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terça-feira, 16 de julho de 2013

A almofada

Cachené ou cachiné? Pela  voz do meu pai: «o lenço cachiné da minha avó Mariana». Dará para a conversa de hoje? Começando já pela questão: a peça para tais usos há-de ter sempre nome francês? Ele é écharpe, ele é cachecol, ele será cachenez, pois faz-me espécie. Tapa-boca, conforme propõem os puristas, ah, nem pensar! Deixem-nos protestar, que abundam as razões. Bem basta o sufoco do passado

Lenço vermelho, malha de lã, inseparável agasalho da avó Mariana, nas idas à horta, às lojas, vender ao mercado.

Naquela noite impunha ela que o neto, rapazola de dezoito anos,  tão amigo do trabalho como da folia, não saísse de casa sem o varino do avô,  mas  sobretudo sem o  cachené. Desde garoto, enfermiço da garganta, podia-se ir assim com umas anginas, e não seria o primeiro. Mais: antes de ele sair, ainda havia de lhe aplicar a mezinha:

«Tonico, vou-te besuntar o pescoço com enxúndia de galinha. Depois, enrolas o lenço e só o tiras quando entrares àquela porta.»
« Temos muito que fazer esta noite.Volto tarde, minha avó.
«Mais razão para te cuidares.»

Encargo premente, na Sociedade, bota que ninguém sabia descalçar. Véspera de baile da pinha. E o pior...

Concordou com a avó. Lembrando-se de quando, anos atrás, ao sair da escola, ela   tinha ido levá-lo, pelo nascer do sol, ao primeiro trabalho. Na estrada, junto à taberna do Melro. Andava-se a atamancar o macadame, quase impraticável, por somadas incúrias. De repente, alguém mandara deitar mãos à obra, veio um empreiteiro não se sabe de onde, contratou-se pessoal das imediações, tudo a calhar. A Portela ajudava a zelar pela sua estrada, ignorando que quanto mais viável a tornasse, mais custos em vidas lhe seriam devidos. Adiemos este ponto.

Tonico Caréu teria ali o seu primeiro trabalho remunerado. Não se queixasse, pois muitos da sua idade, mesmo sem a escolaridade concluída, já andavam pelos campos a amargar.

«Qual trabalho infantil, qual léria! Quem é que então falava em direitos da crianças?» comentará o avô António aos seus netos.

Contrafeita, a avó Mariana entregou-o ao capataz. Que fizesse do rapaz um homem, nunca um escravo. Certamente que assim desejava, num silêncio conformado. Sempre era um começo de vida.
Pedra da Atalaia, transportada em galeras e carros de bois. Qualquer rapaz sadio se poderia ocupar da britagem, a baixo custo. Para tanto, mais não precisava do que tomar assento num calhau menos rugoso e pegar nas ferramentas. Daí, marretada certeira, cabo firme na mão,  cuidado com os dedos e os olhos. Todo o dia, que o cascalho nunca demasiava para os buracos do caminho.
Quando ao fim da primeira manhã, foi a casa pelo almoço, estava a avó Mariana a acabar  a almofada.
«Não vou levar isso, minha avó. O que dirão os outros?»
«Não te rales, filho, que eu a levo»

Pouco depois do regresso à pedra, tocou-lhe a  avó no ombro. Tirou a almofada da alcofa e num gesto de quem se quer fazer ouvir, esclareceu os restantes britadores:
«Esta almofada é para o meu neto pôr debaixo do sim-senhor! Está entendido?

Ninguém abriu bico. Exemplo para que no dia seguinte, aparecessem  outros miúdos com sacas enchouriçadas de trapos, a fim de melhor aguentar a rudeza da tarefa.
Também para o dia seguinte, já a avó Mariana havia engenhocado outro alívio. Fizera ao neto, a partir de uns peúgos rotos, umas luvas, meias-luvas... Impregnadas com sebo de carneiro, para que as mãos se lhe calejassem, sem empolar. A lata do sebo, não continha apenas solução para botas e arreios do gado. E tal como se conservava o sebo, também não se deitava fora a enxúndia de galinha.

Na volta do Melro, mal saído da azinhaga onde nascera, Tonico venderia  o seu primeiro esforço. Venderia,  se o empreiteiro, finda a  primeira semana, não fosse dado como desaparecido. Obra embargada, estrada mais intransitável do que antes, pessoal praguejando sem salário.

Muitos anos mais tarde, António, a lavar o táxi, ouve o filho mais velho lendo no manual: “Salazar construiu hospitais, pontes, estradas…” Alto aí! O homem teria mandado construir, mas quem martelou? Quem lá deixou o suor?
“Quem  construiu Tebas a das sete portas…?” , perguntará o poeta alemão.

Ainda faltariam uns tempitos para o povo se pôr a elogiar os milagres do Estado Novo, quando o Tonico Caréu teve de abandonar o seu breve primeiro emprego, sem vintém. Que maçada para uns senhorecos que, entretanto, iam comprando o seu automóvel.
Meteu-se a almofada de permeio, acabei por não  nãotratar  do cachené. Irremediável, a minha deriva. Desculpado estarei?

sábado, 29 de junho de 2013

Carta com velhos trapos : a cinta genealógica


Carta de férias, junto ao Douro, como as que as tias escreviam, por conveniência social, nas raras tardes, se as tinham, de sol e lazer. Tinteiro, papel, caneta, de molhar ou de encher, mata-borrão.
“ Estimo que ao receberes desta, etc… na companhia de todos quantos estimas.” Aqui se lhes detinha a mão, numa de hoje falta de bateria no telemóvel. Inquietavam-se, as tias, fugindo-lhes o assunto. Que, afinal, se resumia a: estou aqui, tu não estás comigo.

Para esta carta de Aregos, Priminha, deu-me ontem o médico das termas o mote, deixando-me sem desculpa para não ta escrever: «Velhos são os trapos, senhor.» Que lhe teria eu atirado, para ele me replicar com tão diminuta originalidade clínica? Os trapos?! É verdade, não me posso esquecer de escrever à prima, sobre o cachené da nossa bisa Mariana Beja. Perfeito enlace entre afecto e objecto.

Diversos e reiterados objectos  me agitam o charco da memória. Do lado nos nossos bisas Caréus, além do dito tapa-boca - esta  não me cheira a francesismo-, hei-de dizer  do fato  do casório,  dele Joaquim Henriques. E da cinta, que me ocorreu neste entremez de panos, a minha cinta! Bons têxteis, asseguro. Então e o varino? Mais o varino.Trapos!


Lá fora, vai uma caloraça de eiras, própria dos trabalhos e dias daquelas nossas gentes mas, mesmo assim, veio a cinta à colação. A cinta do avô Caréu está cuidadosamente engavetada com as minhas roupas de Inverno. Dá-me conforto o seu uso. Pela qualidade da lã espinhada, atravessou todo o século vinte, sem traça nem pontos frouxos. Uma faixa preta, já não a asa de corvo da original tintagem, mas ainda de um negro muito apresentável, capaz de cumprir hoje, e na perfeição, o intento de quem a tirou do tear. Um palmo de largura, franjas em ambos os extremos; alegrada, antes de cada ponta, por quatro finas e vivas riscas vermelhas, transversais... Resistente.


Fornalha!!! Arregacemos as mangas, pois muito há para contar.

Qual das minhas netas, me perguntou sobre a origem da cinta?
 «Do nosso tetravô ?!»
Nem mais: tetravô. Pois, Marta, Sofia, tu também, Tiago, equilibrem-se aí nesse ramo da nossa árvore e vejam como o tempo escorre sob os nossos pés: no ramo logo a seguir, as vossas mães e pais; abaixo, o avô Quim e a avó Filó -Ai que o vento me leva! Não foi desta, uff! -; nos ramos inferiores, empoleiraram-se os bisa António e Maria, ele, filho dos vossos trisas António e Otília; e bem ao fundo, o tetra Joaquim Henriques, Caréu. Casado com a avó Mariana, dela nos chegou este apelido de Beja. Na nossa árvore, ainda há primos que guardam o apelido de  Henriques
Agora vamos fazer um teatrinho, meninas e menino.

"
 Vem o tetra Joaquim Henriques da feira da Piedade, onde comprara a cinta. Tira a jaqueta, perfila-se, à entrada da cozinha, mostra a novidade.
- Mariana, ó Mariana, olha-me só p’ra isto!
-Tu sempre compraste uma cinta!... Fica-te bem, está mal posta, homem. Vem cá, que ta componho.
Desenfaixou a magra cintura do marido. Contou, quatro, as voltas que o pano dava. Apreciou pormenores. Encostou o tecido à cara, não estava a cheirar, não senhor, mas a sentir-lhe  a macieza. Vagarosa, foi enrolando, até a cinta se reduzir apenas a um canudo negro.

- Jaquim, agora ficas aí, ao pé da mesa, até eu dizer.

Avançou para a porta da rua, fixou as franjas na trinqueta, esticou o pano até junto do homem, para lhe meter as outras franjas, na ilharga esquerda, entre calças e camisa.

-Agora, rodopias, até à porta. Ajusta, para não amarrotar.
-Assim?
-Isso mesmo. Fica quieto.
Faltava apenas ocultar as franjas, por debaixo da primeira volta da faixa.
Sentenciou:
-Homem que mostra as franjas é desleixado.
Joaquim Henriques sentiu o vigor, levantou o peito
-Sinto-me capaz de pegar um toiro!
-Deixa-te de valentias. Pega-me antes a mim.
Abraçaram-se. 

"


Terminaria esta cena com várias perguntas sobre os cuidados da avó Mariana, todavia decidi eliminá-las. Basta de porquês, se a resposta é oca.

De qualquer modo, a história da cinta pausa aqui. Transformada que um foi uma centenária roupeta em suporte de genealogia. Cinta genealógica, apetece dizer. Não creio que o avô Joaquim Henriques nem os homens que lhe sucederam na família lhe tenham dado muito uso. Caso contrário, não teria chegado à minha posse, assim tão utilizável.

Se eu me esquecer, lembrem-me que prometi falar do cachené, e não só.

Caldas de Aregos, Junho de 2013


sábado, 8 de junho de 2013

Segundo letreiro para uma figueira parida

«Ai ca raio!»
Então ainda não contou mais esta do Zeca Raio? Pois, desfiando para si mesmo, retarda a partilha. Está-lhe na massa do sangue. Valer-lhe-á de quê uma vida a patinhar num lodaçal de memórias?
Mas já nos falou do Cabeço, outeiro em cuja encosta nascente era a sua casa. Até já crismou tal ponto, quando um dia lhe vieram com a certeza documental de terem sido por ali uns Arneiros de S. Catarina. Que fossem, deu de barato.

Não calhava à Mãe que, na sua idade, ele se esquivasse para aquela propriedade da família. Sozinho num ermo, onde  umas quatro ou cinco casas, modestas, desapareciam, no Verão,  entre  frondejantes figueiras. Ah, mas dali, adivinhava o Tejo, não a água - excepto no tempo das cheias! Todo o vale, até onde lhe chegavam os olhos. Pelo poente do cabeço, tinha a estrada nova: quem passava, onde ia, quantos carros em dias de engarrafamentos? Sempre que as ovelhas do tio Juvenal ali vinham pastar, a razão para trepar a encosta, redobrava. Hoje não, não quer tornar às feridas de tal sítio.

Vamos então delimitar num triângulo: o Zeca Raio, ou tão-só o Zé das Ovelhas; a Mãe, inquieta com o que se dizia de certos hábitos do moiral; e a Figueira. Será que a árvore ainda lhes sobrevive? Mesmo que lá não esteja, figure como vassalo neste recordatório.

Ouviu chocalhos e campainhas, meteu-se à ladeira. Ia aprender com o Zeca Raio o que mais ninguém admitia ensinar-lhe ou ser por ele questionado. Naquele dia, encontrou o moiral agastado.
Tenho ali uma ovelha a parir,
Tu não me digas, ó Zé,
Vamos lá ver se não dá prò torto,
Porquê?
Ansioso. Nunca vira parir. Saltos do carneiro na Primavera, cobrindo, já não o perturbavam. Como é que haveriam de nascer borregos, sem aquela divertida trepa de macho sobre fêmea. O seu interesse de momento era saber daquele teatro com os humanos? O Zeca Raio não se cortava nas respostas. De experiência.
Que conversas tens tu com o Zé das Ovelhas?, a Mãe.
Coisas sem mal, mãe.

Então já conhecia o mal, nos seus oito anos? E soube esclarecer, sem rodeios, quando a Mãe o interpelou sobre ocorrência de abusos sexuais, ou tentativas, por parte do pastor. Com ele ou com outros…
Não. Nunca! À mínima, já teria avisado. Ficasse a Mãe tranquila.
Ouvira, sim, sobre o sestro do Zeca Raio, sem mais revelar sobre o falatório dos rapazes da escola.

A cabeça da ovelha parturiente, virava-se para os quartos traseiros. Contraía-se. Tinha dores?
Está a cria atravessada, concluía o moiral,
Precisava de meter as mãos. Fosse pedir à mãe uma garrafa de azeite, para untar a natureza do animal! Assim mesmo devia dar o recado.

 Frente à mãe, não se sentia à vontade. Atabalhoando: o mal-estar da ovelha, o Zeca Raio a pedir azeite…Para untar…
Rispidez materna. Já bastava de explicações. A Mãe iria ao Cabeço ver o que se passava. Não saísse ele de casa, até ela voltar, que o irmão dormia a sesta.
Aprestou o azeite, vertendo da almotolia uma porção num púcaro, e foi-se encosta acima.
Não costumava desobedecer, portanto não o levou a curiosidade para além do tanque. Dali ainda ouviria o irmão acordar. Esperou bastante, bastante lhe pareceu.


Até que voltou a Mãe de mangas arregaçadas, as mãos viscosas, ensanguentadas. Ensaboou-se enérgica, e mandou-o ir à cozinha por pano limpo.

 O borrego estava morto. Tinha de ir levar uma enxada, para que o pastor o enterrasse. Não demorasse por lá, nada mais havia para ver.

 
Custou-lhe subir a encosta devido ao peso da enxada.


Quando o pastor deu a primeira enxadada, a ovelha, afrouxada a vigilância, teimava em vir lamber o borreguinho e mordiscar aquilo. Aquilo tinha nome?
Segundinas, acrescentou o Zeca Raio.
Secundinas, confirmaria o Pai ao saber do caso

Silêncio, enquanto o moiral cavava. Silêncio quando, com a enxada, arrastava o corpo e a outra coisa para o fundo do buraco. Só os balidos da ovelha. Tristeza de morte, em gente, já ele sabia o que era.

Toda a terra reposta, o Zeca Raio cortou a canivete um ramo de figueira, fendeu-lhe a extremidade e enfiou-o a fundo a meio da cova.
Vamos lá ver se…
Se o quê, Zé?

No ano seguinte, quando as ovelhas voltaram ao pasto do Cabeço, Zeca Raio engendrou uma vedação, para proteger a folhagem do ramo. Íamos ter uma nova figueira. Um tanto desalinhada das parceiras, a árvore foi fazendo pela vida. “Ai ca raio!”

********
Juntem-se agora a esta história uns puxados quarenta anos. Regresso. Não me perguntem por favor o que, entretanto, fizeram às outras árvores da vizinhança. Na altura, parecia não haver melhor solução, mais tarde até o Pai se arrependeu da mudança que o Cabeço levara.

Como crescera a figueira! Primeiro ainda afastada do caminho de pé-posto, calcorreado por passantes no carrego de água, ou passageiros da carreira do Alto dos Anjos. Depois, a rua mais larga e asfaltada, aproximou árvore e frutos dos transeuntes.

Com o tempo, nem a Mãe se lembrava da origem daquela árvore. Recuou até ao caso do borrego nado morto, repetindo o dito do Zeca Raio: era uma figueira parida por uma ovelha!
O Zeca Raio? Não, ele não sabia nada sobre o antigo moiral.
E a mãe disse:
Enforcou-se há uns anos.
Ponto final

Mas o que a preocupava, além da solidão dos velhos, era a desfaçatez de quem passava pela agora rua de Santa Catarina e, tendo ali tanto figuinho pendente, não se coibia de ir tirando os mais apetitosos. Com que direito? Era roubo. Mais: aquela era a única figueira do Cabeço, onde ela, a Mãe, podia colher. A quem iria pedi-los, se para ela e para os seus nada sobejasse daquele constante cardanho? Tanta fartura e diversidade de fruta noutros tempos.

Por isso lhe pediu ela:
Fazes-me um letreiro?
Um letreiro, Mãe?...
Sim. Que denunciasse o atrevimento de quem passava e fazia mão-baixa, ou melhor, mão-alta sobre os ramos.
Calou-se, sem vontade de se meter em tal pendência.
Não queres? Faço eu!
Decidiu e executou.

Ela: Aqui tens, vais lá pendurar este letreiro…
?...
Ah também não?! Pois não fica por pendurar.
E coxeou pela encosta.
Com um pedaço de cartão de uma caixa de sapatos, escrito a negro de brasa apagada, foi engravatar a Figueira – “Na comão os figos Dêchem alguns prá dona. E voltou senhora de si.

Enterrando, agora o assunto: pudesse ele apartar a muralha do tempo, para:
Leia, Mãe, este segundo letreiro.


Rio de Mouro, Abril 2013

domingo, 10 de março de 2013

Outra vez o império da loucura?

Juncker: «Os demónios de uma guerra europeia estão apenas a dormir»

Não é a primeira vez que nos chegam estas más novas da nossa Europa. Será que a estupidez ultrapassou novamente a razão?

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Criar é resistir, resistir é criar

Criar é resistir, resistir é criar


Quem me diz que tenho forças para ir à manif de sábado  2  de Março? Talvez o respeito pelas lições do senhor Stéphane Hessel me empurre do meu comodismo, na esperança de ali encontrar a força criadora dos jovens.
http://www.liberation.fr/societe/2013/02/27/stephane-hessel-est-mort_884958

domingo, 30 de dezembro de 2012

Esquece, pá!

Curta e inconsistente foi a conversa com o Domingos. Não mostrou a mínima satisfação, por lhe ter ligado, a desejar um Bom Ano, antes parecia aguardar o fim da chamada.
Queixou-se de velhice e desesperança, mais a crise, o roubo nas pensões de reforma. Mais as artroses, o mau funcionamento geral do serviço de saúde, e de todas as   vísceras...Ai! Ai! Ai!

Vamos encontrar um tema de conversa nas rapaziadas de outros tempos? arriscava eu. Balde de água fria: não se lembra,   nem se quer lembrar, de tais antanhos!
-Ó Felício, não contem com a minha memória para nada. Só nevoeiro...

Sabia lá com se chamava o cabreiro! O cabreiro? Que eu perdia tempo com cada coisa. Um cabreiro dos Santos?! Quase há sessenta anos?
-Na sê, pá!
Um que, a Vale de Lobos, atalhava com o rebanho, pela Besteira. A caminho da feira. Paragem obrigatória na nossa taberna.  Franqueava o farnel pelos presentes: bom queijo, puxando à pinga. Não nos coibíamos  de  avançar com o pão, para promover a venda de uns tintos.   E ainda levar o cabreiro a alargar a boca do saco...
-' tá lá?
- 'tou, sim, Felício! Só que se me varreu tudo...Tem dó de mim, não insistas.

Talvez um pormenor te abra a cortina. O teu irmão Rebelana, saboreado o queijo, pedia para se servir dos tetos das cabras. Escolhia-as pela limpeza e volume do amojo, deitava-se no chão, de boca aberta, para sorver o esguicho.  Até fartar. Gabava-se de saber ordenhar todas as fêmeas, mesmo as que muito longe ainda estivessem do aleitamento.
 - Pois. O meu irmão que Deus tem era de apetites...Tinha sempre a goela seca, vinho, aguardente,vinagre, tudo escorria.... Já lá está há vinte anos… Mas olha que até isso se me passou. Cabeça a minha!

A mulher convenceu-o a ir ao médico, pedir medicamentos para a memória. Umas cápsulas... Dinheiro deitado á rua, desistiu. Ao menos poupem-se uns euros.

E das sombras da Guiné, já se teria curado? Pântano atroz, prefiro não  tocar no assunto.

-Cabeça oca, Felício. Não te zangues comigo. Olha: Bom Ano também para ti e família.

E para mim: haverá por aí comprimidos que me curem?
- Esquece, pá - recomenda o Domingos.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Paixão grisalha



Aquele francês levou-me a palma, na tabacaria do hotel. Em Marraquexe.
 Na véspera, tinha perguntado à empregada se me arranjava um livro de Tahar  Ben Jelloun. Que voltasse na manhã seguinte. Teria o livro, ser-lhe-ia fácil mandar vi-lo de uma livraria do centro da Cidade. Tomou nota do título.O autor não era muito procurado pelos turistas, ali no hotel. Mas, se não era excessiva curiosidade da sua parte, a que se devia o meu interesse? Sabia eu que as jovens marroquinas devoravam as suas páginas?
Traziam-lhes a ideia de libertação. Da falocracia de pais, irmãos, maridos, namorados... mas também, da repressão uterina de mães e avós, que não é flor do Jardim das Delícias!
 «Sonham com um companheiro que as ame, deixando-lhes intocável a dignidade que Monsieur Ben Jalloun insufla nas suas personagens femininas. Sabe, só agora a maioria das nossas meninas começa a reclamar  amor para o casamento.»
Muito me ensinava a empregada da tabacaria. Em Portugal, sim sou português, o vizinho do norte, já tudo tinha mudado, neste domínio. As mulheres, no salto de uma geração, ficaram senhoras de si. A virgindade, por exemplo, deixara de ser aquela obsessão... E a rapariga da tabacaria contou-me das mães marroquinas a ter de garantir aos pretendentes genros que o corpo das filhas se mantém igualzinho ao caroço da tâmara... Sorrimos.
E mais não diria eu à jovem da tabacaria, embora não me faltasse vontade, atendendo ao sugestivo esconde-esconde da sua djalaba... Sentiria ela o calor da manhã, por baixo daquela leve drapagem de seda branca?

         Não  lhe explicara ainda o motivo da minha preferência pelo livro do escritor marroquino. Havia pouco a dizer. Apenas lera um artigo dele, num Courier da UNESCO. Precisamente, num número especial, sobre o Amor. Ela também lera. A revista vendia-se na tabacaria. A outra razão, foi ter tido um falso encontro com o livro, numa livraria em Paris. O título seduzira-me do fundo de uma montra. Mas era domingo, a loja estava fechada, e eu tinha mais em que pensar. Bem vistas as coisas, já lá iam dois anos. O livro perdera a novidade. «Ah! mas não se esqueceu mais do título?...» Que bonitos olhos berberes!

         Na manhã seguinte, antes de abandonar o hotel, para o meu circuito turístico de Marraquexe, parei na tabacaria. No entanto, a empregada, agora de coleantes jeans e fresquíssimo top, decepcionou-me. Não pela graciosidade, confirmada pela toilete alternativa, mas por ter vendido o livro a um senhor francês. A um francês?! Não me diga que nos confundiu? De modo nenhum. Se alguma coisa tinha em comum eram os cabelos brancos. Queria ela dizer grisalhos, eu que desculpasse. Por ter ficado sem o livro prometido? Não, por ela ter falado em cabelos brancos. Ora!...

         Fora por um maço de Gauloises, o Francês, topara o livro em cima do balcão, folheara, encantara-se com duas ou três passagens... Em resumo, quase exigira que lho vendesse. Queria voltar ao quarto do hotel, despertar a companheira com a leitura de algumas frases apaixonadas. Então, e só por isso, você deixou ir o livro? É que ele confidenciou estar em verdadeira lua-de-mel, que a sua copine é jovem, sonhadora... Completei para comigo: E o gajo já não tem paleio... Au  revoir, M’moiselle!

         Meia hora depois, encontrei um cinquentão derretido com uma pré-balzaquiana, no hall do hotel. Saboreavam, tête-à tête,  o ‘meu livro’.  Lá estava o título a tentar-me outra vez, como na montra da livraria parisiense. A leitora não era de menor tentação. Ombros esplendorosos. Que inveja não devia fazer à maioria das embiocadas marroquinas.
        
         Praça Jemaa el Fna, duas horas mais tarde. Com toda a sua magia. Mesmo que ficasse aqui o resto dos meus dias, nunca alcançaria o tesouro cultural destas gentes. Deixa lá  os japones gastar quilómetros de filme, desfruta com os sentidos. Contadores de histórias rodeados de garotos, que lhes puxam pela língua; actores de teatro popular, exibidores de cobras e macacos, aguadeiros policromos e estridentes, vendedores de tudo e de nada...

De repente, o calígrafo de escrita voadora. Com seus frascos de henê... Algumas jovens turistas deixavam-se tatuar na fronte, nas mãos... Como as mulheres berberes. Mensagens de desejo, anúncio de coração livre... Aquilo passa, a tinta sai, ao fim de três dias, explicou-me um dos muitos circunstantes, sem parar de mastigar um pau de alcaçuz. E de enxofrar o olho para as clientes do calígrafo. A tinta sai!

Espera aí, mas... aquele é o Francês mais a estátua semovente, que  andam a excitar-se  com o ‘meu livro’...

         Exacto. A jovem também pretendia oferecer-se ao afago do calígrafo. Delirante, sentou-se no banco, à frente do artista. Parece que tinham  combinado lavrar, a henê, uma mensagem, na sua pele apetecível. Ela oferecia o ombro, imóvel, cheia de sol. Redobraram os olhares lazarentos dos machos marroquinos, apertando o círculo.
O artista e o companheiro da jovem procuravam qualquer coisa no livro. No meu livro! Ia o calígrafo copiar palavras de Ben Jelloun?  Evidente. Trato feito, cálamo em voo tangente. Aproximei-me para ler.
Querias! Um dístico em caracteres árabes torneava o ombro da jovem. O que estaria ali escrito? Traduziu-me o mastigador de alcaçuz: … est toujours le dernier.

 Do título do livro de Tahar Ben Jelloun: Le premier amour est toujours le dernier. O livro que eu não conseguira comprar em Paris.
 Andei o resto do dia, em Marraquexe, a ironizar sobre a paixão grisalha do Francês. Depois, apaguei o episódio, durante mais alguns anos... A tinta sai!



 Sem procurar, encontrei, ontem, o livro de Ben Jelloun, na Fnac do Chiado. Afinal era de contos, e não poesia como eu julgava. Agora ou nunca. Antes de me dirigir à caixa, reparei, não estivessem ali o Francês e a sua tatuada copine...
         Comprado! Leio e releio: Le premier amour est toujours le dernier... Et le dernier est toujours rêvé...E último é uma sonho, uma sombra, do primeiro. diria eu.
        
                            Sintra, Novembro de 2000