Quinta dos Anjos
A minha mãe, inquieta, no inverno: «Já o sol se pôs, atrás da
Quinta dos Anjos…».
«Com um fósforo, apago-a! », raivava o Raul da Romeira.
O Rebelana: «Vou-t’a contar…» E discorria sobre a fuga do texugo.
Lá iremos....
A Quinta dos Anjos resiste! Até quando?....
Meu ameaçado urso solitário,
para onde caminhas?
Até quando, engenheiro Fernando Caldas?
Por favor, em nome da memória dos seus, dos vizinhos e descendentes de antigos trabalhadores, não permita que a Quinta seja sacrificada às leis do mercado.
Do ponto de vista cultural, a Quinta é de todos nós. Dos filhos e netos de quem aí trabalhou, de quem aí se divertiu e rezou nas romarias. De quem ali foi levado ao batismo, à comunhão, casou ou assistiu a ofícios fúnebres. Os agnósticos também têm memória religiosa!
De quem se orgulhou da perfeição do trabalho prestado e da grandeza dos empregadores. –
Quantas pessoas ainda vivas, sem qualquer laço de parentesco com àquela família não sofreram também com os seus desgostos?
– De
quem ali foi roubar lenha, fruta ou caça… De quem ali estaria disposto a regressar para reencenar a tragicomédia... .
Sei que tudo isto deu muita volta! Mudam-se os tempos!
Eu? Não passo de um
absentista, com duvidoso voto em matéria ambiental, dir-me-ão. Se os
proprietários de pequenas frações, na vizinhança, se submeteram, para
sobreviver, à lógica da oferta e da procura…
Porém, há património invendível! O das memórias, por exemplo. Mude a Quinta
de dono, de funções ou de feições… Fique o sítio irreconhecível.,,
Avancemos.
Tenho quatro ou cinco anos e assisto ao casamento da Ilda Direitinho com o Joaquim Caetano, tratoristas da Quinta.
Permanece a capela branca no meu olhar. A imagem da Senhora brincando com o pezito do bebé. Nisso vejo eu divindade, não nas coroas carnavalescas com que embarretaram as figuras do altar. A alvura das casas da quinta velha. Ao lado da capela, a horta, as abelhas do ti’ Caréu, parente do meu avô António...
«O ti’ Caréu, fazia outro tanto,
Thomas», tornava eu ao meu amigo borgonhês, apicultor que, sem máscara nem
luvas, recolhia as suas abelhas na colmeia. Só com um assobio. Allez!
Havia também por ali, perto da capela, um moinho, onde meu pai mandava
farinar as rações do gado. Um picadeiro?… Já não atino.
Na leitaria, impecavelmente limpa, a tia Luísa Caréu, atende a freguesia, avisa: «Amanhã há manteiga. Hoje não se despacha o leite todo…» Do lado de fora do balcão, o moço da vacaria, Manel da Vaca – alcunha do Manuel Custódio, filho do Júlio Bimbo, apimenta a conversa:
«Ó ti´ Luísa, se as vacas
cada vez têm as mamas maiores…» Daí, vai-se descambar em mamas que já não são
de vaca.
Júlio Bimbo viera dos lados de Viseu, para trabalho sazonal na Quinta.
Ficou. Mais um, para engrossar a população da Portela, com filharada incontável.
A minha homenagem à ti’ Maria da Luz. As todas as criadeiras de famílias pobres
e numerosas daqueles tempos. Mães-coragem!
Os pavões.
Quantas vezes já falei ou fiz falar dos pavões da Quinta dos Anjos. Que querem? Se continuo a ouvi-los, aos pavões e à explicação do Coquelim sobre os intentos daquele apelo cortante: cobrir as fêmeas, desfazer-lhes os ninhos, dar cabo das crias implumes… Poderia haver tanta maldade na natureza paterna? Inquietava-me.
Deixa-os estar, por hoje. Aos
pavões que já lá não vivem, conforme os reparos da Maria Alzira.
Ouçamos antes estas rolas, estas urbanas e emigradas da Turquia,
primas colombinas das outras que vinham ao concerto das pinhas
ressequindo-se, de Maio a Setembro, na coutada dos Anjos. Também a memória
precisa de transmigrar, para alívio dos loucos.
Deixa lá estar aquelas penas verde-azul-e-ouro que o Joaquim Caetano trazia para a Ilda, minha vizinha, quando a vinha namorar? Ali, espetadas na areia de uma jarra em cima da cómoda da casa-de-fora do Manuel Direitinho.
Tudo à volta
ruiu, só te ficaram as penas de pavão. Quais penas, mentiroso? Acorda!
Tem a capela dos Anjos o portal, com galilé de oito colunas lisas, virado para poente. Não me esqueci deste número, ou estou enganado? No átrio, junto ao cruzeiro, vejo a minha tia Piedade, a senhora que me enrolou nesta história. «Conta, Quim, ajuda-me a contar.» Outra vez ela, no último adeus. Ela e a Bia com um sufoco: «Acabou-se tudo! Os próximos…»
Os próximos somos nós. Por isso,
contemos.
Piedade. Jovem, sorridente, transportando uma fogaça, na festa dos Anjos, de
1949 ou 50. Chegara o cortejo das fogaceiras, depois de subir da Portela, desde
a porta do Cruz de Cristo – a sociedade recreativa de que meu pai e meu tio
Adelino Carolo foram cofundadores. Começou a missa.
Há sermão
na capela apinhada. Solto-me da mão de minha mãe e furo pela multidão à procura
da claridade. Da rua. Levaram-me à capela a pretexto de ir apreciar as searinhas
do altar. Não vi lá searas nenhumas! Searas eram os meus olhos castanhos nos
alqueives, os meus olhos verdes nas encostas e cabeços, os meus olhos de ouro
na ceifa e debulha.
Hei de passar décadas a pedir explicações à minha mãe sobre o uso das
sementes germinadas na decoração do altar pela festa dos Anjos. Uma vez,
acrescentou um pormenor chave: «Era uma festa do Espírito Santo. Com os
alguidares de searinhas pedia-se melhor sorte na lavoira!»
Cinquenta anos depois, encontro um açoriano numa casa de sementes, em
Lisboa. Compra ervilhas, para fazer searinhas, num recanto do seu
andar da Morais Soares. «É preciso que as folhas fiquem brancas, como as asas
dos anjinhos. Era assim, lá na ilha!» Os tabuleiros de germinação não podiam
receber qualquer luz, enquanto as plantas se esforçavam por crescer.
Estas searas-miniatura eram ainda utilizadas como decoração de montras,
durante as primeiras Feiras do Ribatejo. Touros, campinos, cavalos e carneiros,
em barro, davam por uns dias cor a espaços onde, antes, estavam expostos
queijos, presuntos, peças de roupa ou relógios… Os meus olhos de rapazinho de
dez anos embeveciam-se com toda aquela metáfora agrícola da nossa terra.
Na galilé da capela, encontro o Manuel Direitinho, desbarretado, por
respeito ao lugar e resmungão, por inércia. Queixando-se do «gajo das saias»
que nunca mais…Acabava a pregação. O velho já andara seguramente pelo arraial
ou estivera a beber na taberna do Pedro Carolo.
A Quinta dos Anjos defendia-se dos intrusos mediante uma cercadura de
valados: espaldas de terra batida, encabeçadas por balças e arame farpado. A
alvenaria ficara-se só pelo portão sólido, grandioso. Dois pescoços-de.cavalo,
garimpa alta, suportavam os gonzos do portão de ferro. Segurança e privacidade.
Só que frente da taberna do Pedro Carolo, mantinha-se uma incolmatável brecha
no valado. Não era um porto escancarado, a convidar à devassa, antes discreto
postigo de vaivém para o vinho, a aguardente e o tabaco. Como se a taberna
fosse cantina da Quinta.
Manuel Direitinho não gostava de padres. Quanto mais não fosse por usarem aquele disfarce das saias, como as mulheres. Na sua mocidade, um padre revelara-lhe o jogo – contar-me-á uma dúzia de anos depois, revelho, retorcido, arrastando sempre os erres – : «Comem carrne na Qu’rrresma, e as mulherres dos outrros todo ano».
Bons estômagos, que lhes faça bom proveito.
Conclusão tirada
pelas confidências de um pregador, aboletado na casa dos Direitinhos, durante
uma festividade dos Anjos, ainda nos tempos de El-rei D. Carlos.
Ouvem-se
foguetes, outra vez. Antes, já me tinham despertado pela alvorada.
O milho de sequeiro, cuja bandeira não ouvisse os foguetes da festa dos
Anjos, não se contasse com ele. Ditos da Clemência, bisavó do meu colega
Daniel, pela voz da filha Lúcia.
Andavam os festeiros, pelas casas da Besteira, na recolha de donativos para a quermesse. À porta da cozinha da minha casa, o Brás Pedreiro, opa vermelha, na companhia de músicos e do fogueteiro, dava o Menino Jesus a beijar.
Guarda o donativo da nossa casa e ordena que se estoire um
foguete. Caio num berreiro. Por causa do meu horror aos estampidos, o meu pai
pede que se evite o fogo. Como alternativa, o Brás acha-se na obrigação de
entregar o foguete por deflagrar, e meu pai vai guardá-lo nas ripas do telhado
da casa do carro. Onde ficará meses a tentar-me…” Se lhe chegasse um tição?”
(Continua)