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sábado, 19 de março de 2022

ESCREVIVENCIAS.2. 7 Voando no Google sobre as quintas

 

 

Parado no cabeço da Torre, nas imediações da casa de meus avós Maronas. 

É um retorno recorrente pela memória, pelo sonho. Também me sirvo do Google Maps, para confirmar a irreversível desintegração da paisagem infantil. Ou a sua dolorosa posfiguração.

Cada sol nascente, o meu avô Joaquim, debruçado no muro do casal, mesmo antes de orientar a jeira, enfurecia-se contra o Cabeço do Zeimoto. Do Zé Morto, que já é mais nome de cristão. Tolhia-lhe, aquele morro, a visão das águas do Tejo. Sobretudo, das vinhas no campo do Rossio. Tal contenda de gigantes era motivo de calada chacota da família.

De igual modo me confronto com as imagens do Google, sem o desvario de as pretender arrasar, devolvendo-as ao uso agrícola do passado. Vejo na mancha verde da Quinta dos Anjos um velho urso, sonolento, solitário como todos os velhos, caminhando. Vou-lhe na peugada com o devido atraso de quem se desloca, ao longo da Azinhaga da Besteira.

Voltando ao olhar matinal do meu avô…Teria a força de quem se julgava capaz de emprenhar a terra!

Caminho fora! 

Santarém avista-se a uma légua, mediam os antigos. Impondo a torre do Convento da Trindade e o zimbório do Presídio Militar, por sobre oliveiras e pinheiros das minhas cercanias. Sinto-me, ainda, ali prisioneiro, entre valados cobertos pelas balças...

 Assim se teria sentido a minha mãe, quando deixou o Casal das Labaças para fixar residência mais perto da Portela, no local que na sua infância se chamaria Vinha Velha. Ou Venda Velha. Que importância isso tem agora?

 Por ali se demorou quase setenta anos. Até que um dia…

Abriu os olhos, compreendeu que já não era a sua casa, a nossa casa. Sorriu-me e começou a cantarolar, na cama do Hospital:

“Já não tenho pai nem mãe

Nem nesta terra parentes

Sou filha das tristes ervas

Neta das águas correntes

 

As flores do meu jardim

Fizeram uma sociedade

Malmequer e amor-perfeito

Açucena e mais saudade”

 Só à beira-fim lhe ouvi tão conformada elegia. Rendia-se à Natureza, dando-nos mais uma lição. De vida não, de morte!

Eu e os meus, deixámos para trás as encostas de suave-verde deslize para a Vala, ou seja, para a ribeira de Cabanos e os seus pauis.

 As quintas. Terra do Cervato, Quinta das Trigosas. Ambas associadas à luta agrícola do avô Marona. Não lhe pertenciam, mas tomou de renda aquelas chapadas, para arrotear, surribar, plantar oliveiras, semear… Pão e, pelo menos, dois filhos, carinhas chapadas, nunca assumidos. Dizia-se.

Quinta da Comenda. Irrompe, numa mancha malva, do arvoredo, antes do casario branco de Alcanhões. Dali saíam as “tralhoadas”, de gado bravio, já humilhado por corridas, castrações e, finalmente, pelas cangas. Para as lavouras no património do Comendador, íntimo de Alexandre Herculano, em Vale de Lobos. Adversário figadal do meu avô Joaquim que, de sangue mais fresco, lhe levou a palma nos favores de uma mulher. Pagou cara a aventura o pequeno agricultor. Ameaças, tiroteios, incêndios de casas e searas. Para ordenar vingança, não estava o Comendador impotente. Da Comenda saíam, a seu tempo, as senhoras acólitas do reverendo Formigão, a fim de que o milagre dos mil sóis sobrevivesse à lógica dos positivistas. Proselitismo cronicado por um empedernido ateu. Tomás da Fonseca.

 Da Comenda todos tinham saído. Deixando para trás portões, portas e janelas, tudo escancarado, na residência dos senhores, nos quartéis dos trabalhadores, nos palheiros e estábulos. Apenas duas rabilongas viuvinhas, riscaram o ar, quando um homem e uma mulher entraram a furto no pátio, ao cair do século XX. Ninguém que lhes vedasse o engodo das sombras, pelas escadas, corredores, salões, quartos… Nada que não fosse silêncio e calor estival. A que se sobrepôs um estranho, súbito, desejo. Porquê?

Quinta da Besteira. Primeiro, a família Constâncio, falhada na gestão dos bens. Quer directa quer por arrendamento ao lavrador José Tropa, da Granja. Num tempo de produzir trigo para povos em guerra na Europa.

 Meu pai foi lá motorista. Chofer, à disposição da senhora, nem sempre com salário completo e pontual. Em contraste com a ostentação dos patrões por Lisboa, Sintra, Cascais. Despediram-no, por não poderem suportar os custos do seu trabalho, embora o chamassem para ocasional serviço de táxi, enquanto se mantiveram na Quinta. Lembro-me de, muito criança, ter estado na cozinha dos senhores Constâncios. Ao meu pai, ofereceram café. A mim, uma maçã.

 Já não sei contar o episódio de um Constâncio infeliz. Enleou o atacador do sapato no gatilho e esticou a perna. O tecto aparou-lhe o cérebro. Por dívidas de jogo, explicavam os criados. Para não ter de executar um amigo, conforme lhe caíra em sorte num julgamento do clube maçónico. Na versão dilatada pelo sogro, o comendador Paulino. Que lhe teria deixado a espingarda em cima da cama, com a recomendação de já estar carregada, acrescentava a criadagem. Honra.

 Pelos meus cinco anos a quinta foi adquirida pelo Dr. Artur Duarte. Advogado e deputado da Nação.

No final dos anos cinquenta, Domingos Constâncio, desviou o carro, numa viagem de regresso a Lisboa, atraído pelo antigo domínio familiar. Emoções. No entanto, acabou por não ir além da adega dos meus pais, onde, bebericando, se refez das saudades. Insistindo para que o meu pai não continuasse a tratá-lo por menino Domingos. Catarse pelo álcool.

Voltemos, num rápido, à confinante Quinta das Trigosas. As duas maiores parcelas desta unidade agrícola foram trucidadas. Pela auto-estrada, que levou também parte da Quinta dos Anjos e da Mafarra, aproximando da loucura alguns dos moradores da vizinhança. E por dúbios projectos industriais e imobiliários. Daqueles que, não resolvendo o desabrigo, nem reduzindo o desemprego, exaltam a ganância. Por cima e por baixo da mesa.

Alto! O Google já me trouxe para o entroncamento da Rua 19 de Março com a Nacional 3. Sem me assinalar o começo da Azinhaga da Besteira…

Olhem que nem parei, para uma cambalhota, ao Rebola Cabacinha, em frente do portão da Quinta do Casalinho. Agora também não paro à porta do Gil. Fica para outro dia, quando for para a Escola.

 Preparem-se, pois dessa vez venho a pé, como sempre.

terça-feira, 8 de março de 2022

ESCREVIVÊNCIAS 2.

5. Há muito buraco destes… Oh, se há!

A escola onde andávamos…. – Contava, António, o meu pai, em 1979[1]- ainda existe: […] é um prédio de primeiro andar, à beira da Estrada Nacional nº 3, construído no terreno que foi dado pelo Sr. Caldas […] em troca da reprivatização da Capela dos Anjos […], situada dentro da sua quinta […

A escola, na época em que lá andámos, estava um bocado mal arranjada: durante muitos anos ninguém a caiou, nem lhe pintou o portão, nem a vedação; dentro da sala de aula havia um sítio de onde tivemos de arredar as carteiras porque o soalho abateu para a caixa-de-ar[2]·.

As limpezas éramos nós, os garotos, que as fazíamos mas os arranjos não estavam a cargo de ninguém e o prédio ia-se estragando aos poucos. […]

A aula era no rés-do-chão e, por cima, moravam os pais da professora visto que ela própria optara por ir viver na residência a que o marido tinha direito ali perto, na Escola Agrícola. A nossa professora era a Sr.ª D. Angélica; era muito rija, dava reguadas com fartura (sempre íamos aquecendo as mãos, já que lareira não havia) mas ao fim todos aprendiam (quem não ia a bem ia a mal). Esta senhora foi professora na Portela durante muitos anos (os nossos filhos ainda foram seus alunos; está reformada há muito tempo mas mantém-se lúcida; reunimo-nos com ela no ano passado para uma homenagem. Dos antigos alunos que estão vivos juntámos os que pudemos (vieram centenas […] fomos todos à velha sala de aula para inaugurar uma placa de mármore com palavras de agradecimento à professora e à escola. Nessa altura a Sr.ª D. Angélica disse que se pudesse voltar atrás na sua vida de professora teria preferido os métodos modernos e teria posto de parte a régua do antigamente. Sobretudo os que vivem longe da terra gostaram muito de voltar, naquele dia, à nossa escola. Se a tivessem arrasado por ser velha, se o edifício já fosse outro não teríamos levado a ideia por diante: não tinha feito sentido pôr uma placa noutra escola que não tinha sido nossa.

No nosso tempo o ensino público era gratuito, mas era costume levar presentes à professora, em certas ocasiões e um presente muito especial depois do exame da 4ª classe. Às vezes a senhora juntava tanta criação e tanta fruta que mandava vender na praça.

Ainda o meu pai:

Fui para a escola aos sete anos: fui companheiro de classe da minha mulher; ela levava todos os dias, de casa, um tinteiro com tinta, para não se servir das borras que havia nos tinteiros de lata metidos no meio de cada carteira; os pais mais ricos compravam tinteiro próprio para os filhos; às vezes a Maria repartia a tinta comigo. Os meus pais não me compravam tinta, mas mandaram-nos aos quatro (dois rapazes e duas raparigas) para a escola e lá nos mantivemos até irmos fazendo os nossos exames.

No meu tempo de escola não havia electricidade na terra e não me lembro de alguma vez termos levado lamparinas ou cotos para a aula, embora a sala se fizesse escura nas tardes de Inverno. Quando chegou a corrente à Portela, electrificaram a residência do 1º andar mas não a parte de baixo, a sala de aula.

Dentro da aula, havia filas de carteiras para os rapazes e filas de carteiras para as raparigas…Retretes também havia duas, quando chegava a altura das limpezas, elas tratavam da parte delas e nós da nossa. A água para bebermos, para as lavagens e para as retretes íamos buscá-la a um poço que tínhamos na cerca da escola. Era nossa obrigação mantermos cheios os baldes das retretes e uma talhazinha em barro vidrado[3] que havia na aula e de que tirávamos água com um púcaro sempre que queríamos beber.

 No recreio os rapazes e as raparigas brincavam juntos muitas vezes (rodas, cantigas, etc.) mas se nos calhava jogar ao pião ou à bola elas entretinham-se com outras coisas. Mais tarde a Sr.ª D. Angélica teve ordem para não deixar os rapazes misturarem-se com as raparigas durante o recreio e ela assim fez.

 Havia aula de manhã e de tarde. Quem morava perto ia a casa almoçar; quem morava longe trazia almoço. Merenda para comer à tarde, todos levávamos (um bocado de pão com qualquer coisa que se arranjava para pôr dentro). Cantina não havia nem há. Mas faz falta! A maioria das mães de agora trabalha e dava-lhes jeito haver na escola quem fizesse almoço para os miúdos e olhasse por eles na hora de comerem. Nos tempos de agora olha-se muito mais pelas crianças mas ainda há muito buraco destes… Oh, se há!

 Assim disse António, o meu pai.[4] À data do depoimento, celebrava-se o ANO INTERNACIONAL DA CRIANÇA. Por muito que a demagogia tivesse chulado o tema, como no balanço final denunciava o Prof. João Santos, os Direitos da Criança ficaram evidentes, num país ainda enlevado pela Utopia. Foi em 1979. Repito.

 Daí para cá… As Crianças? 



[1] Rectifico a anterior datação. Este depoimento foi colhido em 1979.

[2]  O mistério da caixa-de-ar. Quem ia acreditar, no meu tempo, que por baixo dos nossos pés, só havia poeira ratos e baratas?

[3]  No meu tempo, o “pote” fora transferido como peça de museu, para o “quarto”. 

[4]  In  BEJA, Filomena , op. cit.