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sábado, 29 de outubro de 2022

Escrevivências 2.18 A de Arlete

 

 (Continuação)

 Alívio. O gorjeio dos verdelhões, debicando as bagas dos alfenheiros, libertou-o daquele sonho descabelado. Isso: coisa sem-pés-nem-cabeça.

 Disparate!

 Quando é que alguma vez ele recebeu um dicionário, trazido pelo padre que ia dizer missa à capela da Quinta dos Anjos?

 A bicicleta?... 

E que veio ali fazer o Sancho da Quinta do Mocho?

Quantas fábricas e fabriquetas cresceram e faliram nos terrenos daquela quinta.... Nada ficou do primitivo espaço agrícola.

 Que noite! 

Embora, de facto, tenha faltado ao concerto…E por isso devia uma justificação à A... 

Cinquenta anos mais tarde, na Academia das Ciências. Coros de Natal. Impedimento de última hora. Cancelou-lhe a ida.

«Grd desgosto, qda A. Morreu William, dps conto», acabou por lhe enviar em SMS. Certo de que ela, a preparar-se para a atuação, já não tinha podido atender o telemóvel

 ***

Deitou mãos à enxada para a inadiável tarefa. Ainda não  fora das suas forças, a calcular pelo procedimento das outras vezes.

 Ali, mais palmo menos côvado, ao fundo do quintal, enterrava amigos muito especiais. Junto à sebe dos alfenheiros.

 A Neige que mudara a família para aquela casa, por sugestão do Artur. 

O Pantufa, tirado de uma série infantil e da primeira ninhada da NeigeTinha um gémeo, levado para a Besteira. 

O Camarada, perdigueiro dos tempos da Revolução… Do reboliço! 

Depois, nos chochos anos oitenta, o Yuppie, emproado, com farfalhuda gravata castanha. De quem o enfezado Idée fixe fazia gato-sapato, …

Sherpa… o Mogli... Nomes dados pelos filhos, então  escoteiros.

 Quase quarenta anos, de vida e de cães naquela casa.

 Nota marginal: o gémeo do Pantufa, de que nunca se conheceu  nome nem apelido, acabaria por desaparecer nos matos da Quinta dos Anjos. Ainda é possível falar com  uma testemunha de tal facto.

 O anonimato do bicho resultava de uma disputa entre o casal dos velhotes que o acolheram. Ela, que ficasse Dragão! Ele, não, Ferrari!… Levaram-se de razões. Sem se dar por chamado, o cachorro virou-lhes as costas. Na pegada de um empregado da Quinta. Tratador de cavalos, freguês diário da taberna da Besteira.

 Ali, debaixo dos alfenheiros, há quinze anos, abrira cova para o Mogli

Movido por um estertor libertário, saltara o muro do quintal e teria lesionado o fígado, contra o empedrado do passeio. Opinou então o veterinário…

Poucas semanas depois, trouxeram o William.

 Bonito cachorro, cor de mel, cruzado: “serra da estrela”, outro tanto de “pastor alemão”. Inteligente, atento a qualquer sinal. Em adulto, a mestiçagem tornou-o atraente para os passantes da rua. Davam-se ao trabalho, os entendidos, de discriminar características de uma e outra raça, tão evidentes na estatura, fisionomia e pelagem. 

D. Maria, a velha empregada, repetia que o animal tinha, além de uma boa figura, maneiras distintas.

 Perfeitamente capaz de cumprir, à risca, o encargo que ela lhe deixava, com uma guloseima, acabado o serviço diário: «Faça favor de guardar as coisas dos donos».

William era sobretudo o cão da avó que o repartia, para umas festinhas, com as netas. «Os cães também são gente, meninas! »E agora, como vão elas aceitar que o animal chegou ao fim? Ainda bem que não assistiram à agonia.

Abrir-lhe cova revelou-se muito mais difícil do que para qualquer dos outros. Ai o tempo! Foi preciso cortar, à machada, inúmeras raízes de alfenheiro, engrossadas por década e meia de vida do William. Tão intrincadas como as voltas deste texto.

 Entretanto, chegara, por correio eletrónico, a resposta à mensagem:

 “Não tens que pedir desculpa. Lamento o motivo que vos impediu de ir. Foi um bom concerto. O salão estava cheio.
Em relação ao William, com certeza que morreu feliz, visto que em vida foi muito amado pelos seus donos.

Um abraço
           Arlete”.


 

  

 

domingo, 23 de outubro de 2022

Escrevivências 2. 17 O dicionário de grego


 

Pedala com velocidade, segurança e juventude. Reconhece o espaço: terra batida, lisa, bermas bem drenadas. Sem ervas nem lixo. 

Regressa: ao fundo, o portão. Pouco lhe falta para sair da Quinta.

 Preocupa-o a bagagem. Aquela encadernação luxuosa vai mal atada ao suporte da bicicleta. Poderia ter vindo a pé, trazido a pasta de cabedal. Nela acondicionaria  o dicionário, sem se preocupar com a integridade do calhamaço. Pára. Ajusta molas e corda ao bojo do livro, evitando a mínima beliscadura.

É preciso passar por casa da A…Onde mora ela ?Hoje. Ontem….Há quantas décadas? Era por  ali!

***

Extravio ou estrago do livro tinham de ser assumidos, a dinheiro. Sublinhara o padre, ao entregar-lho. Não se esquecera de que o ciclista tinha exame de Grego na terça-feira seguinte.    

    Não ficava para a missa?

E por que havia de ficar? Fora ali pelo dicionário, sem qualquer compromisso  religioso. Conforme esclarecera ao fazer o pedido de empréstimo no Seminário.

Seria talvez o único dicionário de grego-francês-grego, na Cidade. A menos que no liceu…

Não, não havia lá nenhum exemplar. A biblioteca era pobre.

   -Mais uma razão para teres cuidado… E vires regularmente à missa!

Sentiu o rubor. Faltaram-lhe as palavras. Salvou-o o sorriso do interlocutor:

  -Até domingo. Assim que o exame terminar, vais logo fazer a devolução à biblioteca do Seminário. Mantém-te calmo durante a prova...

Simpatia.

***

 

Teria sido a última vez que esteve na Quinta dos Anjos.

Recusou todas as outras oportunidades de lá voltar, ao longo de décadas. Mesmo quando, nos anos noventa, o Cunha do Retiro dos Vencidos o apresentou ao guarda da Quinta.

Gostaria de tirar fotografias às casas? Às árvores Sobretudo ao prédio!

Que entrasse sem problemas, bastava mencionar quem o autorizara.


Na manhã seguinte, pegou na máquina e subiu pela ladeira do Cabeço. Sentou-se ao portão. Desta vez, não à espera do autocarro para o Liceu.

No  mesmo sítio onde o Sanchinho…Que seria feito dele?

Desculpa , Sancho. Tem paciência! Não tens vergonha?


Pôs-se a deitar contas à vida. Ao tempo, à alegria breve dos desejos.

De onde lhe chegava John Lennon: Starting Over   ?

Subitamente, sentiu-se liberto da tentação de fazer aquela visita de fotógrafo. Não! Nunca, nunca mais, entraria na Quinta!


Quem é que se lembra hoje do Sanchinho?

Vagamundo das noites . Das noites pouco imaginosas e fartas em vinho. Aliás,do menino D. Sanchinho da Quinta do Mocho. De mão estendida, à saída da missa, na Quinta dos Anjos?  Costela de Fidalgo....   Farpela de pedinte. 

Profetizava a  desgraça dos poderosos. A seca e fogo de pinhais , vinhas e olivedos...

Lembrando aos devotos que rezassem pela alma dos que tinham sido mobilizados  para Angola. Que a guerra estava para durar. Não se deixassem ir em conversas.

Sanchinho louco!

***

Guiou a bicicleta até à casa da A...

Devia-lhe uma justificação, por não ter podido ir ao concerto de Natal. Sempre lhe agradara a simpatia da…

Da Arlete! Isso mesmo! Recordou-se do nome da lourinha, colega da primária.

Em sonhos sempre lhe fugiram os nomes dos figurantes. Sombras recorrentes, mas sempre anónimas!

 E tanto que ele prezava aquele convite da antiga coleguinha. Agora membro de um coro numa igreja de Lisboa.  

Impossível ir. 

(Continua)

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

O CASAMENTO DA NETA

 Isto vai ser um acréscimo  à Escrevivência 16. Para me libertar das sombras do trisa Emídio, sempre apoiado no que ouvi ao meu pai. No seu testemunho de menino, nos recontos que lhe repisaram.

Comecemos pelo casamento da nossa tia-avó Piedade. 

Francisco Hipólito levaria, um sábado,  a filha ao altar, como já tinha   acompanhado a Gertrudes  e a Otília. Ou sejam, as minhas avós materna e paterna. Confiara  a Gertrudes ao Joaquim Marona e a Otília ao António Henriques Beja, um Caréu.

 Piedade casou com João Pena. Oficialmente nesse  sábado.

 Mas as coisas não foram assim  tão simples... !

Estavam de serviço os funcionários do Registo Civil. Pontuais e zelosos no cumprimento republicano das novas incumbências de anotar quem nasceu, se consorciou, desquitou... Ou viajou para a terra do Nada. Porém o Padre...

 Pela Quinta dos Pinheiros, aguardava-se o regresso dos noivos. Aprontava-se a boda. 

Algazarra!

O  rapazio,  postado de sentinela no entroncamento com o macadame, avistara as carroças do lado de Santarém. Irrompeu pela azinhaga abaixo até ao casal do tio Francisco Hipólito. 

- Já aí vêm! Estão a chegar!

- Estão, quase , ti' Emídio!

Serpa Pinto ficara a cuidar das suas ervas . Na certeza de que a neta viria abraçá-lo, mal saltasse do estribo da carroça.  

Piedade ocupara-se sempre do avô. Ia procurá-lo à horta. onde o velho perdia horas em bravatas com os Antigos... E quem eram eles, os Antigos? «Gente que tu já não conheceste, filha!» Acompanhava-o, em garota, para além do valado do casal. Com ele aprendera das ervas e dos pássaros. 

Entraram no pátio as carroças com os noivos.  E ficou no ar a pergunta: Por que vieram com tanta antecedência?

Os noivos sorridentes, abraçados ao Avô Emídio. Palmas! Corrupio para a casa do forno.  As coisas estavam atrasadas. Fosse porque fosse, tinham chegado mais cedo.  

Bem, a mesa já estava posta, à sombra das figueiras.

- Vivam  os noivos! Confeitos! Confeitos!  - berravam rapazes e raparigas. 

Tinha ali "parido a galega"!

E confeitos não lhes faltaram. arremessados às mancheias, para o chão. Que se arrepelassem na disputa da colheita. Até no meio dos bonicos.

Ah! Mas não vamos falar dos comes-e-bebes nem de cantorias, dichotes, vivas e pulhas. Ouçam a música e envolvam o pé  no baile. 

Que até o Avô Emídio deixou o arrocho em que se apoiava, para ir  buscar a noiva. Festa é festa! «Arrebenta aqui a nossa alegria!», berrava uma velhota. 

- Mas o que tens tu rapariga?

- Já vai ver, Avô. 

Não demorou muito a saber-se.

A porta da igreja estava fechada. E  pelo sacristão chegara o recado do padre. Teriam de voltar no ia seguinte e assistir primeiro à missa. Não era isso o combinado!

Ora aqui começava o desentendimento na família Hipólito. O pai repetia que já estavam casados. A Lei! Clareza republicana, asseverava Francisco Hipólito.

 Lei é Lei! Altar é Altar! Não dormiriam juntos, sem a bênção  do Senhor, garantia a mãe da noiva!...

«Isso é o que se vai ver!...», num entredentes do Avô. 

A maioria das vozes apoiava a posição da mãe. Tinham tempo para ir para a cama! A partir do dia seguinte!
    João Pena dava murros de raiva numa parede. Não!
    Piedade, aos soluços, repetia: Não!

E a festa chegava ao fim. A noiva ficaria por  ali, o noivo sairia com os pais. Caso arrumado!

 -Precisas de acalmar, rapaz! Dá cá mais um abraço!
O Avô já arranjara  pretexto para a combina.

A noite desceu sobre  árvores e casas. 
Serpa Pinto ficou no seu banco do costume. Tinha de se encontrar  com as estrelas. De ouvir os noitibós, a coruja e os mochos na escuridão do pinhal da Quinta dos Anjos... 
Esperou.  Ouvia a neta soluçar.

 A casa sossegava. O avô levantou-se.

Na cozinha.
O que fazia ali, perguntou a filha.
Então não estava à vista que fazia um farnelito para a deita? Fossem descansar em paz.  Não lhes  bastava o  desgosto da Piedade?! Só porque o padre roera a corda...

Passou pela adega, deu a volta à casa e entrou na sobeira do seu quarto...
Diziam que passou a noite na tarimba do palheiro. Onde o noivo, noite pesada, se foi encontrar com ele. 
-A Piedade está à  tua espera no meu quarto.  Deixei lá uns preparos .
Uma infusa de água fresca, toalhas... Umas merendeiras com carne... Uma botija de vinho. --Noite feliz, filhos!

     Júlia mal pregou olho. Cedo se apercebeu de que a filha não estava no quarto.

     - Como passaste a noite, minha desavergonhada?
    - Como, minha mãe ?   A desarrumar  as ervas  do Avô!!!

Quando o ervanário voltou ao seu quarto, não queria acreditar na barafunda. Como é que aqueles patifórios lhe tinham conseguido derrubar a prateleira das ervas?
Ora... Que o Destino lhes corresse de feição!

O ervanário repôs em ordem as suas riquezas:
... cidreira, tília, pimenteiras,  poejos ...
 O meu pai alongava sempre a lista do avô Emídio; agrimónia, urgebão, losna...

Mais não sei! Cuidado com as ervas!

 Rio de Mouro, 24 de agosto de 2022

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Escrevivênvias 2.16 Um ervanario vadio, sota na Quinta dos Anjos


 

Pois, Carlos, não se fala mais desse verde dossel de atalantes, o Pinheiro da Júlia Boleeira. De acordo, ficou uma clareira no céu. Mas acabou: nem uma lágrima! Seja pinheiro ou leite derramado.
Vamo-nos então em buscas de ervas humildes, simples, como lhe chamavam os mestres da arte de com elas coloquiar. E não me limito a insignes doutores botânicos.
Da humilíssima erva-buinha, que fazia a Rosa do Ginja invetivar uma hipotética mãe desnaturada: «Deixaste morrer o teu menino com lua/ e tinhas erva-buinha a crescer na tua rua…» Tratar-se-ia da tasneirinha, Senecio vulgaris?
 E saber, se já não tenho a quem perguntar, quando os documentos não me respondem? 
Também sobre a doença da lua não conto com fiável informante. Adultos aluados? Burros e burras? Esclarecidos estamos... Mas bebés definhando com lua?… Pudesse eu consultar por email o meu trisavô Emídio… Que há de ser o tema enviesado de hoje, se … lá chegar.
 Ou partamos em busca do chucha-mel, a que a minha mãe, pragmática sabedora de mezinhas, sem rezas, dava o nome de seca-ossos
Chucha-mel, ou chupa-mel? Dizíamos nós, não era Rebelana? Quando dela espremíamos, flor a flor, uma gotícula de néctar. 
Não penses que não me deu trabalho identificar esta ripícola das nossas valinhas. Aqui t’a deixo: escrofulária-nodosa
Nem mais! Quebrar o viço das folhas frescas, a uma chama viva, e colocar sobre a ferida. Vulnerária. Cuidado com estas memórias tardias. Sobretudo, não me responsabilizo por experiências medicinais.
A arnica?
 Era vê-la salpicar de amarelo os matos do pinhal da Quinta dos Anjos. Também não confirmo nem desminto. Disseram-me.
 Tojo, rosmaninho, tomilho, pelo menos três variedades de cistus ( purpureus, hybridus  e a aromática ladaniferus, isto é a esteva) recordo vividamente. Arnica, não excluo. 
Insistia Fernando Belchior que as estevas tinham ali chegado pela mão do seu pai, trazidas minúsculas sementes, dos lados de Alcanede. De facto, só existiam mesmo no Alto dos Anjos, dentro e fora da Quinta.
Ervas que saravam. 
As mulheres aprendiam a distingui-las nas mondas e ceifas e assim lhe iam interiorizando as virtudes. Sem esquecerem a arruda, que se dava bem nas encostas incultas das Lobas.
Porque os granjeios levavam imparavelmente ao sumiço das espécies. Daí todo o cuidado em localizá-las e colhê-las. Nas matas das quintas, na beira de azinhagas e serventias, na Linha de Água, nos combros da Vala de Cabanos… 
Com a mecanização, a química agrícola, o betão e o alcatroamento foi o fim.
 Olha-me agora para eles a falar em salvaguarda da biodiversidade. ‘tá bem, abelha!
Alguns homens também se tomavam por ervanários. Os ferradores, os alveitares, os boieiros e pastores… 
Mais exato: o meu trisavô Emídio, por alcunha o Serpa Pinto e o meu tio Joaquim Marona. Cada um no seu estilo, veremos.
Em carta de Setembro de 1874, datada de Vale de Lobos[i], o nosso antepassado vizinho, Alexandre Herculano refere a recolha das ervas medicinais como tarefa de subsistência, confiada a rapazotes, da família assalariada rural.
 Barrão entre barrões, infatigável na modernização da sua quinta, ainda lhe restava tempo para voltar a refletir sobre política socioeconómica, desde a época revolucionária de 32-34. No horizonte, esperavam-no apenas mais três  anos de vida. Herculano fazia o balanço final.
Quando eu frequentava a Escola da Portela, oitenta anos após estas cartas de Herculano, muitas das suas observações eram ainda localmente pertinentes. Leia-se a nota final.
Rapazes iam pelos campos na coleta de espécies medicinais. Uma tarde, Coquelim saiu mais cedo do seu primeiro emprego, na ervanária da Viúva Costa Carneiro, para vir indagar, junto da minha mãe, onde encontrar o fel-da-terra, a fim de suprir uma falta na loja. 
De outra vez, Maria Colaço interrompeu a brincadeira do filho, António, o Bisoiro, para que ele lhe fosse às Lobas, por um molho de arruda. 
Que lhe regularia o seu calendário íntimo? Ou porque estava faltando na mistura das defumações? [……]
 ***
Desse modo o meu antepassado Serpa Pinto teria adquirido formação de base e  mestria com as quais, até fechar os olhos, terá zelado pela saúde da vizinhança. À falta de melhor, pois claro. Ficou por esclarecer que ligação teria tido com o Doutor Oliveira Feijão, o senhor da Mafarra.
Trata-se então do meu trisavô Emídio da Silva (1840-d.1919). A sua filha Júlia foi a terceira mulher do meu bisavô Francisco Hipólito e com ele teve a minha avó Otília e a tia-avó Piedade. Além de lhe ter criado também a minha avó Gertrudes, orfã do segundo casamento.   

Este trisa Emídio chegou muito tardiamente ao meu conhecimento. Já por finais dos anos oitenta. Quem era a pessoa mais antiga da família, na lembrança dos meus pais? O seu bisavô Emídio, adiantou o meu pai.
  Emídio da Silva servira até muito tarde, como sota, na Quinta dos Anjos. Sota era posto na hierarquia de boieiro. Logo abaixo do maioral, o responsável pelo trato e labor do gado. Só recentemente, com a Maria Alzira aprendi um pouco mais sobre tal personagem. Que a nossa amiga dá como chegado ao cargo de abegão.
 Vinha-lhe a alcunha do hábito de, à primeira maleita de pessoa ou animal, virar costas, muitas vezes sem dizer água vai, e perder-se tempos infinitos na busca de ervas curativas. Alguém, lido em notícias das explorações africanas do major Alexandre Serpa Pinto, viu, naquelas andanças estouvadas do boieiro, coisa semelhante a Como eu atravessei África do Atlântico ao Mar Indico, viagem de Benguela à contra-costa…
Meu pai representava-o muito tropeço, em constante volteio pela Quinta dos Pinheiros e Quinta dos Anjos movido pela preocupação de se fornecer de ervas. Selecionava, secava, emolhava e sempre ia vendendo, para os últimos copitos. Escorropichados na taberna de uma irmã, estabelecida onde depois se veio a instalar a mercearia do Melro. 
Guardava as suas medicinas penduradas nas paredes e no teto do quartito que o genro lhe reservara. E garantia que ali eram tão boas ou melhores que na botica. 
Moravam na Quinta dos Pinheiros, no foro onde depois foi o “Bairro Azul”.
Não me alongo mais sobre  meu avô Serpa Pinto. Voltarei, prometo.


[i] “No actual estado de cousas, o ensino obrigatorio não passa de mais um flagello para a pobre familia obreira, que lhe opporá constantemente uma resistencia passiva, mas invencivel. Afigura-se-me que toca as raias da crueldade dizer—«manda á escola teus filhos»—ao homem que habitualmente dorme vestido na esteira de tabúa, na casa de telha vã, onde, se géa, tiritam de frio elle, a mulher e os filhos, porque a roupa falta; que, se chove, não tem fato para mudar, e ás vezes nem sequer lenha para o enxugar; cuja alimentação é de ordinario ruim, quando não insufficiente; e que, como se isto não bastasse, sente com frequencia apertar-se-lhe o coração ao dizer-lhe o lavrador, no sabbado: «Para a semana não ha que fazer.»
 D’esses filhos que lhe pedem para a escola, um, dois, os mais velhos, são pastores ou ajudas; sustenta-os, dá-lhes agasalho o lavrador, e os seus pequenos salarios mais de uma vez vão supprir esta ou aquella falta urgente da familia: outro leva a comida ao pai, que trabalha a um ou dois kilometros de distancia, o que facilita á mãi exercer algum mister retribuido: os de seis a nove ou dez annos discorrem descalços pelas estradas ajunctando nas pequenas cestas os excretos que na vespera ahi deixou o transito dos animaes, miseravel industria, que, todavia, no fim do anno produz o valor de alguns cruzados, que resolvem uma ou mais difficuldades da dura vida do obreiro: outro, pouco maior, vai á fonte, á lenha, ao recado; chamam-no para guardar aves domesticas, para colher ervas ou flores medicinaes, para afugentar os passaros que damnam os fructos ou as searas, para dez ou para vinte serviços analogos.
 
 E todos esses serviços tem uma retribuição, que se incorpora nos recursos da familia e lhe cerceia o numero das privações. É humano, é justo; digo mais, é moral aggravar a miseria do trabalhador, tornar mais escura a noite do seu viver em nome da luz interior? Bem desejaria eu tambem tecer a minha olympica á escola obrigatoria: as phrases, os periodos, as estrophes andam já vasadas em fôrmas: basta haver novidade na invenção das suturas. Veda-m’o a consciencia. Esperarei que ou a escola se ageite a estas condições da familia obreira, o que vejo longe, ou que, melhorada a situação d’essa familia, a escola deixe de significar para ella um intoleravel imposto.”
 In The Project Gutenberg EBook of Opúsculos por Alexandre Herculano – Tomo IV by Alexandre Herculano, http://www.gutenberg.org/cache/epub/17177/pg17177.html
25 novembro 2010

segunda-feira, 23 de maio de 2022

BIBLIAMBULE

 Bibliambule 1

A questão:

 Será que os carrinhos-de -compras contam estórias?

 Vejamos...Aceitei o desafio, John! Serei capaz de dar conta do recado? 

Voz ao carrinho!

***

 A madrinha. Foi no Porto que a Gui disse.

Já não seria o Rodas nem Rodinhas... tampouco Charriot ou Camionette! Seria a Bibliambule!

Dos porquês da mudança nada sei.

Gui levara-me no Alfa, carregando  livros.....

***

Até ali, enquanto me usaram na Fraternal da Achada, cumpri em todas as atividades  durante anos. Carregador, na minha indiscutível condição. Carrinho de compras.

"Alombei", como dizia o Maça, com os mais diversos materiais. 

Apoiei nas mais diferentes tarefas. Começando pela instalação no novo espaço da Associação. Usaram-me na arrumação do espólio do Patrono.

Usaram-me na  Biblioteca. Fui prestável ao Coro . Ajudei na  montagem de exposições, nas sessões de Cinema e Teatro, nos debates e palestras...

Desculpem a vaidade de dizer que até entrei  numa das representações. Encenada pela Gui. Como adereço, está claro!

Desloquei trastes e bugigangas, por ocasião das feiras de velharias. Ali mesmo, ao ar-livre, no Largo da Achada.

Trouxe do supermercado viveres para  as confraternizações.

 

Muito se divertia o Angel nos passeios de S Cristóvão  à Baixa... Ele, com uma indumentária de palhaço, umas orelhas de elefante, peitorais e  dorsais...   Incansável painel publicitário  do muito que se fazia e faz na nossa Associação.

 Ouvi falar de Resistência, de Abril em festa, de Abril em Maio... Sem perceber muito  do assunto.

Havia sempre um modo de as minhas rodas e o meu saco ajudarem na construção dos dias. 

Repetidamente, também ouvi por lá da necessidade de construir e dar um novo sentido aos dias. 

***

Foi no Porto, repito, que a Gui, me mostrou uma nova maneira de servir a Fraternal da Achada.

Até o JN nos deu honra de fotografia e desenvolvido artigo. 

Gui desafiava os passantes, nos Aliados, a tirarem um livro do meu saco. Escolhessem, a gosto... 

E agora? 

- Pois agora vamos ler e dar vida ao texto.... 

Era a Gui no seu melhor.   Ler a meias: moitié-moitié ! Dramatizar. Improvisar texto.

Moitié-moitié?! Olha! Só agora me lembrei de dizer que a madrinha pensava em francês. 

Nascida em França, filha de emigrantes portugueses,  radicada em  Bruxelas. Fluenciava nas duas línguas. 

Visitava várias vezes por ano a Achada. Era só sentir a falta dos amigos, logo se punha a caminho. Sempre recebida em festa!

Foi no regresso do Porto. A Gui anunciou aos amigos:

- Vamos ter duas bibliambules!

Eu, que ficaria em reserva na Fraternal…

E uma outra?

A Gui já tinha em vista uma  nova companheira de rua ....  Para continuar os desafios aos transeuntes. Em Bruxelas: 

A Bibliambule 2!! 

Já pedira o risco a um designer seu amigo.

Tal decisão em nada me afetou. Pudesse a minha sucessora ser lá tão prestável, como diziam que eu era aqui.


(Continua)

quarta-feira, 18 de maio de 2022

ESCREVIV. 2.15 Branca e Alice, no alto dos Anjos

 Só atentos à realidade, poderemos ser surpreendidos pela fantasia.

 Como eu queria que esta parlenga trouxesse aqui, ao portão da Quinta dos Anjos, os poderes de três magos. A quem  crianças como vocês -Marta, Sofia ,Tiago...Álvaro, Pedro   - tanto devem. Já sem falar  dos que, antes e depois deles, temperaram tal  magia.

***

Agora,  voltando à  Portela e arredores. Sabem os meus leitores, se os tenho e se me assiste o direito de os incomodar com perguntas, quem foi o primeiro leiteiro-à-porta lá/cá do sítio?

 Esse mesmo, velhotes!

 Adílio Henriques, filho do cesteiro ti’ Manuel da Susana e da ti’ Maria Águeda.

Tinha ela, sim senhores, olhos de aço polido. Por injustiça e ignorância, assustadas mães lhe esquivavam as crianças de colo, não fosse a velha dar-lhes quebranto. Carcaça sofrida. Tuberculose, sanatório, morte de descendentes… cercaram-na de dramas. 

Teve ainda de assistir, noutros palcos, a chufas e dichotes:«Ai que estojo!!!». 

Farsas do acasalamento. Outros quebrantos, pois até no melhor pano… 

Ora, uma tarde, apareceu em minha casa, sem aviso prévio, o Adílio. Bata branca, bilha e caixa das medidas refulgindo higiene. Sorria garantias de qualidade. Futuramente seria ele a fornecer o leite, vendedor da Cooperativa. Interessados? À primeira vezada, tratava-se apenas de prospeção do mercado.

A bilha, vazia, falava por si. Querendo-se confirmar, bastava tirar a tampa e abrir a caixa das medidas. Tudo alumínio de primeira e  respetivas aferições. Tanto lustre por dentro como por fora. Coisa rigorosa. 

A partir do dia seguinte, todas as bilhas sairiam seladas da Cooperativa. Onde é que já alguma vez se tinha visto uma coisa assim?

Nem a ti’ Luísa Caréu da Quinta dos Anjos que, até então, assegurara uma venda  satisfatória. Secas que fossem as tetas do Gana ou do João Hipólito, salvo seja. Das suas vacas, está claro!!!!

A seu tempo se falará destes dois fornecedores sazonais. 

Já chega para atestar que, antes da Cooperativa, quem queria beber ou dar a beber leite fresco, tinha de se deslocar à fonte do dito. E por vezes voltar a casa com a vasilha vazia.

 Então e os magos  ? Tenham paciência, que a patranha demora, como dizia o meu amigo Joaquim Ferrador, enredado em histórias de caça.

O leite, para mim, «podia correr por uma telha», parecer da minha mãe. Para em cada manhã me deliciar com uma tigelada de sopas, salpicadas com café de mistura. Mesmo que se tratasse de leite gordo e enjoativo das ovelhas da minha avó Marona. Por uma telha!

 Levei anos até compreender os inconvenientes deste mata-bicho.

Quanto ao meu irmão, desde muito cedo que ficou dependente de leite artificial, passando posteriormente ao  de vaca, destemperado com água.

Daí que quando a Palmira foi servir para casa da minha avó incumbiram-na de ir, todas as tardes à Quinta dos Anjos, aviar-se do precioso alimento. Eu acompanhava-a, ou melhor, fazia parte do grupo de clientes.

***

 Subíamos ao cabeço dos Anjos, tomávamos o carreiro a que chamam hoje de rua de Santa Catarina. Atravessada a estrada, era só seguir pelo arruamento saibroso da Quinta...

 Perguntavam-me quando é que deixava aquele bibe de xadrezinho. Preto e branco, por luto do meu avô.

Apoiada numa cana, chocolateira de cobre na outra mão, encabeçava a fila, aos solavancos e gemidos, a ti’ Maria Pequena. Avó do Coquelim, tia-avó da Florinda… Chega de mais parentescos por agora.

Velha e coxa. Uma chaga incurável numa canela, abrigava-a, no regresso da quinta, a fazer pausa em casa irmã, a ti’ Júlia Boleeira. Para lhe fazer o penso.

Quando a Palmira deixou de trabalhar em casa da minha avó, eu mantive a ida diária à Quinta dos Anjos, agora entregue à Maria Pequena. Garrafa dentro de um saco de retalhos e juízo na cabeça!

Ufff! Nunca mais acabava a volta do leite. Depressa me fartei. Dos constantes lembretes sobre o meu comportamento, dos passinhos curtos da velhota, mais da conversa mole na paragem no sítio da ti’ Boleeira.

O casal era mesmo em frente do portão da Quinta dos Anjos. Evito agora pintá-lo, em verdes, vermelhão do saibro,  alvadio da casa…

Sim, e a charca! A charca das mil navegações, embalado pelo coaxar das rãs, enquanto à volta das espadanas me perseguiam monstros…

 Sosseguem, eram apenas cobras de água que eu avistava da margem, contemplativo entre as estevas. Adiante, para me poupar o coração.

 Só mais uma pincelada, desculpem. 

Sobre toda a propriedade da Júlia Boleeira, distinto de ambas as margens do Tejo, erguia-se o Pinheiro. Manso, rico de ninhos e pinhões. Gigante de harmonia e majestade,  no tronco e na copa. Nunca vi árvore assim entre as da sua espécie. Multissecular, figurava nos mapas.  Cheguei a deitar cálculos: quantas crianças seriam necessárias para, de mãos dadas, lhe abraçarmos aquele espesso tronco? 

Ai de quem se arriscasse  abatê-lo! - dizia-se.

Naquela tarde de Maio, estugávamos o passo, para não sermos apanhados pela trovoada. Eu queria correr, Maria Pequena ralhava-me, entre rezas a Sam Jirolme e Santa Barba. Que podia cair, entornar o leite, cortar-me nos vidros da garrafa. Aquilo eram só trovões! De momento. Íamos conseguir abrigo no casal, antes da chuvada grossa.

***

À justa! «Agora, que Deus a mande… Santa Barba e Sam Jirolme…»

Na sala, que servia de atelier de costura, estava uma menina desconhecida. A Florinda! Mais velha do que  eu. Indiferente aos receios com que a modista, a sua tia Constância, e a avó Júlia escondiam agulhas e tesouras. Não fosse um raio entrar pela casa dentro. 

Florinda folheava cadernetas de cromos.

 Sobre a casa caía um dilúvio, relampejava por todo o vale . Ramalhava ameaçador o grande pinheiro.

 Devido ao súbito escurecimento, acenderam dois candeeiros a petróleo, um dos quais foi colocado sobre a mesa onde a Florinda me começava a identificar os bonecos dos seus livros. Ela já sabia ler. E eu, aos cinco anos começava a sentir vontade de aprender. Quando?

Esquecido do mau tempo, entrei na primeira caderneta de cromos, A Branca de Neve. Inédita e doce ansiedade. 

 Posteriormente, quando a Florinda foi para a escola da Portela, e eu já me aventurava na leitura e nas visitas sozinho ao casal da avó Boleeira, pedi-lhe por empréstimo a caderneta da Branca de Neve. Então, ela avançou outra coleção que, entretanto, concluíra. Alice no País das Maravilhas.

Aqui está a chave dos meus três magos: dois irmãos Grimm mais o Lewis Carroll. Que disseram eles todos sabemos, o que quiseram dizer com aquelas personagens e peripécias,  fica por  nossa conta. Ainda hoje procuro ali significados escondidos.

 Releitor que revisita o local onde abriu pela primeira vez os livros.

***

Apagaram os candeeiros, porque  reclareava a tarde. Nesse caso,  que a Florinda me levasse  a ver os cachorrinhos. Sugeriram as adultas.

 Ela pegou-me pela mão e puxou-me para  o recanto onde a cadela tinha, horas antes, parido a ninhada. Tantos!

Mexer-lhes, nem pensar! Aviso de que a bicha estava sôfrega. Rosnadelas, olhos turvos.  

Dias depois compreendi que, à exceção de um, sempre o primeiro a ser abocanhado pela mãe, todos os outros tinham sido afogados. Pelo criado da avó Boleeira. Na pia dos carneiros e por que não na charca?

***

Era tempo de nos pormos a caminho. 

 A  meio do Cabeço, ouvi pássaros. Sacudidos dos ninhos pelo vento, piavam impotentes na boca de dois gatos que em vão espantei, sem conseguir libertar as vítimas.

Como se não tivessem bastado a trovoada e as maldades da rainha madrasta, a cadela  ameaçadora…

Branca e Alice, no alto dos Anjos. Aqui vo-las deixo.

Tudo soçobrou: pessoas, casas, matos… Terraplanaram a charca. Para construir ali um centro comercial, no ramo dos móveis importados.

Mas o pinheiro? Que lhe fizeram? Quem? 

Se me tivesses telefonado, teríamos cumprido a promessa de nos acorrentarmos ao tronco! Estava combinado, camandro!

  E o Rebelana fechou-se em copas.

 «Então, meu?» ,  gaguejei-lhe com a  faca no peito. 

«Não te disse nada. Não havia nada a fazer. Esquece.»

Tinhas razão, amigo.  Esquecer pode ser a chave.

Contudo nunca esqueci. Branca , Alice e  o Pinheiro.

Aqui tens, Florinda.

Novembro 10, 2010 

 

terça-feira, 10 de maio de 2022

ESCREVIVÊNCIAS 2.14 À unha! De caras

 

À unha! De caras!

O Marino, disposto a dar uma bem-vinda mãozinha escrevivente, nas estórias da Quinta dos Anjos. Instado pelo Alfredo.

Convicto, este, da minha completa ignorância, quanto a um pormenor da vida do Joaquim Caetano.  Meu já declarado amigo de infância e tratorista da Quinta.

Só faltava agora sabermos  tudo sobre a vida dos nossos amigos, meu irmão!


E o Alfredo invetivando-me:

 «Sabes tu, sabes tu de quem é este castelo?»

 Essa não!…Era de outra lenda. Lá para os lados de Barcelos.

 Peço desculpa. Em tempo, se corrige:

 «Sabes tu, como começou a promoção a tratorista do Joaquim Caetano?»

Contorci-me. Em branco, menino! Não sei, não vi, não estava lá.

Nunca, o mano Alfredo deixa sem resposta:  

«Ainda bem que lá não estavas, teria sobrado também uma cornada para ti. Conta lá, Marino!»


*


«Muito antes do Braga, que se arruinou nos amanhos da Quinta das Trigosas, esteve lá o João Caldas. Lembram-se?

Rendeiros.

Mas isso  já eu aduzi, metendo lavoura escrita na Texugueira, empoleirando, no valado da Oliveira Santíssima, a santinha da minha avó Gertrudes. Sem desfazer em mais nenhuma das outras avós do mundo. A berrar pelo neto.

Só que  a tal promoção do Joaquim Caetano dera-se uns anos antes. O mais certo até,  antes de eu ter nascido. Quando?...e o que é que isso importa!

Marino acredita, pela atenção do concílio dos primos, que a curiosidade rebenta.  Estávamos à mesa os netos da avó Otília, do avô António Caréu.

Então foi ele, Marino, com sete/oito anos a ouvir a gritaria da vizinha  Sapata... No sitio do Canto. Aquela nesga de modestas habitações, entre as Trigosas e o Casalinho.

 Que levavam ali, enrolado numas sacas, deitado e desmaiado ou morto, sabia-se lá, um rapaz boieiro do Caldas.   No lastro de um carro de bois. A caminho do hospital. Nunca mais lá há de chegar, se não vierem os bombeiros. 

Entrementes, alguém teria ido por eles, de bicicleta.

*

Joaquim Caetano. Por azedumes. Com um dos bois da junta que lhe fora atribuída. O boieiro recorrendo à aguilhada por dá-cá-aquela-palha, o bicho respondendo tão-só com olhar turvo.

Cada vez mais bistre e sanguíneo. Quem é que sabia ler o olhar de uma animal que até ali fora a pachorra, a moleza da lama,   a todas as vozes de comando. Sem castigo nem ralhos. Sem desconfianças de parte a parte. Ao tirar e pôr a canga ou a soga. Atrelado ao charrueco,   à grade, ao lamego, ao carro. A quatro ou de singelo.  

 À manjedoura nunca o bicho passava sem retribuir cuidados de postura alimentar ou de cardoa,  lambendo as mãos ao tratador.   Boi e boieiro como irmãos. Salvo seja. Até que… E vá-se lá saber a razão. Assim pode começar uma guerra!

 Verão, fim da sesta. A junta de bois remordia, por desfastio, uns ramos de freixo, pelas sombras, na frescura das várzeas da Ribeira Grande. Joaquim Caetano amodorrara um pouco para recobrar forças. Mas,

Ao trabalho! Era preciso voltar a meter os animais ao carro regressar à Quinta dos Anjos.  

Nesse momento. O boieiro teve a certeza: aquele bicho estava a pedi-las!. A coisa tinha de ser tirada a limpo. À unha! De caras!

Contava-se, depois do acidente, que o Caetano, sem se aperceber da gravidade, mudara o nome do animal. Três anos seguidos, Doirado isto, Doirado aquilo. Companheiros de trabalho, jorrando suor para a bolsa do mesmo patrão.  

Mas quando o animal se firmou em desafio. Na Ribeira Grande, já está dito. Bateu-lhe as palmas, o boeiro. Fez peito e saltitou. Eh Boi! 

«Eh Mal-capado!».

 Duplo e feio insulto. Tanto atinge o machorro como o emasculado. Ouvido por boi, nem por isso obriga a perdão ou desconto. Mesmo boi manso, pisado de trabalho. E já esquecido da pancada do malho, com que o do ferrador lhos moera. Pois é, mas tudo tem os seus limites.

É preciso chamar os bois pelos nomes, Joaquim Caetano. E tu devias saber isso desde os tempos de menino, lá em Óbidos. Quando com os da tua idade tocavam as juntas, para dar aos barcos aquilo que areia da praia lhes roubava. Movimento. Muito antes de chegares à Quinta dos Anjos.

Este boi não teria trapio nem cornamenta para ti? Cuidado!

Logo, o bicho se soltou da soga e levantou a cabeça. Ainda te dava uma oportunidade de corrigires. Cerejo, Ramalhete, Doirado, Cabano, Trigueiro, Formoso, Salgado, Castanho … eram nomes de boi. Quem não se lembra? E os bois gostavam de ser chamados pela sua graça. Só que, só que foste longe demais. Repetiste: 

Mal-capado!

Corrida breve para acolher o impacto. A tua última, sem perna desnocada. Vamos … Vai-te a ele. Embarbela-te, homem. Aguenta o derrote. Torce-lhe a cabeça, caraças!

 

Foste sacudido. Marrado, pisado… O Marino até garantiu que mordido! 

Não será fantasia, relato de rapazola de sete anos há-de ter seu fundo de verdade.

 E um remate a preceito: por fim, atirado ao ar!

Caiu o boieiro como uma pedra. Baque!

Tranquilo, o boi regressou aos ramos dos freixos. Por desfastio.

O resto já se sabe. Hospital, milagre dos médicos e das irmãzinhas da enfermaria.

Sobretudo, o bom coração da senhora D. Maria Romana. Insistindo para se conseguir a decisão soberana de João Caldas. Manter o Joaquim Caetano ao serviço da Quinta. Mandando-lhe tirar a carta e comprando um trator. 

A Nação precisava de trigo. E do suor do povo. Mandava o Chefe. 

Olá! O senhor dos Anjos era dele  incondicional

*

Tudo isto estava fora do meu conhecimento, Amigos!

 Obrigado, Marino e Alfredo. Aqui temos um trabalhinho de equipa. 

De facto, tratavam o Joaquim Caetano por Coxo.