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terça-feira, 22 de março de 2022

ESCREVIVENCIAS.2. 8 Quinta dos Anjos

 

Quinta dos Anjos 

A minha mãe, inquieta, no inverno: «Já o sol se pôs, atrás da Quinta dos Anjos…».

«Com um fósforo,  apago-a! », raivava o Raul da Romeira.

O Rebelana: «Vou-t’a contar…» E discorria sobre a fuga do texugo.

Lá iremos....


A Quinta dos Anjos resiste! Até quando?....

 Meu ameaçado urso solitário, para onde caminhas?

Até quando, engenheiro Fernando Caldas? 

Por favor, em nome da memória dos seus, dos vizinhos e descendentes de antigos trabalhadores, não permita que a Quinta seja sacrificada às leis do mercado.

 Do ponto de vista cultural, a Quinta é de todos nós. Dos filhos e netos de quem aí trabalhou, de quem aí se divertiu e rezou nas romarias. De quem ali foi levado ao batismo, à comunhão, casou ou assistiu a ofícios fúnebres. Os agnósticos também têm memória religiosa! 

De quem se orgulhou da perfeição do trabalho prestado e da grandeza dos empregadores. – 

Quantas pessoas ainda vivas, sem qualquer laço de parentesco com àquela família não sofreram também com os seus desgostos? 

– De quem ali foi roubar lenha, fruta ou caça… De quem ali estaria disposto a regressar para reencenar  a tragicomédia... .

Sei que tudo isto  deu muita volta! Mudam-se os tempos!

 Eu? Não passo de um absentista, com duvidoso voto em matéria ambiental, dir-me-ão. Se os proprietários de pequenas frações, na vizinhança, se submeteram, para sobreviver, à lógica da oferta e da procura…

Porém, há património invendível! O das memórias, por exemplo. Mude a Quinta de dono, de funções ou de feições… Fique o sítio irreconhecível.,,

Avancemos.

Tenho quatro ou cinco anos e assisto ao casamento da Ilda Direitinho com o Joaquim Caetano, tratoristas da Quinta. 

Permanece a capela branca no meu olhar. A imagem da Senhora brincando com o pezito do bebé. Nisso vejo eu divindade, não nas coroas carnavalescas com que embarretaram as figuras do altar. A alvura das casas da quinta velha. Ao lado da capela, a horta, as abelhas do ti’ Caréu, parente do meu avô António...

 «O ti’ Caréu, fazia outro tanto, Thomas», tornava eu ao meu amigo borgonhês, apicultor que, sem máscara nem luvas, recolhia as suas abelhas na colmeia. Só com um assobio. Allez!

Havia também por ali, perto da capela, um moinho, onde meu pai mandava farinar as rações do gado. Um picadeiro?… Já não atino.

 Na leitaria, impecavelmente limpa, a tia Luísa Caréu, atende a freguesia, avisa: «Amanhã há manteiga. Hoje não se despacha o leite todo…» Do lado de fora do balcão, o moço da vacaria, Manel da Vaca – alcunha do Manuel Custódio, filho do Júlio Bimbo, apimenta a conversa:

 «Ó ti´ Luísa, se as vacas cada vez têm as mamas maiores…» Daí, vai-se descambar em mamas que já não são de vaca.

 Júlio Bimbo viera dos lados de Viseu, para trabalho sazonal na Quinta. Ficou. Mais um, para engrossar a população da Portela, com filharada incontável. A minha homenagem à ti’ Maria da Luz. As todas as criadeiras de famílias pobres e numerosas daqueles tempos. Mães-coragem!

Os pavões.

 Quantas vezes já falei ou fiz falar dos pavões da Quinta dos Anjos. Que querem? Se continuo a ouvi-los, aos pavões e à explicação do Coquelim sobre os intentos daquele apelo cortante: cobrir as fêmeas, desfazer-lhes os ninhos, dar cabo das crias implumes… Poderia haver tanta maldade na natureza paterna? Inquietava-me. 

Deixa-os estar, por hoje. Aos pavões que já lá não vivem, conforme os reparos da Maria Alzira.

 Ouçamos antes estas rolas, estas urbanas e emigradas da Turquia, primas colombinas das outras que vinham ao concerto  das pinhas ressequindo-se, de Maio a Setembro, na coutada dos Anjos. Também a memória precisa de transmigrar, para alívio dos loucos.

Deixa lá estar aquelas penas verde-azul-e-ouro que o Joaquim Caetano trazia para a Ilda, minha vizinha, quando a vinha namorar? Ali, espetadas na areia de uma jarra em cima da cómoda da casa-de-fora do Manuel Direitinho. 

Tudo à volta ruiu, só te ficaram as penas de pavão. Quais penas, mentiroso? Acorda!

Tem a capela dos Anjos o portal, com galilé de oito colunas lisas, virado para poente. Não me esqueci deste número, ou estou enganado? No átrio, junto ao cruzeiro, vejo a minha tia Piedade, a senhora que me enrolou nesta história. «Conta, Quim, ajuda-me a contar.» Outra vez ela, no último adeus. Ela e a Bia com um sufoco: «Acabou-se tudo! Os próximos…» 

Os próximos somos nós. Por isso, contemos.

Piedade. Jovem, sorridente, transportando uma fogaça, na festa dos Anjos, de 1949 ou 50. Chegara o cortejo das fogaceiras, depois de subir da Portela, desde a porta do Cruz de Cristo – a sociedade recreativa de que meu pai e meu tio Adelino Carolo foram cofundadores. Começou a missa.

            Há sermão na capela apinhada. Solto-me da mão de minha mãe e furo pela multidão à procura da claridade. Da rua. Levaram-me à capela a pretexto de ir apreciar as searinhas do altar. Não vi lá searas nenhumas! Searas eram os meus olhos castanhos nos alqueives, os meus olhos verdes nas encostas e cabeços, os meus olhos de ouro na ceifa e debulha.

 Hei de passar décadas a pedir explicações à minha mãe sobre o uso das sementes germinadas na decoração do altar pela festa dos Anjos. Uma vez, acrescentou um pormenor chave: «Era uma festa do Espírito Santo. Com os alguidares de searinhas pedia-se melhor sorte na lavoira!»

 Cinquenta anos depois, encontro um açoriano numa casa de sementes, em Lisboa. Compra ervilhas, para fazer searinhas, num recanto do seu andar da Morais Soares. «É preciso que as folhas fiquem brancas, como as asas dos anjinhos. Era assim, lá na ilha!» Os tabuleiros de germinação não podiam receber qualquer luz, enquanto as plantas se esforçavam por crescer.

Estas searas-miniatura eram ainda utilizadas como decoração de montras, durante as primeiras Feiras do Ribatejo. Touros, campinos, cavalos e carneiros, em barro, davam por uns dias cor a espaços onde, antes, estavam expostos queijos, presuntos, peças de roupa ou relógios… Os meus olhos de rapazinho de dez anos embeveciam-se com toda aquela metáfora agrícola da nossa terra.

Na galilé da capela, encontro o Manuel Direitinho, desbarretado, por respeito ao lugar e resmungão, por inércia. Queixando-se do «gajo das saias» que nunca mais…Acabava a pregação. O velho já andara seguramente pelo arraial ou estivera a beber na taberna do Pedro Carolo.

A Quinta dos Anjos defendia-se dos intrusos mediante uma cercadura de valados: espaldas de terra batida, encabeçadas por balças e arame farpado. A alvenaria ficara-se só pelo portão sólido, grandioso. Dois pescoços-de.cavalo, garimpa alta, suportavam os gonzos do portão de ferro. Segurança e privacidade. Só que frente da taberna do Pedro Carolo, mantinha-se uma incolmatável brecha no valado. Não era um porto escancarado, a convidar à devassa, antes discreto postigo de vaivém para o vinho, a aguardente e o tabaco. Como se a taberna fosse cantina da Quinta.

Manuel Direitinho não gostava de padres. Quanto mais não fosse por usarem aquele disfarce das saias, como as mulheres. Na sua mocidade, um padre revelara-lhe o jogo – contar-me-á uma dúzia de anos depois, revelho, retorcido, arrastando sempre os erres – : «Comem carrne na Qu’rrresma, e as mulherres dos outrros todo ano». 

Bons estômagos, que lhes faça bom proveito.

 Conclusão tirada pelas confidências de um pregador, aboletado na casa dos Direitinhos, durante uma festividade dos Anjos, ainda nos tempos de El-rei D. Carlos.

            Ouvem-se foguetes, outra vez. Antes, já me tinham despertado pela alvorada.

O milho de sequeiro, cuja bandeira não ouvisse os foguetes da festa dos Anjos, não se contasse com ele. Ditos da Clemência, bisavó do meu colega Daniel, pela voz da filha Lúcia.

 Andavam  os festeiros, pelas casas da Besteira, na recolha de donativos  para a quermesse. À porta da cozinha da minha casa, o Brás Pedreiro, opa vermelha, na companhia de músicos e do fogueteiro, dava o Menino Jesus a beijar. 

Guarda o donativo da nossa casa e ordena que se estoire um foguete. Caio num berreiro. Por causa do meu horror aos estampidos, o meu pai pede que se evite o fogo. Como alternativa, o Brás acha-se na obrigação de entregar o foguete por deflagrar, e meu pai vai guardá-lo nas ripas do telhado da casa do carro. Onde ficará meses a tentar-me…” Se lhe chegasse um tição?”

(Continua)

 

 

sábado, 19 de março de 2022

ESCREVIVENCIAS.2. 7 Voando no Google sobre as quintas

 

 

Parado no cabeço da Torre, nas imediações da casa de meus avós Maronas. 

É um retorno recorrente pela memória, pelo sonho. Também me sirvo do Google Maps, para confirmar a irreversível desintegração da paisagem infantil. Ou a sua dolorosa posfiguração.

Cada sol nascente, o meu avô Joaquim, debruçado no muro do casal, mesmo antes de orientar a jeira, enfurecia-se contra o Cabeço do Zeimoto. Do Zé Morto, que já é mais nome de cristão. Tolhia-lhe, aquele morro, a visão das águas do Tejo. Sobretudo, das vinhas no campo do Rossio. Tal contenda de gigantes era motivo de calada chacota da família.

De igual modo me confronto com as imagens do Google, sem o desvario de as pretender arrasar, devolvendo-as ao uso agrícola do passado. Vejo na mancha verde da Quinta dos Anjos um velho urso, sonolento, solitário como todos os velhos, caminhando. Vou-lhe na peugada com o devido atraso de quem se desloca, ao longo da Azinhaga da Besteira.

Voltando ao olhar matinal do meu avô…Teria a força de quem se julgava capaz de emprenhar a terra!

Caminho fora! 

Santarém avista-se a uma légua, mediam os antigos. Impondo a torre do Convento da Trindade e o zimbório do Presídio Militar, por sobre oliveiras e pinheiros das minhas cercanias. Sinto-me, ainda, ali prisioneiro, entre valados cobertos pelas balças...

 Assim se teria sentido a minha mãe, quando deixou o Casal das Labaças para fixar residência mais perto da Portela, no local que na sua infância se chamaria Vinha Velha. Ou Venda Velha. Que importância isso tem agora?

 Por ali se demorou quase setenta anos. Até que um dia…

Abriu os olhos, compreendeu que já não era a sua casa, a nossa casa. Sorriu-me e começou a cantarolar, na cama do Hospital:

“Já não tenho pai nem mãe

Nem nesta terra parentes

Sou filha das tristes ervas

Neta das águas correntes

 

As flores do meu jardim

Fizeram uma sociedade

Malmequer e amor-perfeito

Açucena e mais saudade”

 Só à beira-fim lhe ouvi tão conformada elegia. Rendia-se à Natureza, dando-nos mais uma lição. De vida não, de morte!

Eu e os meus, deixámos para trás as encostas de suave-verde deslize para a Vala, ou seja, para a ribeira de Cabanos e os seus pauis.

 As quintas. Terra do Cervato, Quinta das Trigosas. Ambas associadas à luta agrícola do avô Marona. Não lhe pertenciam, mas tomou de renda aquelas chapadas, para arrotear, surribar, plantar oliveiras, semear… Pão e, pelo menos, dois filhos, carinhas chapadas, nunca assumidos. Dizia-se.

Quinta da Comenda. Irrompe, numa mancha malva, do arvoredo, antes do casario branco de Alcanhões. Dali saíam as “tralhoadas”, de gado bravio, já humilhado por corridas, castrações e, finalmente, pelas cangas. Para as lavouras no património do Comendador, íntimo de Alexandre Herculano, em Vale de Lobos. Adversário figadal do meu avô Joaquim que, de sangue mais fresco, lhe levou a palma nos favores de uma mulher. Pagou cara a aventura o pequeno agricultor. Ameaças, tiroteios, incêndios de casas e searas. Para ordenar vingança, não estava o Comendador impotente. Da Comenda saíam, a seu tempo, as senhoras acólitas do reverendo Formigão, a fim de que o milagre dos mil sóis sobrevivesse à lógica dos positivistas. Proselitismo cronicado por um empedernido ateu. Tomás da Fonseca.

 Da Comenda todos tinham saído. Deixando para trás portões, portas e janelas, tudo escancarado, na residência dos senhores, nos quartéis dos trabalhadores, nos palheiros e estábulos. Apenas duas rabilongas viuvinhas, riscaram o ar, quando um homem e uma mulher entraram a furto no pátio, ao cair do século XX. Ninguém que lhes vedasse o engodo das sombras, pelas escadas, corredores, salões, quartos… Nada que não fosse silêncio e calor estival. A que se sobrepôs um estranho, súbito, desejo. Porquê?

Quinta da Besteira. Primeiro, a família Constâncio, falhada na gestão dos bens. Quer directa quer por arrendamento ao lavrador José Tropa, da Granja. Num tempo de produzir trigo para povos em guerra na Europa.

 Meu pai foi lá motorista. Chofer, à disposição da senhora, nem sempre com salário completo e pontual. Em contraste com a ostentação dos patrões por Lisboa, Sintra, Cascais. Despediram-no, por não poderem suportar os custos do seu trabalho, embora o chamassem para ocasional serviço de táxi, enquanto se mantiveram na Quinta. Lembro-me de, muito criança, ter estado na cozinha dos senhores Constâncios. Ao meu pai, ofereceram café. A mim, uma maçã.

 Já não sei contar o episódio de um Constâncio infeliz. Enleou o atacador do sapato no gatilho e esticou a perna. O tecto aparou-lhe o cérebro. Por dívidas de jogo, explicavam os criados. Para não ter de executar um amigo, conforme lhe caíra em sorte num julgamento do clube maçónico. Na versão dilatada pelo sogro, o comendador Paulino. Que lhe teria deixado a espingarda em cima da cama, com a recomendação de já estar carregada, acrescentava a criadagem. Honra.

 Pelos meus cinco anos a quinta foi adquirida pelo Dr. Artur Duarte. Advogado e deputado da Nação.

No final dos anos cinquenta, Domingos Constâncio, desviou o carro, numa viagem de regresso a Lisboa, atraído pelo antigo domínio familiar. Emoções. No entanto, acabou por não ir além da adega dos meus pais, onde, bebericando, se refez das saudades. Insistindo para que o meu pai não continuasse a tratá-lo por menino Domingos. Catarse pelo álcool.

Voltemos, num rápido, à confinante Quinta das Trigosas. As duas maiores parcelas desta unidade agrícola foram trucidadas. Pela auto-estrada, que levou também parte da Quinta dos Anjos e da Mafarra, aproximando da loucura alguns dos moradores da vizinhança. E por dúbios projectos industriais e imobiliários. Daqueles que, não resolvendo o desabrigo, nem reduzindo o desemprego, exaltam a ganância. Por cima e por baixo da mesa.

Alto! O Google já me trouxe para o entroncamento da Rua 19 de Março com a Nacional 3. Sem me assinalar o começo da Azinhaga da Besteira…

Olhem que nem parei, para uma cambalhota, ao Rebola Cabacinha, em frente do portão da Quinta do Casalinho. Agora também não paro à porta do Gil. Fica para outro dia, quando for para a Escola.

 Preparem-se, pois dessa vez venho a pé, como sempre.