Só atentos à realidade, poderemos ser surpreendidos pela
fantasia.
Como eu queria que esta parlenga trouxesse aqui, ao portão da Quinta
dos Anjos, os poderes de três magos. A quem crianças como vocês -Marta, Sofia ,Tiago...Álvaro, Pedro - tanto devem. Já sem falar dos que,
antes e depois deles, temperaram tal magia.
***
Agora, voltando à Portela e arredores. Sabem os meus leitores, se os
tenho e se me assiste o direito de os incomodar com perguntas, quem foi o
primeiro leiteiro-à-porta lá/cá do sítio?
Esse mesmo, velhotes!
Adílio Henriques, filho do cesteiro ti’
Manuel da Susana e da ti’ Maria Águeda.
Tinha ela, sim senhores, olhos de aço polido. Por injustiça e ignorância,
assustadas mães lhe esquivavam as crianças de colo, não fosse a velha dar-lhes
quebranto. Carcaça sofrida. Tuberculose, sanatório, morte de descendentes…
cercaram-na de dramas.
Teve ainda de assistir, noutros palcos, a chufas e
dichotes:«Ai que estojo!!!».
Farsas do acasalamento. Outros quebrantos, pois
até no melhor pano…
Ora, uma tarde, apareceu em minha casa, sem aviso prévio, o Adílio. Bata
branca, bilha e caixa das medidas refulgindo higiene. Sorria garantias de
qualidade. Futuramente seria ele a fornecer o leite, vendedor da Cooperativa.
Interessados? À primeira vezada, tratava-se apenas de prospeção do mercado.
A bilha, vazia, falava por si. Querendo-se confirmar, bastava tirar a tampa
e abrir a caixa das medidas. Tudo alumínio de primeira e respetivas aferições. Tanto lustre por dentro como por fora. Coisa rigorosa.
A partir do dia
seguinte, todas as bilhas sairiam seladas da Cooperativa. Onde é que já alguma
vez se tinha visto uma coisa assim?
Nem a ti’ Luísa Caréu da Quinta dos Anjos que, até então, assegurara
uma venda satisfatória. Secas que fossem as tetas do Gana ou do João
Hipólito, salvo seja. Das suas vacas, está claro!!!!
A seu tempo se falará destes dois fornecedores sazonais.
Já chega para atestar que, antes da Cooperativa, quem queria beber ou dar a
beber leite fresco, tinha de se deslocar à fonte do dito. E por vezes voltar a
casa com a vasilha vazia.
Então e os magos ? Tenham paciência, que a patranha demora, como
dizia o meu amigo Joaquim Ferrador, enredado em histórias de caça.
O leite, para mim, «podia correr por uma telha», parecer da minha mãe. Para
em cada manhã me deliciar com uma tigelada de sopas, salpicadas com café de
mistura. Mesmo que se tratasse de leite gordo e enjoativo das ovelhas da minha
avó Marona. Por uma telha!
Levei anos até compreender os inconvenientes deste
mata-bicho.
Quanto ao meu irmão, desde muito cedo que ficou dependente de leite
artificial, passando posteriormente ao de vaca, destemperado com água.
Daí que quando a Palmira foi servir para casa da minha avó incumbiram-na de
ir, todas as tardes à Quinta dos Anjos, aviar-se do precioso alimento. Eu
acompanhava-a, ou melhor, fazia parte do grupo de clientes.
***
Subíamos ao cabeço
dos Anjos, tomávamos o carreiro a que chamam hoje de rua de Santa Catarina.
Atravessada a estrada, era só seguir pelo arruamento saibroso da Quinta...
Perguntavam-me quando é que deixava aquele bibe de xadrezinho. Preto e branco, por luto
do meu avô.
Apoiada numa cana, chocolateira de cobre na outra mão, encabeçava a
fila, aos solavancos e gemidos, a ti’ Maria Pequena. Avó do Coquelim, tia-avó
da Florinda… Chega de mais parentescos por agora.
Velha e coxa. Uma chaga incurável numa canela, abrigava-a, no regresso da
quinta, a fazer pausa em casa irmã, a ti’ Júlia Boleeira. Para lhe fazer o penso.
Quando a Palmira deixou de trabalhar em casa da minha avó, eu mantive a ida
diária à Quinta dos Anjos, agora entregue à Maria Pequena. Garrafa dentro de um
saco de retalhos e juízo na cabeça!
Ufff! Nunca mais acabava a volta do leite. Depressa me fartei. Dos
constantes lembretes sobre o meu comportamento, dos passinhos curtos da
velhota, mais da conversa mole na paragem no sítio da ti’ Boleeira.
O casal era mesmo em frente do portão da Quinta dos Anjos. Evito agora
pintá-lo, em verdes, vermelhão do saibro, alvadio da casa…
Sim, e a charca! A charca das mil navegações, embalado pelo coaxar
das rãs, enquanto à volta das espadanas me perseguiam monstros…
Sosseguem, eram
apenas cobras de água que eu avistava da margem, contemplativo entre as
estevas. Adiante, para me poupar o coração.
Só mais uma pincelada, desculpem.
Sobre toda a propriedade da
Júlia Boleeira, distinto de ambas as margens do Tejo, erguia-se o
Pinheiro. Manso, rico de ninhos e pinhões. Gigante de harmonia e majestade,
no tronco e na copa. Nunca vi árvore assim entre as da sua espécie.
Multissecular, figurava nos mapas. Cheguei a deitar cálculos: quantas
crianças seriam necessárias para, de mãos dadas, lhe abraçarmos aquele espesso
tronco?
Ai de quem se arriscasse abatê-lo! - dizia-se.
Naquela tarde de Maio, estugávamos o passo, para não sermos apanhados pela
trovoada. Eu queria correr, Maria Pequena ralhava-me, entre rezas a Sam
Jirolme e Santa Barba. Que podia cair, entornar o leite,
cortar-me nos vidros da garrafa. Aquilo eram só trovões! De momento. Íamos
conseguir abrigo no casal, antes da chuvada grossa.
***
À justa! «Agora, que Deus a mande… Santa Barba e Sam Jirolme…»
Na sala, que servia de atelier de costura, estava uma menina desconhecida. A
Florinda! Mais velha do que eu. Indiferente aos receios com que a
modista, a sua tia Constância, e a avó Júlia escondiam agulhas e tesouras.
Não fosse um raio entrar pela casa dentro.
Florinda folheava cadernetas de
cromos.
Sobre a casa caía um dilúvio, relampejava por todo o vale . Ramalhava
ameaçador o grande pinheiro.
Devido ao súbito escurecimento, acenderam
dois candeeiros a petróleo, um dos quais foi colocado sobre a mesa onde a
Florinda me começava a identificar os bonecos dos seus livros. Ela já sabia
ler. E eu, aos cinco anos começava a sentir vontade de aprender. Quando?
Esquecido do mau tempo, entrei na primeira caderneta de cromos, A
Branca de Neve. Inédita e doce ansiedade.
Posteriormente, quando a Florinda foi para a escola da Portela, e eu
já me aventurava na leitura e nas visitas sozinho ao casal da avó Boleeira,
pedi-lhe por empréstimo a caderneta da Branca de Neve. Então, ela
avançou outra coleção que, entretanto, concluíra. Alice no País das
Maravilhas.
Aqui está a chave dos meus três magos: dois irmãos Grimm mais o Lewis
Carroll. Que disseram eles todos sabemos, o que quiseram dizer com aquelas
personagens e peripécias, fica por nossa conta. Ainda hoje
procuro ali significados escondidos.
Releitor que revisita o local onde abriu
pela primeira vez os livros.
***
Apagaram os candeeiros, porque reclareava a tarde. Nesse caso,
que a Florinda me levasse a ver os cachorrinhos. Sugeriram as adultas.
Ela pegou-me pela
mão e puxou-me para o recanto onde a cadela tinha, horas antes, parido a
ninhada. Tantos!
Mexer-lhes, nem pensar! Aviso de que a bicha estava sôfrega. Rosnadelas,
olhos turvos.
Dias depois compreendi que, à exceção de um, sempre o
primeiro a ser abocanhado pela mãe, todos os outros tinham sido afogados. Pelo
criado da avó Boleeira. Na pia dos carneiros e por que não na charca?
***
Era tempo de nos pormos a caminho.
A meio do Cabeço,
ouvi pássaros. Sacudidos dos ninhos pelo vento, piavam impotentes na boca de
dois gatos que em vão espantei, sem conseguir libertar as vítimas.
Como se não tivessem bastado a trovoada e as maldades da rainha madrasta, a
cadela ameaçadora…
Branca e Alice, no alto dos Anjos. Aqui vo-las deixo.
Tudo soçobrou: pessoas, casas, matos… Terraplanaram a charca. Para
construir ali um centro comercial, no ramo dos móveis importados.
Mas o pinheiro? Que lhe fizeram? Quem?
Se me tivesses telefonado, teríamos cumprido a promessa de nos acorrentarmos ao tronco! Estava combinado, camandro!
E o Rebelana fechou-se em copas.
«Então, meu?» , gaguejei-lhe com a faca no peito.
«Não te disse nada. Não havia nada a fazer.
Esquece.»
Tinhas razão, amigo. Esquecer pode ser a chave.
Contudo nunca esqueci. Branca , Alice
e o Pinheiro.
Aqui tens, Florinda.
Novembro 10, 2010