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terça-feira, 8 de março de 2022

ESCREVIVÊNCIAS 2.

5. Há muito buraco destes… Oh, se há!

A escola onde andávamos…. – Contava, António, o meu pai, em 1979[1]- ainda existe: […] é um prédio de primeiro andar, à beira da Estrada Nacional nº 3, construído no terreno que foi dado pelo Sr. Caldas […] em troca da reprivatização da Capela dos Anjos […], situada dentro da sua quinta […

A escola, na época em que lá andámos, estava um bocado mal arranjada: durante muitos anos ninguém a caiou, nem lhe pintou o portão, nem a vedação; dentro da sala de aula havia um sítio de onde tivemos de arredar as carteiras porque o soalho abateu para a caixa-de-ar[2]·.

As limpezas éramos nós, os garotos, que as fazíamos mas os arranjos não estavam a cargo de ninguém e o prédio ia-se estragando aos poucos. […]

A aula era no rés-do-chão e, por cima, moravam os pais da professora visto que ela própria optara por ir viver na residência a que o marido tinha direito ali perto, na Escola Agrícola. A nossa professora era a Sr.ª D. Angélica; era muito rija, dava reguadas com fartura (sempre íamos aquecendo as mãos, já que lareira não havia) mas ao fim todos aprendiam (quem não ia a bem ia a mal). Esta senhora foi professora na Portela durante muitos anos (os nossos filhos ainda foram seus alunos; está reformada há muito tempo mas mantém-se lúcida; reunimo-nos com ela no ano passado para uma homenagem. Dos antigos alunos que estão vivos juntámos os que pudemos (vieram centenas […] fomos todos à velha sala de aula para inaugurar uma placa de mármore com palavras de agradecimento à professora e à escola. Nessa altura a Sr.ª D. Angélica disse que se pudesse voltar atrás na sua vida de professora teria preferido os métodos modernos e teria posto de parte a régua do antigamente. Sobretudo os que vivem longe da terra gostaram muito de voltar, naquele dia, à nossa escola. Se a tivessem arrasado por ser velha, se o edifício já fosse outro não teríamos levado a ideia por diante: não tinha feito sentido pôr uma placa noutra escola que não tinha sido nossa.

No nosso tempo o ensino público era gratuito, mas era costume levar presentes à professora, em certas ocasiões e um presente muito especial depois do exame da 4ª classe. Às vezes a senhora juntava tanta criação e tanta fruta que mandava vender na praça.

Ainda o meu pai:

Fui para a escola aos sete anos: fui companheiro de classe da minha mulher; ela levava todos os dias, de casa, um tinteiro com tinta, para não se servir das borras que havia nos tinteiros de lata metidos no meio de cada carteira; os pais mais ricos compravam tinteiro próprio para os filhos; às vezes a Maria repartia a tinta comigo. Os meus pais não me compravam tinta, mas mandaram-nos aos quatro (dois rapazes e duas raparigas) para a escola e lá nos mantivemos até irmos fazendo os nossos exames.

No meu tempo de escola não havia electricidade na terra e não me lembro de alguma vez termos levado lamparinas ou cotos para a aula, embora a sala se fizesse escura nas tardes de Inverno. Quando chegou a corrente à Portela, electrificaram a residência do 1º andar mas não a parte de baixo, a sala de aula.

Dentro da aula, havia filas de carteiras para os rapazes e filas de carteiras para as raparigas…Retretes também havia duas, quando chegava a altura das limpezas, elas tratavam da parte delas e nós da nossa. A água para bebermos, para as lavagens e para as retretes íamos buscá-la a um poço que tínhamos na cerca da escola. Era nossa obrigação mantermos cheios os baldes das retretes e uma talhazinha em barro vidrado[3] que havia na aula e de que tirávamos água com um púcaro sempre que queríamos beber.

 No recreio os rapazes e as raparigas brincavam juntos muitas vezes (rodas, cantigas, etc.) mas se nos calhava jogar ao pião ou à bola elas entretinham-se com outras coisas. Mais tarde a Sr.ª D. Angélica teve ordem para não deixar os rapazes misturarem-se com as raparigas durante o recreio e ela assim fez.

 Havia aula de manhã e de tarde. Quem morava perto ia a casa almoçar; quem morava longe trazia almoço. Merenda para comer à tarde, todos levávamos (um bocado de pão com qualquer coisa que se arranjava para pôr dentro). Cantina não havia nem há. Mas faz falta! A maioria das mães de agora trabalha e dava-lhes jeito haver na escola quem fizesse almoço para os miúdos e olhasse por eles na hora de comerem. Nos tempos de agora olha-se muito mais pelas crianças mas ainda há muito buraco destes… Oh, se há!

 Assim disse António, o meu pai.[4] À data do depoimento, celebrava-se o ANO INTERNACIONAL DA CRIANÇA. Por muito que a demagogia tivesse chulado o tema, como no balanço final denunciava o Prof. João Santos, os Direitos da Criança ficaram evidentes, num país ainda enlevado pela Utopia. Foi em 1979. Repito.

 Daí para cá… As Crianças? 



[1] Rectifico a anterior datação. Este depoimento foi colhido em 1979.

[2]  O mistério da caixa-de-ar. Quem ia acreditar, no meu tempo, que por baixo dos nossos pés, só havia poeira ratos e baratas?

[3]  No meu tempo, o “pote” fora transferido como peça de museu, para o “quarto”. 

[4]  In  BEJA, Filomena , op. cit.

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