Trigo, tanto trigo!
Queremos pão!
A grande lavoura. Estava-se ainda no auge dos três ciclos de produção. Trigo, azeite, vinho.
Sustância para o corpo, linimento para a alma.
As carências, da primeira metade do século, ditadas pelas guerras mundiais e pela sanguinária confrontação civil em Espanha, determinaram incentivos à produção.
Particularmente quanto aos cereais panificáveis
Ganâncias e... fomes.
Tanto trigo!
Queremos pão!
Por aqui
nos ficamos, que isto não é requentada doutrina neo-realista.
Nos finais de 40, o lavrador João Caldas trazia de renda a quinta das
Trigosas e o lavrador José Ribeiro Tropa, dono da Granja, amanhava a Quinta da
Besteira.
O empreendimento levava-os a investir fora dos seus domínios.
Produzir! Produzir!
***
Segue ali, o semeador, com as balizas de caniço entaladas debaixo do braço, esquerdo, contra o sementeiro. Compasso a rigor.
Parecia retirada do peito,
aquela mão cheia de promessas. Recuada até os ossos rangerem, avançada de
seguida, aberta e repartidora, em direção ao ombro esquerdo. Distribuindo o
cereal em sucessivas meias luas. Regular. Nem ralo nem basto.
“Abençoada mão que fez este trabalho!” diriam as mondadeiras.
Do mesmo modo, junho fora, as ceifeiras, os gadanheiros. Porque, às vezes, se reconhecia a perfeição, mesmo quando as forças das gentes se esvaíam em suor e dor.
Julho, já com a colheita enceleirada, as debulhadoras dos Anjos e da Granja acudiam à produção dos pequenos e médios agricultores.
“Quem não tem bois, ou antes ou depois” .
Provérbio de conformação de pobres e remediados.
***
Música Velha, Rebelana!
«Tu ‘tás-me a ouvir isto?»
O quê, Rebelana?
A conversa parecia já descarrilar, por efeito de um copo a mais.
Sons vadios. Vadios?
«Sobem do passado…»
Eram os pregões do Có, do Pronto Caleiro, do peleiro, do Rica-Prima…
Chega, Rebelana, apre!
"' pera aí, pá!"
Faltava ainda o homem da enfardadeira!
Qual homem, Rebelas?
"Na 'tás a ouvir, gaita?
***
Às vezes, dava-lhe para comparar o som da corneta do João Macho com a do Francisquinho. Sardinheiros da Azoia, fornecedores da Besteira.
Um alongado
chifre de boi, aventado pelas bochechas de cântaro do João Macho. A par de um
sopro tísico, numa corneticha de metal, espremido pelo Francisquinho.
Mulheres a saírem dos quintais. Comprar para elas e para quem tivera de ir trabalhar mas fizera encomenda e deixara prato e pano. Para que as moscas não viessem logo pôr larvas nas sardinhas ou no chicharro.
Mais do que peixe fresco, a carroça do João Macho trazia novidades.
De frescura garantida,
numa manhã, sem jornais. Nem telefonia. Com um telefone, único e mais próximo,
na dita Quinta dos Anjos.
***
A debulhadora
Na Besteira nunca acontecia nada. Quase nunca, a bem dizer.
«Não é verdade!», contestava-me, pela década de 80, o meu amigo Rebelana, na taberna do Cunha.
Acontecia a chegada das debulhadoras!
Sempre à tardinha, de um dia tórrido.
Quando a polícia de trânsito autorizava, sem que os rastos de ferro das máquinas
estragassem ainda mais o alcatrão fundido pelo sol.
Vinham em primeiro lugar as galeras, puxadas a muares. Carregando bidões de combustível e
lubrificante, correias de transmissão, a balança, rolos de arame, o
cavalete do esticador.
O esticador instalava-se na periferia da eira. Sabendo dos
ventos, do curso do Sol, protegia-se, assim houvesse oliveira a jeito. Passava
todo o dia: estica, enrola uma alheta na extremidade, corre à outra ponta do
cavalete e guilhotina. Arame de ferro, dúctil e oxidado Atilhos de trefilaria
para os fardos de palha.
Aglomerava-se, vindo do cu-de-Judas, o primeiro rapazio, tomando
posição para o resto do desfile. O alarme correra pela Portela. Esperem por mais! Chegava a debulhadora!
O segundo elemento do cortejo era a enfardadeira, puxada
por uma junta de bois.
Tratava-se de uma máquina finalizadora do trabalho: comprimia a palha, aramava os fardos e expulsava-os. Para o chão, se os homens encarregados de os levarem ao ombro não ocorressem a tempo.
Prensado o fardo, quem estava nessas funções dava duas pancadas com o alicate. Aviso duplo, para o carregador e para o homem que alimentava a palha. Pusesse mais um separador de madeira, fronteira de um novo fardo.
O alicate contra um pedaço de folha de charrua. Aço contra
aço.
Rebelana não tinha ali nada, na tasca do Cunha, para reproduzir os sons que lhe brigavam nos ouvidos.
Aquela estridência sobrepunha-se a todos os outros ruídos da eira. E
afastava-se agressiva e monocórdica pelos campos de restolho. Com as revoadas
de palhunça.
Faz lá outra vez, Rebelana!
Se o Rebelana lesse hoje esta relação, já estaria a espingardar. Com razão,
pois pus o pessoal a compactar os fardos, sem ter ainda
instalado a maquinaria principal.
Faltavam debulhadora e fagulheiro. E ainda o trator, que os rebocava na
estrada e accionaria todo o conjunto na eira.
No rabo do desfile, a pé ou empurrando bicicletas, atravancadas com bugigangas, seguiam os trabalhadores.
Quinze, vinte? Um rancho! Mantas e
alforges. Material de refeição. Seira de palma com talher, temperos, côdeas de
pão, rodilhas. Caldeiras fuliginosas, as burras, ou sejam, as
negras hastes de ferro em que as ditas caldeiras seriam suspensas sobre as chamas.
Alguns também levavam frangos. Debicando de eira em eira, engordavam os bichos,
a custo zero, para patuscada, no final da época.
A petizada, embasbacando-se com aquela tropa fandanga, nem dizia em casa para
onde se ausentara. Voltariam, dos mais pequenos aos mais matulões, nos dias
seguintes, à eira, fascinados com tanto avanço de maquinaria.
Calcadoiros, trilhos, uma parelha de éguas
em rodopio, padeja de palhas e moinhas, impropérios contra os ventos, ora
amainados ora em desalinho, eram obra do passado. Embora ainda usadas para as
favas, o grão-de-bico, os chícharos…
Quem é que se vai lembrar do nome de todas as alfaias do trabalho nas eiras,
daqui a cinquenta anos? Daquele seco martelar na relha com o alicate?
Que te poderia eu responder, Rebelana?
Santarém não tem hábitos, cultura, políticas de museologia. Nem orçamento
nem vontade. Já lhe chega ter de armazenar os achados arqueológicos,
sempre que escavam um arruamento.
Afora os azulejos do mercado municipal, muitos deles espelhos do labor
desenrolado ali ao lado, no Campo Sá da Bandeira, o Concelho não honrou
devidamente com um museu etnográfico, o trabalho. Quem lhes produziu riqueza
nos campos, no rio, nas oficinas de artes e ofícios. Salvou-se a
jaqueta do campino e viva o velho. Tanto mais absurdo quanto a cidade se quer,
segundo alguns, conservadora, mas quase necrófila.
Na Portela, onde todos os utensílios de lavoura foram levados pelo caruncho e pelo ferro-velho, Rebelana foi, até aos seus últimos dias, um guardião de sonoridades. Desde a pancada do alicate, cadenciando o rendimento da enfardadeira, ao gorjeio de todo e qualquer passaroco.
Tal como o Mané-Mané,
foi o último assobiador, estrada-a baixo estrada-a cima.
«Tu ‘tás-me a ouvir este som?»
De nada valia retorquir ao Rebelana que eram
coisas do antigamente.
Música velha!
Gosyo de saber estas coisas antigas
ResponderEliminarCouca sabença posso contribuir, ca@ Amig@!.... Obrigado pela atenção. Quando não estiver de acordo diga, PROTESTE, pergunte.... Por favor.
EliminarPouca sabença, digo. Os velhos têm os olhos cansados. Desculpas
ResponderEliminarSinto-me escalabitana, ao ler estas páginas, querido Professor! Tão bela a sua escrita! Beijinho
ResponderEliminar