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quarta-feira, 19 de agosto de 2009

A receita da avó Mariana


Como última homenagem à Avó, a nossa M. pôs no Flickr uma receita de doçaria. Caligrafia azul, esforçado equilíbrio entre linhas de caderno escolar. Os precisos do bolinho. Gotas, gramas, colheres, chávenas, truques na mistura e levedação. Mais os tempos de forno.

Então não é que me deu para ler nesta lição da Avó toda a obra de um qualquer grande filósofo. Porque estes ousam partilhar a receita da vida, depois de lhe estimar os ingredientes?
Não. Apenas pela última frase da folhinha :"Ispero que me compreendas."

E saboreies os dias, arescentei eu. Bem vistas as coisas, isto não tem grande saber, não é, Avó?

domingo, 16 de agosto de 2009



ABATE

Depois da visita ao quintal da Vizinha, como vou eu explicar à Marta e Sofia que estes bichos estão aqui para um fim tão repugnante?
Ainda se oferecem frutos de verão neste dédalo de cimento e alcatrão

 No regresso de uma exposição de Henri Fantin-Latour, na Gulbenkian. 

Um dia falaste-me da sombra daquela faca, Marilisa. Desequilibrando-se da mesa.
 "A sombra vale todo o quadro!", era a tua etiqueta.

E aqui? Foi a faca que rasgou desejos, naquele figuinho pingo-de-mel? Ou foi a roda-livre da memória? De uma tarde, em 2009.

É que a foto estava afogada neste baú...
 Recordo as árvores, a tranquila colheita dos frutos mas varreu-se-me a sombra da mão que os colheu, os pós ao meu alcance...
Quem me afagou então os sentidos?

2009-2022.








sábado, 15 de agosto de 2009

Marta em Sintra. Segunda jornada
E onde está o doutor? Pergunta Marta, no princípio dos seus três anos. E porque não tem pernas nem braços? É um retrato sem pernas nem braços, tento convencê-la. Um retrato, Avô? Bem Marta, isto chama-se mesmo uma estátua. Uma estátua. Para quê?
Foi a maneira de algumas pessoas de Sintra dizerem que gostavam muito deste médico. Do Dr Simplício. Passemos a uma observação mais pormenorizada: a bata, o estetoscópio...
Sabe a Marta que o médico põe aquilo nos ouvidos para fazer frio no peito das crianças. Só não compreende que a bata seja castanha, do metal, e não branca.
Vira-se e anuncia: Olha outra, Avô! Tantas.
São duas e vizinhas. Ah pois, aquela é de outro médico. Era o Dr. Cambournac
Insiste. E onde estão os doutores? Já sei, estão no hospital, a trabalhar, não é, Avô? Vacilo. Talvez... Será já o momento de desferir? Estão no cemitério, a descansar.
Retoma de Marta. Porquê?
Como se explica a uma criança desta idade que um busto, mesmo se sobrevive à cidade é uma perfeita perda de tempo?
Valeu-me o frasco comprado ali numa loja de chineses. Sentados ao lado da primeira estátua, soprando à vez, parecíamos querer encher a Estefânea de bolinhas. Quem passava ria connosco.
Serão as estátuas menos efémeras do que as bolinhas de sabão?

segunda-feira, 20 de julho de 2009

A Lua há 40 anos

Querem mesmo que vos diga que me emociono muito mais hoje, com esta proeza da humanidade, do que naquele Verão de 69? Tinha andado por aí uma esperança a esvair-se, todos a concluir que a Liberdade não estava ainda a caminho. A tropa à porta, o caminho da guerrra colonial, a insegurança de quem tem uma família a crescer e um salário incerto.

Mesmo assim, lá rabisquei duas tretas de confiança, num caderno que me havia de acompanhar, no Outono, pelas colinas de Mafra. Se os cosmonautas desciam num Mar de Tranquilidade, para breve estaria a utópica paz e abundãncia por esses continentes terrestres. E foi o que se viu.

Que dizer quando o meu filho André, ainda não nascido naquele Julho, bloga pela efeméride?
Falta prosseguir a viagem pelo Mar da Dignidade.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Lisboa Vegetal




Há uma cidade vegetal. Queiram ou não os patos-bravos e os clientes diários dos "graxas" do Rossio. Confunde-se com os brancos e o céu. Antecipa crescentesde lua-vaga, se prestares atenção. Um palavroso sem tarilhos sobe-e-desce as escadinhas de S. Cristóvão, a mastigar uma ladainha à sua última namorada: O Jacarandá

Em Lisboa
maio junho
em Lisboa
tu verás
jacarandar
em azul
os jacarandás
do Sul.

sábado, 30 de maio de 2009

Dúvida e vaidade

Envelhecer pode tornar-se um atalho para o cartesianismo. Se se levar a sério a breve consideração de J. M. Coetzee, no seu último Diary of a bad year. Será que os meus joelhos aguentam tal flexão, neste caminho sem bengala? Deixa lá ficar os 50 cents na calçada, que a cidade cresce em desabrigo. E desabrigados.

Pelas fragilidades iniludíveis do corpo se aceita a dúvida. E até a dívida. Já paguei para este Carnaval, minha amiga.No final, só nos resta a alternativa pirrónica.



Hoje acrescento, à ideia do escritor sul-africano, a declaração introdutória da autobiografia de David Hume:

"It is difficult for a man to speak long of himself without vanity".

Tenho-me incomodado nos últimos tempos com o papel erosivo da vaidade. Como educador público, espero não ter deixado a imagem de um grande vaidoso. Engano? O que hei-de fazer?Agora é tarde.
No entanto, reconheço as oportunidades perdidas, na sala de aula, para dissecarmos a quimera que tanto atormentava João Crisóstomo: "Ó vaidade das vaidades..." Já lá vai a primavera ufana em que eu sabia escrever isto em grego.

E agora me calo, para não dar razão ao Hume. Tanto mais que estou a tomar o gosto pela vaidade da blogoesfera .