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terça-feira, 5 de abril de 2022

ESCREVIVÊNCIAS 2.10 A bisa Perpétua

 A bisa Perpétua

Deixem acrescentar que o Badalisco dos Anjos era tão antigo na sabedoria da minha mãe como tudo o que, na infância, ela aprendeu com a sua avó paterna, Perpétua.

Perpétua Azevedo não viera de Alcanhões, para a Quinta, de mãos a abanar. Trazia-as ocupadas com uma filha de poucas semanas, enquanto na mente lhe laborava uma esperança: ficar ama de leite dos Sampaios, os proprietários antecessores dos Caldas. Perpétua esquivava-se à humilhação da família, por uma gravidez de macho desertor.

 Se Marta subira ao altar de Alcanhões com o seu ventre fecundado, Perpétua virou-lhe as costas na procura de um lugar onde a filha não ouvisse a vergonha de um tal ingresso neste mundo.

A figura desta mulher tinha, para a minha mãe, uma dimensão mítica. Fêmea capaz de construir o seu próprio destino, a avó Perpétua

Na Quinta dos Anjos, veio a jovem Perpétua encontrar dois desempenados moços de lavoura, Jacinto e José Marona. Rapazes de um Manuel da Romeira, Manuel António, já passados pela Quinta da Mafarra, ao que dizem os papéis da Maria Alzira. Com qual dos dois havia Perpétua de ficar, já que ambos não escondiam o desejo de casar com ela, sem se preocuparem com o facto de ter sido usada e pejada.

Perpétua também caíra no agrado dos patrões, que a mantiveram no serviço da casa, quando deixou de amamentar. Não tinha pressa em escolher um dos dois Maronas.

O José era o mais atiradiço. Atribuíam-lhe a fama de sementão de algumas barrigas da Gaia, que lhe ia pela calada da noite aquecer as mantas. Guio-me pelo repertório da minha mãe, muito embora me pareça mais plausível o relato da Maria Alzira, sobre Maronas e Gaios. 

“Filhos do cunhado” e “Filhos do palheiro!”, distinguia a minha bisavó, condoída com a sorte das crianças. Ela lá sabia.

Perpétua Azevedo acabou por casar com o Jacinto Marona.

Uns casando no altar da capela, outros, não muito longe dali, na tarimba do estábulo. Era um "vê se te avias! A maneira mais prática de pôr um fim a estas coisas que, de outro modo, se desejariam para sempre. Enquanto durassem!...

 Destes dois irmãos vêm os Maronas da Portela. Alguns dos Gaios também tomaram o nome de Marona. A mãe Gaia saberia melhor do que ninguém. Ponto final.

Isto há cada uma! Entrei na Quinta dos Anjos para fazer um pedido ao atual proprietário, sobre a conservação da sua propriedade e, agora, não sou capaz de virar costas. 

Como ele ainda não me convidou a sair, volto à minha festa.

Naquela festa dos Anjos, minha mãe limitou-se a ir à missa. À saída da capela, mão habilidosa roubou-lhe um broche de ouro e brilhantes. Ficou inconformada, toda a vida. Embora o meu pai lhe tenha oferecido, assim que as economias o permitiram, uma peça muito semelhante, nunca mais deixou de sentir a afronta. Sempre que a segunda jóia cativava o apreço de alguém, lá vinha a minha mãe lembrar-se do furto. Perdas insubstituíveis!

 E o que  a perda dos objetos comparada com a das pessoas? Badaliscos, joias, alfaias litúrgicas e agrícolas de antanho… Incluo no rol, a propósito, o bico de escamisar da avó Perpétua. Onde é que raios eu o guardei, que lhe perdi o tino? 

Fossem-se os anéis mas ficassem as pessoas! Com a sua memória fresca, o tal  brilhozinho nos olhos e o coração tolerante. Cuidado, viver sempre também cansa, amigo!

E já que isto tem parte de crónica familiar, possa a minha prima Bia, afilhada da minha mãe, gozar-se por muitos anos daquela joia, que a madrinha fez questão em lhe destinar, no momento de partilha dos seus pertences pessoais.

            Não foi a minha mãe a única vítima da festa. Durante a noite, os amigos do alheio tinham levado a caixa registadora do João Melro, merceeiro da Portela, que instalara barraca de comes-e-bebes, no arraial. Tratava-se de uma pequena caixa vermelha de manivela, depressa localizada no meio das tojeiras do pinhal. Vazia!

Acabaram-se os fundos. E por hoje o narrador despede-se, sem cheta.

 Já está habituado, não faz mal.

(C

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