"Por um dedal de vento..."
Por agora
resistiria a encafuar-vos já na Quinta dos Anjos. Até porque não sei como
tratar o tema de hoje.
Então, voltamos ao sota ervanário? Ao meu trisa Emídio, herói do meu pai-menino, por quem soava alarme, sempre que o velhote empurrasse a bengala para lá dos limites. Vedado sair do picadeiro casa-taberna da irmã-casa ou esgueirar-se para a horta…
Ouvissem-no e logo ele voltava às suas expedições de coletor de ervas. Localizando e colhendo com cuidados de mestre, as ervas das suas mezinhas. De mestre, sim senhor. Mestre Feijão!
Não, amigos: Por hoje mais não digo acerca do Serpa Pinto. Porém hei de completar-lhe a crónica, se me ocorrer.
Resigno-me a continuar o despejo do saco da Quinta, só depois me entregarei a outros alívios. Sim, é verdade, as memórias podem tornar-se flatulências. Não haja dúvidas. O desejável é que as vidinhas não tenham sido mal digeridas. Estômagos rijos, fígados de santo precisam-se!
*
Cresce o meu
pai mais uns palmos, não muitos , que de família herdara a
franzinice. Enrola-se no varino do seu avô Joaquim Henriques…
«Aonde vais, António?», pergunta-lhe a avó Mariana. Àquela hora?!
Deixar para trás o resto da ceia e meter-se à escura friagem da noite?
António: que não ia sozinho, tanto podia voltar daí a uma hora, como um bocadito mais tarde...
Destino? Quinta dos Anjos, se as contas não saíssem furadas.
A família entendeu. Tinha-se ouvido foguetório ao fim do dia. Anunciava-se a festa da Adiafa.
*
«Pelo menos já cá moramos», disse alguém.
E digo eu a quem me lê. Não vos tiro desta Quinta!.
«Até aqui não nos podemos queixar...» , acrescentou outro dos vultos que acabavam de transpor o porto do valado. Intrusos, furtivos...
Pouco barulho!
Se a invasão desse para o torto, só se perdiam as passadas e depressa regressariam à Portela. Ganhariam mais umas horitas de sono. Que o dia seguinte não iria diferir da rotina de empurrar andantes e lancheira Calçada do Monte acima. Pegar às oito, nas oficinas .
Mas, naquela noite, a sorte havia de bafejá-los. A sorte e o calor do baile. Era uma fezada.
Então, despachem-se, rapazes! Cuidado até ao quartel do pessoal da azeitona.
Que eram gaibéus, caramelos, bimbos, gente da Bord’água, da Charneca, arraia de Montalvão?…
Ignoro de que recanto tinham migrado os apanhadores daquela safra.
Gente de fora. Os da terra não chegavam para as tarefas.
E saídos da Escola, r cada vez se afastavam mais do trabalho no campo.
*
«Estamos quase!», cochichavam os rapazes.
Ouviam a concertina. Confirmando a notícia de que só tinham tido conhecimento no regresso do trabalho na Cidade. Adiafa da azeitona na Quinta dos Anjos.
Já os avós contavam ...Mas isso será conversa para outra altura.
Tivessem os intrusos sabido mais cedo, teriam preparado as coisas de outro modo, sem irem assim ao calhas.
Bem conversadinhos, por algum dos trabalhadores locais –o Sílvio, o Antero, o Guilherme Barra...-, os organizadores da função não recusariam entrada aos da terra.
Tanto mais que a questão era sempre a mesma: por que haviam as raparigas de dançar umas com as outras, à falta de parceiros suficientes?
Bom, vamos lá andando, que com sorte…
Continuavam a abrir caminho na noite cega e fria. Espicaçados e pelas tojeiras agressivas. Matagal dos Anjos!
Rodearam o quartel do rancho com devidas precauções. No alpendre, onde se caldeirava, assava-se chouriço ou toucinho.
Que, pela Adiafa, havendo oferta do petisco, do vinho e do abafado, dar ao dente e regar a goela era a melhor forma de agradecer a liberalidade do patrão. Mais uns vivas, umas pulhas, uns descantes … Por fim, bailarico.
Sem excessos!
Recomendavam os velhos. Não era a noite do fim do mundo.
Mas a geada, a alegria, o petisco, a pingoleta puxavam pelo desejo. De abraçar a música e o par.
Então e eles, os visitantes.?
Amoitados no escuro, transidos, como fazerem-se convidados?
Dar a cara? Mas a quem ir assim, do-pé-para-a-mão, revelar o desejo de participar no rodopio?
Por mais que as raparigas estivessem interessadas em mudança de par e conversa mais saborosa, não era provável que os homens da família fossem pelos ajustes.
Não se avistando ninguém da terra, só havia uma saída., virar costas. Ir para vale-de- lençóis .
*
Alto lá! Querem ver que...
Abre-se uma porta a poucos metros dos intrusos. Lá dentro, adivinhava-se a animação.
Que querem estas, agora?
Raparigas palradoras, a queixarem-se da falta de rapazes. Uma voz, mais velha, a quebrar-lhes o fervor: sabia muito bem o que as cachopas estavam a pedir.
Gargalhadas.
«Mijem que vos passam os calores! Mas não se arranhem no mato.»
Mais gargalhadas.
E assim teriam todas elas feito, até à última gota, se…
*
Os pretendentes dançarinos, ajoelhados no chão, a uns metros, acotovelavam-se. Pschiu!
Continham a respiração.s E o riso. Meu pai “ferrava a dentuça na gola do varino”… Iam aguentar-se, ao som de tais repuxos?
Que remédio! À menor fungadela, armava-se logo uma grande balbúrdia. Deixassem escorrer! Não estavam ali. Nem eles nem elas.
Só que…
Como diria o doutor Feijão. “Por um dedal de vento….
Descuidou-se uma
das mijonas. E o estampido perdeu-se no pinhal.
Ah pernas,
para que vos quero! Disparam os metediços, diretos ao valado por onde tinham
entrado.
Alarido, sobressalto, calou-se a concertina. Lanternas de palheiro.
Desafios ameaçadores para o escuro, Na direção dos fugitivos.
E quem seriam aqueles filhos da dita?
Voltassem que haveriam de levar os chifres amassados. À paulada.
E uma mulher, esganiçada, apregoava artes de capadora: «Venham cá que eu vos arranco os...»
Só pararam na azinhaga da quinta dos Pinheiros. Fora de perigo.
Alguém perguntou:
«Porque fugimos, caraças?» «Ninguém fugiu, poças! Viemos foi atrás dum traque!»
Outro sentenciou calmamente:
"Por um dedal de vento, não se vai perder um alguidar de tripas.”
Máxima do doutor Oliveira Feijão (1) . Professor da Escola Médica de Lisboa. Sábio, respeitador das forças da natureza e par do Reino. O povo repetia-o: “Por um dedal de vento”
Pouco mais conheciam do valor cívico, intelectual e empresarial do patrão da Quinta da Mafarra.
2010/2022.
Nota biográfica
1) Mestre Feijão
https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Francisco_Augusto_de_Oliveira_Feij%C3%A3o