Pesquisar neste blogue

domingo, 26 de fevereiro de 2023

Rua ANTÓNIO HENRIQUES BEJA




(Legenda: António e Maria da Conceição, com neta Catarina, 1972)

O que vale um nome , mesmo como nome de rua? Quem foi? Quando viveu? O que fez, para que ali ficasse ao sol e à chuva?

Dizem-me por fotografias que o nome do meu pai foi dado a uma artéria  da Urbanização das Trigosas, em Santarém. Da velha Texugueira  - olival, figueiras, amêndoas, bandos de perdizes … - só resta  uma autoestrada, umas ruas com vivendas,  automóveis…  E pessoas que não conheço. 

Numa das ruas ,  nome do meu pai. Quem decidiu teve as suas razões que muito me agradaram.

Talvez a nota biográfica que então redigi, a pedido da Comissão de Toponímia, tenha aqui algum cabimento.

Nesse texto  tive por justo  sublinhar que se não fosse a minha mãe, Maria da Conceição Marona, a Rua António Henriques Beja teria outras razões para receber aquele nome. 



ANTÓNIO HENRIQUES BEJA JUNIOR

FILHO DE ANTÓNIO HENRIQUES BEJA E DE OTILIA DA SILVA – NATURAL DE PORTELA, S. SALVADOR, SANTARÉM – NASCEU A 19-11-1913 . FALECEU A 09-04-1995.

 INFÂNCIA

 Passou-a  até aos dez anos, na Quinta dos Pinheiros, acompanhado pelas avós Mariana (paterna), e Júlia (materna).  Enquanto os pais se ocupavam da  horta,  donde tiravam a  subsistência da família. António era  o irmão mais velho de Lucinda, Manuel, Piedade. 

As figuras dos avôs, Joaquim Henriques e Francisco Hipólito, ficaram-lhe sempre no coração. 

O avô Henriques (paterno) queixava-se de reumatismo. Era  fiel praticante  de três banhos, nas Caldas da Rainha, pelo S. João. Para  ele não havia melhor tratamento!

 Meu pai acompanhou-o nalgumas dessas expedições. E para o garoto, o mais excitante era a aventura de desafiar o assalto dos  hipotéticos malfeitores, escondidos  nas furnas do Alto da Serra, depois de Rio Maior. 

O avô Hipólito, deixou notícias de resistência a desmandos, emboscadas e crimes, por parte de um patrão das quintas onde foi feitor. Republicano, sim, mas com o sidonismo no horizonte.

 

ESCOLARIDADE 

Quatro bem sucedidos anos, na escola da Portela, com a Professora D. Angélica de Figueiredo, docente que permaneceu no posto de  1919 a 1954. 

Situava-se meu pai entre os melhores alunos, a par de outros socialmente  mais privilegiados. O sucesso merece-lhe o prémio de um livro de horticultura: A horta do Tomé, de Motta Prego. 

Na Primavera de 1978, António Beja reencontrou-se com a velha mestra, numa homenagem promovida pelos antigos alunos.

PRIMEIRO EMPREGO

 Aos dez anos: foi britar pedra, no entroncamento da azinhaga da Quinta dos Pinheiros com a estrada nacional 3

Grande oportunidade! Para o meu pai e para a escalavrada via pública. Só que o empreiteiro abandonou  a obra sem honrar o contrato. O pequeno britador nunca viu a jorna a que, durante três semanas, andara a fazer contas …“Foi para aquecer. Não para esquecer”, diria muito mais tarde.

Nunca esqueceu , porém, a almofada que a avó Mariana lhe entregou no primeiro dia de trabalho. Foi quando, à hora do almoço, apareceu em casa com o estômago vazio, as mãos em brasa e as "cruzes abertas".

Retirada de uma cadeira da casa-de-fora, a almofada esfarrapou-se em poucos dias.

 

SEGEIRO, 1924-1934.

 António insistia com  o seu pai em ser mecânico daquelas máquinas   modernas, os automóveis, que por vezes ultrapassavam os carros de tração animal no mau piso  da estrada,

Réplica paterna: fosse antes para a oficina do segeiro,  bem perto do sítio  onde, em vão, martelara a pedra.

Depressa aprendeu o trabalho do ferro e da madeira. Dadas as suas capacidades intelectuais,  o patrão confia-lhe tarefas de contabilidade e logística junto de clientes e fornecedores. 

Na experiência seguinte, o rapazote obteve autorização do pai para trabalhar numa carpintaria em Santa Clara. Foi  uma promoção, aquela ida diária à cidade, a passo  rápido, de lancheira na mão. Ele e tantos outros da Portela. 

Para comprar uma bicicleta teria de poupar do pouco que a mãe lhe devolvia da féria...

 

FUNDADOR DA SOCIEDADE RECREATIVA CRUZ DE  CRISTO FUTEBOL CLUB

A Sociedade. Na fase inicial, foi apenas o pontapé-na-bola, num efémero campo de jogos, na quinta do Casalinho… 

Depois, alguém conseguiu uns equipamentos usados pelos jogadores d'Os  BelenensesAtrás das camisolas, talvez viesse mais…

 Não veio. Mas o símbolo do clube ficou. As instalações da sociedade recreativa, permitram  melhorar a qualidade dos bailes, manter em actividade, enquanto a Censura permitiu e o cinema não usurpou, algumas representações teatrais. O ensino da música haveria de ter o seu dia … Era o projeto.

 António Beja foi um dos mais empenhados fundadores, em 1930 ou 31(????)

 MOTORISTA

Choferchauffeur, diziam as senhoras patroas. 

1936… Tinha começado a Guerra de Espanha, quando se orienta para a sua vocação de menino: o automóvel. 

Tirou, em simultâneo, as cartas de ligeiros e pesados, o que lhe aumenta as oportunidades de emprego, bem como o reconhecimento social.

 Conduz durante dois ou três anos viaturas de um negociante de rações, farinhas, azeites, vinhos…, -o senhor Pimentel, em Pernes. O patrão ajudou-o a compreender os valores da tolerância e do respeito, e ainda, o peso do humor e simpatia, como máximas para uma vida digna. António Beja citá-lo-á, ao longo da existência.

 Em Pernes, estreitou amizades, com gente da Música Nova e Música Velha, sem alinhar nunca em estéreis rivalidades das duas coletividades.

 Muitos anos mais tarde, revoltar-se-ia com a “chafurda” provocada pelo desenvolvimento industrial, no rio Alviela. 

E logo aproveitava para escandir pela undécima vez a tirada ciclística, Portela-Olhos de Água, numa tempestuosa quinta-feira de Ascensão. “Os rapazes só fazem algma coisa certa por engano”, garantia.

 Quando o Estado Novo quis preencher, com gente de confiança, as direções sindicais, recusou a disponibilidade, para o Sindicato dos Motoristas de Santarém, deixando  perplexo o autor do convite. Como é que um rapaz tão simpático não alinhava com a nova ordem corporativa?!

  No final da década de trinta, ofereceram-lhe emprego, na Quinta da Besteira, próximo da casa da namorada, Maria da Conceição Marona. 

Apercebeu-se desde cedo de que a atividade seria a prazo, dadas as deficiências organizativas dos patrões, que chegaram a sugerir-lhe  prescindir do salário acordado, visto que  se ia  casar com uma rapariga de família dita abastada.

1939, 29 de Junho. Estava desempregado, quando se casou com a filha de um médio proprietário rural da Portela. Joaquim da Silva Marona. Tiveram  dois filhos e com eles  partilharam   solidariamente todos os  projetos de vida. 

Considerar a memória de António é envolver Maria da Conceição no mesmo ato.


  AUTOMÓVEIS DE ALUGUER: 1939-1959.

Não tardou porém em voltar à profissão de motorista.Nos primeiros tempos, empregou-se por conta de um colega, o Batista, com quem aprendera a condução. 

Entrou-se num novo tempo de Guerra em que, apesar da escassez de combustível, os carros de praça se tornavam os mais úteis meios de transporte, mesmo quando movidos a gasogénio. 

Antes de 1944, já António Beja trabalhava por conta própria e começava a organizar uma carteira de clientes de relativo nível social, na Cidade e arredores.

Ter uma clientela certa, não o impedia  de aceitar ser acordado a altas horas da noite, quando no fundo da Azinhaga da Besteira, aparecia alguém implorando por um serviço de emergência: doença súbita, parto, acidente… 

Poder-se-iam exemplificar ocorrências de infortúnio em que o António Beja foi a voz e o ombro de apoio para vários  vizinhos. 

Ria-se, quando recordava que alguns desses vizinhos tivessem adiado até ao dia de "São Nunca" o pagamento do serviço. 

A vida  era dura. Mas  continuava a apresentar-se-lhe como um tempo de aprendizagem social: nunca  lhe escapou  a linha de separação entre humilhados e arrogantes.

Sabia  que havia  quem arriscava a vida pela Liberdade.  E teve a preocupação de ensinar os filhos a respeitar tais pessoas. Mesmo não compreendendo ou não concordando com as todas razões delas.

 

  AGRICULTOR

A partir de 1954. As suas raízes camponesas permitiram-lhe uma fácil adaptação à atividade agrícola, quando, sempre em conjunto com Maria da Conceição,  passou  a gerir a herança de  Joaquim da Silva Marona. 

O sogro falecera em 1948. Os bens seriam agora geridos por dois proprietários, independentes, meu pai e o meu tio Joaquim.

Como agricultor integrou-se  no ciclo de esperança-desespero do trigo, azeite, vinho… Dentro da tradição agrícola local. 

 De empregado de terceiros,  António chegara a trabalhador por conta própria e tornava-se, agora, empregador. Com a mesma modéstia de sempre. 

Embora o número de trabalhadores rurais fosse variável e diversificado, em função da natureza das tarefas, nunca ocorreram situações de rompimento entre as partes contratantes. Quando em 1974, com um dos filhos teve uma conversa sobre a consciência social do patronato, em tempos que se diziam de Revolução,  concluiu   com a serenidade do sexagenário:

“Nada me pesa! Talvez não tenha pago o salário justo, mas posso garantir que sempre paguei o ajustado.” 

 "E sempre em trabalho honesto”, sublinhou. Manteve a exploração agrícola até aos anos 80.

Em 1958, não teve hesitações e foi a correr votar no General Delgado, depois de ter vibrado com a visita do candidato a Santarém.

 COMERCIANTE: 1956-1986(+/-).

 As primeiras experiências como proprietário agrícola não foram economicamente tão compensadoras como as do falecido sogro, nos anos de 1910-40. 

A pequena agricultura confrontava-se com fortes desafios. Começava rarear a mão-de-obra, a mecanização era ultradispendiosa, a Corporação da agricultura só apoiava os grandes empreendedores… 

António Beja que, entretanto, não deixara o trabalho na praça de automóveis, embora se tornasse cada vez mais seletivo quanto aos clientes, decidiu enveredar por mais outra atividade económica: o comércio de vinhos e seus derivados.

 Para evitar o encerramento  da taberna da Besteira, adquiriu o alvará a um parente. Razão principal: escoar a produção vinícola por um preço minimamente compensador da despesa de cultivo. Minha mãe não esteve logo de acordo com a  abertura do negócio

Durante trinta anos o estabelecimento forneceu os camponeses dos arredores, e foi ponto de encontro de clientes vindos da Cidade, movidos pela simpatia do Beja e pela qualidade do serviço e produtos. A cozinha de Maria da Conceição era uma das principais  razões das preferências.

 A certa altura, para que se considerasse a sua dupla atividade de agricultor e comerciante, António Beja passou a referir-se à loja como a Tasca do Fazendeiro

Mais do que uma tasca, o comércio tornou-se uma espécie de cantina para os rurais e um refúgio de boa cozinha para os petisqueiros citadinos.

 Em 1959, negociou o alvará de taxista, pondo termo à tal profissão.

 

  PROMOTOR IMOBILIÁRIO

 Não se veja nesta designação qualquer objetivo de lucro rápido. Havia uma propriedade de escassa valia agrícola, no Alto dos Anjos, o Cabeço. Vendo-se sem segurança  social para a velhice, meus pais decidiram promover um loteamento habitacional. Só por essa razão se resignaram ambos a contribuir para a edificação de casas em chão de lavoura. 

Foi a última atividade que ocorre relembrar nestas notas.


NB: este texto foi redigido em 2010.

2 comentários:

  1. Estão explicadas várias heranças do filho - agricultura, antifascismo. Parabéns!

    ResponderEliminar
  2. Boas memórias! Boa memória!
    São elas que mantêm vivos, a eles e a nós!
    Claro que as palavras também fazem pontes e são belas!

    ResponderEliminar