Apontava-me o guarda-chuva: «Táxi!» A mim, à cabeça da fila.
Gabardina, chapéu sobre os olhos, pasta pesada. Algum desnorte, como se fosse a primeira vez que se apeasse na estação de Santarém. Não chamaria a atenção, se viesse no rápido, mas descera do sempre atrasado correio, já passava da uma hora da noite. «É possível levar-me a Coruche?»
É possível levar-me a Coruche?
Meu pai repetia a pergunta, porque o desconhecido insistia.
Logo passou aos restantes motoristas: «Quem é que me leva a Coruche?» Dos meus colegas, também nada. Sendo eu o primeiro da fila, aguardavam.
«Sim. Estou livre!»
Aquela hora da noite, sem ter matado o borrego, depósito quase atestado. Na nossa gíria da praça, o borrego era o azar de não fazer nenhum serviço. Ai se havia dias assim!
«Ó Caréu, olha que a cheia está a vazar, mas a estrada…». Voz do Alexandre, que pouco antes regressara de um serviço a Almeirim. Avisava: cuidado com esse bisnau!
Pedi um minuto ao desconhecido, aproximei-me dos colegas. Que eu não fosse. Havia ali qualquer coisa que não cheirava bem. Nenhum deles se iria meter em tal trajecto, àquela hora.... «É gajo que vai aí desgraçar alguém...» A noite estava clara: lua cheia, embora escondida por nuvens ameaçando... Muito falsas as estradas para lá de Almeirim... Visse bem. Se já me tinha esquecido do martírio dos Tavares, pai e filho?
Os Tavares?
Os Tavares. Passou de uma semana, cada um em sua cela, na cadeia de Leiria, até se esclarecer a chacina. Sete ciganos saíram da praça de Santarém, ao cair da noite, com espingardas e machadas, embonecadas em mantas, para um ajuste com outra ciganagem em Porto de Mós. Trabalhinho feito, os matadores desapareceram na serra. Aturdidos pela sangria e pelas ameaças, os choferes engoliram pistas, até a guarda deter um do bando.
«Segundo o chefe da estação, já se circula», atirou o homem, pressentindo as dúvidas. A desculpa da cheia não pegava. Aproximou-se, tocou-me no ombro: «Vá lá, então leve-me, senhor. Peço-lho pelo que tiver de mais sagrado. É um grande favor» Quebrou-me: fosse ele o maior malfeitor deste mundo... Sorte!
Isto deu-se alguns anos antes de Vila Franca estar ligada à margem sul. Alguém tinha aconselhado o viajante, em Lisboa, a vir apanhar um táxi na estação de Santarém, onde, normalmente, os carros esperavam até ao último comboio da noite. Necessitava de estar em Coruche, na manhã seguinte.
Assim me meto com um estranho pela noite adentro. Como de costume, tentei conversa. Apanhei de tudo naquela vida: os que falavam por falar, os que queriam tirar nabos da púcara, bufos, os que confessavam desgostos e fraquezas, os que davam conselhos sem lhos pedirem... os que se enroscavam no assento e me ignoravam como se fosse uma pedra.
A este, comecei pelas notícias das enxurradas, das desgraças da lavoura... Respondeste tu?! Escuta. O que lhe ouvi foi um... um grito, como de quem se queixa de uma cólica: «Este luar...»
Com efeito, rasgavam-se as nuvens, desofuscando toda a extensão das águas. Valeria a pena assinalar ao viajante que aquela cheia cobrira por completo o salgueiral das marachas?
«Este luar...» Agora era um resmungo.
Deixa cá ver se entendo: «Não há luar como o de Janeiro, nem amor como o primeiro, dizia a minha avó.» Tudo estragado!
«Tenha lá paciência, evite incomodar-me. Estou num grande sofrimento...! O amor! Era só o que faltava. Nada se sabe sobre o amor...O amor? O que isso é? Tretas, para trocarmos as voltas à morte. Quando chegar à minha idade...»
Calculei-lhe uns… talvez já cinquenta. Prometia a mim mesmo não voltar a abrir a boca, quando:
«Bem vistas as coisas, eu podia ter feito esta viagem de barco..»
Pavoneava-se? Delirava?
«Ah, sim ? E por que não fez?»
Nem sei se me estava a responder: «Se nos deixassem, íamos sempre naufragar à nascente dos rios... Porque a vida nos arromba no mar alto dos sonhos...». Porque a vida nos arromba no mar alto dos sonhos, nunca mais esqueci.
Cabeça desregulada?. Lembrei-me das perturbações do nosso primo João, quando fugiu do Telhal... Tive vontade de voltar para trás... Pensei melhor: Vou deixá-lo em Almeirim. Que se governasse!
O café da vila ainda estaria aberto. Convidei-o a tomar qualquer coisa... Tinha de declarar à frente de testemunhas que não me sentia em condições para continuar o serviço, ou talvez fosse possível encontrar alguém que aceitasse fazer-nos companhia. No entanto, o homem lia, quero dizer, parecia ler os meus pensamentos.
«Porque vai preocupado? Não vamos ter problemas pelo caminho. Obrigado, mas não quero tomar nada, só pretendo chegar a Coruche. Se me vai dizer que vem aí outro temporal e as estradas estão inundadas, concordo consigo, mas vamos ver. Já agora, deixe-me que lhe conte: da última vez que estive em Almeirim, levei uma fortuna nesta pasta. Pois nessa noite, chuvosa como esta, jurei nunca mais cá voltar. De nada servem os juramentos.»
Jogo? . Batota e loucura? Ou o quê?
Enegrecia. Voltava o dilúvio. A estrada não demorou a alagar-se Procurei manter o carro ao meio da estrada, por saber como estavam traiçoeiras as bermas. Por mais uns arriscados quilómetros, se o motor não falhasse.
Entretanto, o cuidado com a condução aliviou-me das preocupações com o passageiro. A páginas tantas, pediu-me para acender a lâmpada, precisava de escrever. Nunca gostei de conduzir com luzes interiores, mas fiz-lhe a vontade. Segui-lhe os gestos pelo retrovisor: num abre-fecha da pasta, contava dinheiro, guardava notas num sobrescrito, revolvia bolsos, rasgava papéis, voltava a contar as notas. Por fim, vi que enlaçava uma gravata preta. Aquietou algum tempo.
Apagou a lâmpada e perguntou-me se eu conhecia alguém em Coruche.
«Posso dizer que tenho lá um amigo, colega de praça, o Venâncio.»
«O Venâncio?... Antes de estar na praça, trabalhou para o meu pai… Ah, rapaziada!»
Não estive para lhe contar uma trafulhice que fizeram ao ti’ Venâncio, no tempo da guerra. Apareceu no Padre Chiquito todo satisfeito, com um garrafão de dez litros de gasolina, comprada a um candongueiro. Já podia regressar a Coruche. Preparava-se para emborcar a vasilha no depósito do carro, quando um lhe gritou, «Cautela! Empresta aí.» Agitou o garrafão e, num golpe rápido, verteu um pouco na calçada. «Eh pá, não entornes, que isso é oiro!», berrou-lhe o Venâncio. Era água! Água, com umas gotas de combustível.
«Então, se conhece o Venâncio...»
«Sim...?»
«Deixe, não tem importância. Ele deve lá estar esta noite.»
Lá onde? Calou-se. Ouvia-lhe o desassossego, a contorcer-se no assento.
Que noite aquela! Chuva se Deus a dava.
Mais à frente, tinha havido um acidente. Nas traseiras de uma camioneta de cortiça, adornada, esbracejava um homem, pedia que parasse. Haveria feridos? Afrouxei. Veio uma ordem seca do meu cliente:
«Não! Siga.»
Nós, os profissionais do volante, não tínhamos por hábito deixar um camarada em tais aflições.
«O senhor não sabe quem está mais necessitado de ajuda, se aquele homem, se eu. Siga, siga!»
Alma do diabo! Acelerei o possível, para mais depressa me ver livre daquele jagodes.
Não tardou, estávamos a atravessar a Herdade dos...
Não posso manter o discurso na boca do meu pai. Apagou-se-me o nome da propriedade. Contou-me ele toda esta história no verão de 75, quando acabava de ser ocupada e integrada numa unidade colectiva de produção (ou numa cooperativa?): A Esperança Vermelha. Retive aquelas duas palavras, porque associadas pelos jornais da época ao nome de uma agrária dura de roer. Recusava-se a virar costas, resistia com tantas razões quantas as dos intrusos. O caso ainda dava mais brado pela circunstância de, mal chegados, os ocupantes se terem desentendido sobre o modo de gestão dos novos meios. Passavam o tempo em plenários, insultavam-se… Não adianta: varreu-se. Pronto: foi o caso d' A Esperança Vermelha.
Agora, a palavra ao meu pai, para que ele a recue ao seu cliente:
«Podia ser dono disto tudo.».
Dava-me azo de lhe apanhar um pouco da identidade:
«Podia?»
«Pois, mas quem tinha de decidir a minha vida era eu, não eles”.
Fiquei na mesma. Daí em diante, só voltou a falar, nas imediações de Coruche, para me indicar o sítio onde devia deixá-lo.
Foi no que se me afigurou uma moradia de uma outra herdade. Mesmo de noite, notava-se abandono e necessidade de restauro. Ninguém, nem cães. Tampouco uma luz. “Que vem aqui fazer este gebo, numa noite assim?”
Ao fechar das contas, o sujeito mostrou finalmente um ar de simpatia: «Boa viagem, faça por se esquecer que veio aqui. Fico-lhe agradecido, por tudo.»
Saiu do carro, quis abrir o guarda-chuva, mas as varetas ensarilharam-se. Num gesto de fúria, jogou fora o empecilho e meteu-se ao temporal. Desapareceu na escuridão de um pátio.
***
Meses mais tarde, em Santarém, meu pai encontrou-se com o seu colega de Coruche, o Venâncio.
Se conhecia! Tinham sido da mesma criação. Toda a família do Venâncio trabalhara para o pai daquele homem. Um desvairado! Havia outro filho, mais velho, que, depois do falecimento do patrão, abalara para Angola. Com queixas de que a mãe apoiava sempre os excessos do irmão.
Que se formara em Direito, e tinha ou tivera escritório em Lisboa. Viera fazer um bom casamento a Coruche. “Estava arrumadinho e bem arrumadinho”, comprazia-se a mãe. Estaria?
Meteu-se em negócios tortos, na estroina... Num abrir e fechar de olhos, esbanjou bens próprios, os capitais que o irmão lhe ia mandando de África, e a fortuna do sogro teria ido à viola, se a mulher não o tivesse corrido. Apesar de muito jovem, ela não se deixou ir em conversas do boémio. A história, contada por ele, era outra: tinha virado as costas à mulher, por ela ser um pau-mandado do sogro. E... meter roda sobresselente na cama, nas ausências do marido. Grande escândalo, separação.
Desde aí, passou um ror de anos, sem visitar a mãe. Nem por isso deixando de lhe estoirar dinheiro de rendas e negócios Coitada, viveu desgostosa os últimos tempos, convencida de que os dois filhos, se não estavam mortos, estavam na prisão. Talvez no manicómio, o mais novo.
«Mau passadio, a senhora. Sem o apoio da minha mãe, ainda tinha sido pior. Você trouxe-o para o funeral.»
Quando entrou no quartito do velório, não se aproximou do caixão, nem as boas-noites deu. Reconheceu-me. Um abraço frio, sem uma lágrima. Sentou-se ao meu lado, acendeu um cigarro e não tardou a levar a conversa para assuntos da nossa mocidade: pássaros, cavalos, raparigas, bailaricos... «E os banhos no pego, Venâncio?» Lembrava-se do nome de todas as raparigas. Conversa a descalhar com o momento. Pouco lhe adiantei. Ainda assim, não se calava, dando origem a protestos: exigia-se respeito pela defunta. Afinal quem era aquele fulano?
Então, caiu em si. Demorou o olhar no caixão, rodeado de alguidares para aparar o pingolejo do tecto. «Ao que chegou esta casa!», lamentou-se.
Aqui, a minha irmã não se conteve:
«Não me digas que estás com remorsos? Olha: as casas… as casas são como as pessoas, precisam de amparo!»
Pela madrugada, puxou-me para a rua. Agradeceu-me tudo o que a minha mãe tinha feito pela dele. Depois, fraquejou. Era um frangalho, aos soluços, agarrado a mim.
Quando o sosseguei um pouco, embaraçou-me com um pedido: fosse eu pagar o funeral, passava-me um sobrescrito com dinheiro. Chegaria? Tive de aceitar. Mais agradecimentos, mas bruscamente virou costas.
Gritei-lhe: «Onde vais, homem?»
«Ver nascer o sol!», soluçava.
Aqui tem, amigo António. Findo isto, perdeu-se lhe o rasto em Coruche.
Janeiro de 2002