu contrário – desquerer?, por descrer? -  simultâneos,  no poema do Ruy Belo. Nosso vizinho de além das encostas de Rio Maior, a ver nascer o sol por cima da Quinta dos Anjos.

Assim eu: quero contar, a mim e a nós, e nem isso quero.

 Neste caso, trazer o conto à última pausa, para dar alma à casa. Ao prédio deixado branco em verde pinho da Quinta 

Oh as casas as casas as casas / mudas testemunhas da vida / elas morrem não só ao ser demolidas / elas morrem com a morte das pessoas”. 

Até à próxima, Ruy. Urge seguir pelo meu pé.

 ***

«Hoje é quinta-feira, Helena… É dia do meu anjo!»

Os anjos da Ota.

Que desassossego. Tanta ansiedade, ao aproximar-se a hora do voo do senhor tenente. Como ficar perto?, Para dizer adeus, mandar beijinhos, correr a…

 

«Sossegue esse coração, menina!» Conselhos de criada.

 

Jota, muito criança ainda, observava as acrobacias da esquadrilha de instrução.

Já o tenente tinha o posto de capitão. Casado com a menina mais velha da Quinta.

 

 Havia momentos em que a sua avioneta passava mais baixo do que os píncaros dos eucaliptos do Cabeço. Os rapazes da Besteira acenavam com boinas e chapéus de palha. Por detrás da escotilha, uma cara sorria, animando o flying cap. A mão enluvada correspondia aos gestos da rapaziada.

 Coquelim, Rebelana, Bisoiro… todos iriam partir aos comandos dos seus aviões. Bastava-lhes enfiar as boinas até às orelhas, engendrar uns óculos «à aviador», com arame de fardo de palha. Fixar na boina caricas, insígnias de heróicas e imaginárias missões. De braços abertos.  que o Bisoiro ficou-se pela desmontagem dos segredos aeronáuticos, quando aquele obsoleto material foi adquirido em leilão, poucos anos mais tarde, pelo sucateiro da Calçada do Monte. 

Não aterrou muito mais longe  o Coquelim, cumprindo serviço militar nas oficinas de Alverca. Na especialidade de combustíveis e lubrificantes de aeronaves. 

E o Rebelana? Contrafeito, mar fora, no Niassa, para Moçambique, isso de certeza. Anos de violência.

Mas também arrisco imaginá-lo sobre os céus de Paris, enlevado apenas pela lábia do Cunha, a quem ele tratava por  Conarias

"Et quelles conneries, mes chers amis!" 

Façanhas de exilado. Até porque, sim, até porque, uma boa conversa pode ser um modo de voar.

 

Constava que, desde o começo do namoro, o aviador aproveitava instrução aos novos pilotos para treinos na zona de Santarém. Repetia Herculano Salsa.

Então, o nosso tenente metia as caranguejolas ao endereço da mata e, quando avistava o prédio, dava ordens de dispersão aos subordinados. 

Juízo! Rigor! Atenção! Nada de exibições. Sobretudo que não fizessem voos rasantes para acagaçar quem andava pelos campos a ganhar o pão. Chegou a haver desmaios de quem entendia aquelas exibições juvenis como sinal do começo da guerra.

O ponto de reunião, seria, passados três minutos, por cima do entroncamento do Saquiteiro. Guiassem-se pelo painel de bordo, pelas estradas e pelo "pinheiro gigante" do Alto da Portela.

Bem prega frei Tomás.

Entrementes, o nosso tenente começava as manobras de namoro.

 Fazia a sua avioneta rodopiar o prédio, curvas cada vez mais estreitas, apertando a tarraxa. Em alternativa, voos picados sobre o terreiro frontal.

 E a menina? perguntassem à Helena. 

Primeiro, nas águas-furtadas, com a ilusão de ter o namorado quase ao alcance da mão, dos lábios…

 Toda a casa se ressentia daquele inferno mecânico, convertido em vibrações de vidraças e baixelas. Mal disfarçada condescendência da Mamã: começava naturalmente assim, o amor! Aparatoso.

 

Paroxismo nervoso do Papá.

Desvairado, a mordiscar surdos impropérios, cuspinhava para todos os lados, encontrasse-se na sala ou no escritório, Sacudindo convulsivo o queixo afilado.

 “È louco, é louco, a minha filha vai casar com um louco” Refugiava-se na cavalariça. Ganiam cães, relinchavam éguas.

 Ficava agarrado ao pescoço do seu cavalo de estimação, olhos fechados, a acariciar o pêlo, até se lhe acalmar aquele involuntário estremeção cervical. Tique explicativo da alcunha: o Pica-pau

Quem se afoitava a chamar-lho? Nem os seus camaradas da Legião Portuguesa.

 

Rapidamente, cumprindo o plano, todas as aeronaves se reuniam para, em formação, se afastarem. Rumo às lombas do Montejunto. Adeus! Adeus!

 Um sorriso tolerante, da Senhora para as criadas. Não viria mal ao mundo, por tal demonstração de afecto .

 

Mas onde ia menina, assim estugada?!

Apanhar o pequeno bornal. Deixado caír, a uma vintena de metros da fachada principal da casa. Não estando visível de imediato, bastava procurá-lo um pouco, mesmo entre arbustos. Trazia bilhetinhos, páginas de um diário… E, pelo certo, aquela rosa.

«Vês, Lena?»

«Ai, menina, sejam muito felizes».

 

O pior, há sempre o pior nas histórias de amor, foi quando uma das chaminés de um fogão de sala se intrometeu no abraço que a avioneta do tenente parecia vir dar às águas furtadas do prédio. Esparramou-se a alvenaria, voaram pedaços de caliça. Era o fim. Senhora dos Anjos! Mãe Santíssima…

 ***

Não te cales já, Herculano!

Bastante descompensado, o piloto conseguiu aguentar-se no regresso até à base. Na cauda da formação, sem qualquer quebra na disciplina do seu pessoal. Como de costume, o nosso tenente fez-se à pista da Ota. Porém com o impacto das rodas, separou-se a asa fracturada, Só a experiência, na manobra de recurso, evitou um mal maior.

 

Chamado ao comandante, nada de disfarces. Responsabilidades assumidas, rosto erguido.

A outra versão do Herculano era a de que, por falha mecânica, afinal só teria algures ocorrido a colisão da aeronave com um chaparro. Um chaparro!

 Nessa não se deixou enredar a comissão de inquérito. Se colisão houvera, fora com superfície caiada, provas evidentes. Portanto: porrada pelo abuso, pagamento das reparações, faça-se lá ideia de quanto, e louvor. Pela perícia, coragem, sangue-frio, mais aquelas coisas que a tropa escreve em ordem de serviço. Tudo lido em parada. Destroçar!

Os anjos da Ota!

 

Tienem angel”, dizia ele, numa tarde na praia da Consolação. Assistíamos a um torneio de chinquilho, junto à fortaleza.

 De que falaria Ruy Belo? Das malhas de aço, cruzando o azul de mar e céu? Dos jogadores, silenciosos, alinhando o olhar sobre os tabuleiros?

 

Não. Estava apenas, com um sorriso largo de toda a terra, lembrando-se das raparigas de Madrid. Dos piropos que lhe ficaram por dizer, a tais chiquillas, nesse tempo de despedida. Distracções de poeta.


 Abril 2011

2 comentários:

  1. Que belíssimo voo ao passado. Recordar é viver e ler é apreciar (MUITO)

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  2. Belo voo nas asas da conversa… mas palavras…

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