Tonico avançou pela escuridão, procurando evitar lamaçais e poças das últimas chuvas, com o fito no ponto luminoso, ao fundo da azinhaga: a janela da sociedade.
Já chegara à Cidade - pois então! - a electricidade, contudo quando desceria aos arrabaldes? Em Pernes, com produção hidráulica própria, a iluminação pública, desde há vários anos, ia arrumando a noite para um canto. Apesar de sede do concelho, Santarém teve de aguardar melhor oportunidade.
Ele mesmo viria, dentro de poucos anos, a trabalhar em Pernes: senhor António, chofer do senhor Pimentel. Dois cavalheiros que se prezaram. Ali se lhe abriram novos horizontes. Ouvi-lo-emos, mais tarde?
A sociedade, para os bailes de Carnaval, havia investido em modernos candeeiros a petróleo. Dois Petromax. Por força de pressão, ofereciam ao recinto de festas uma nunca vista luminosidade. Petróleo, sem dúvida, mas fossem lá comparar com as lâmpadas das praças da cidade, e ver quem levava a melhor. Da primeira vez que foi, com a nora e a neta Lucinda, ver como o seu Tonico gastava o tempo, a avó Mariana voltou deslumbrada. Com tais lampiões, tendo à mão o açafate da costura, podia-se enfiar uma agulha, em qualquer lugar da sala. Aquilo, além de um luxo, tornava-se, segundo pais de família, garante de bons costumes nos contidos volteios da mocidade. Pois já se sabe que fogo e estopa, nem precisam que o Diabo bufe.
Tonico, nas poucas modas que lhe calhou dançar – ser director de uma sociedade recreativa não é uma benesse para ninguém – achou-se mais nos olhos do seu par, na grande alegria da remexida Emília Mecheira. Um corridinho de doidos
Gostaria de voltar a vê-los – pensava a avó – assim tão certinhos, bailar a moda da pinha, no dia seguinte. Ora! Acabou por afastar a ideia: afinal tais assuntos não lhe diziam respeito. “Quem melhor cama fizer…”
Tudo muito diferente do tempo dela Mariana, e mesmo da geração que se lhe seguiu.
Voltou a lembrar-se dos bailes da Besteira, onde nunca fora, mas de que ouvira. Haveria de falar disso ao neto...
Em casa da Maria Pequena.
Tudo indica não ter existido ninguém com esse nome; houve, sim, uma Maria Baixota. À fé de quem reconta!
Levada da breca. Sabia-se que andara de manta e almofada, pelas encostas do Cervato e Vale de Lobos, com o Comendador Paulino; daí, se aventurara a entrar, à sorrelfa nos celeiros e cómodos das duas quintas dele. Ou a deixar-se esperar por uma horita de folga do vereador, numa hospedaria da cidade, terminado que fosse o despacho na Câmara. Tranquilidade de muitas tardes, numa casa que o Comendador lhe pusera no Bairro do Pereiro. Só um contratempo. Paulino estreara-a, sem a prevenir de que as décadas lhe iam consumindo o desejo. Maria Baixota começou a desconfiar que os atrasos, nas reuniões municipais, eram mais fastio do que desculpa.
Há males que trazem o bem. Ajudam a curar.
Não a procurava o Comendador? Estaria por nascer quem lhe ouvisse uma queixa. Olha ali aquele rapaz, da sua criação, o Joaquim dos Casais da Labaça. Com ele, Maria Baixota continuaria o regalório, até atingir complicadas consequências.
Da troca, soube logo o povo do lugar. E muito antes do teatro e do cinema trazerem, à sociedade recreativa, histórias de ciúme e vingança , correram pelos campos, tabernas, mercearias, bancas do mercado, notícias do grande confronto passional.
Primeira visada, a Baixota. Uma tarde, Paulino, como nos tempos tórridos da paixão, esperava-a no corredor. Tronco nu, alheio à friagem. Que ela se despisse, logo. E ela não tardou, sem já sentir o fresco da rua. Ilusão imediata. Quando a última peça de roupa lhe caiu aos pés, O Comendador atirou-lhe, possesso.
Maria Baixota foi corrida a pontapé. Nua na calçada. Graças a uma vizinha, enfarpelou uma saia e blusa velhas, que lhe disfarçaram a humilhação no regresso à Besteira.
Na rua do Pereiro, ficou o cheiro a roupa queimada, atirada para o fogão pelo Paulino
Mais.De noite, os homens do Paulino vinham incendiar o Casal da Labaça, donde eram escorraçados a tiro de caçadeira. Com duas espingardas, o Labaça Novo procurava responder, pela fresta de um palheiro. Gertudes, sem queixume nem revolta, tirava munições das cartucheiras e passava a arma recarregada ao seu homem. Iriam ali morrer, levados pelas chamas ou varados pelos tiros da noite?
Obrigado a enfrentar o lavrador, Joaquim da Labaça, tivera de assumir toda a mal disfarçada verdade amorosa, perante Gertrudes, a rapariga com quem casara. Mesmo assim, ela ficou do lado do seu homem.
Mariana nem sabia o que dizer do destemor e resignação da Gertrudes Hipólito, meia-irmã de Otília, a sua nora, mãe do Tonico.
Nem tudo era brilho nos bailes da sociedade. No baile de domingo-gordo, uma das luminárias caprichara. Houve que ser desmontada, o que desmobilizou parte dos convivas. Mas aos rapazes da direcção sobravam habilidades para acudir naquela ou em qualquer avaria.
Já quanto a armar a pinha, para o dia seguinte…
Pela primeira vez se dava baile da pinhata no Cruz de Cristo, Do tesoureiro, feitas as contas veio a confirmação: podia-se encomendar uma pinha nova. Sem necessidade de pedinchar empréstimo, nas colectividades dos arredores. Ainda que fosse um objecto apenas usado uma vez por ano, justificava o investimento. Foi-se ao Grémio Operário, consultar o modelo. Primeiro. passou por lá o António Marcelino, latoeiro e mestre. Atento, fez por igual, na forma, capacidade e sistema de abertura.
Quantos gomos abriam, na tua pinha de palavras, meu pai sorridente? Ouvi-te, a mais de sessenta anos de distância, reviver os preparativos do baile.
-Quatro ou seis… Já não sei bem, pá?
- Que importância isso tem, pai? Continue.
- Claro que tem, pá: Olha qu’essa! Quando um homem se esquece destas coisas da sua mocidade, também se lhe varre o modo de como se atam os sapatos ou se leva a colher à boca.
- Pois é…
Não tardaram muito os dias em que tínhamos de te dar o comer em mão, que os chinelos já não precisavam de atacadores.
António continuava.
- O marmanjo que foi ao Grémio aprender os truques de abertura da pinha, não juntava os carretos todos. Não sabia aprender. Dizia ‘tá bem, ‘tá bem, ‘tá bem, sem se dar ao trabalho de ouvir. Assim: «‘tá bem, ‘tá bem, ‘tá bem, ‘tou a ver, não diga mais… Faço já um desenho da coisa.»
Mais risco, mais gatafunho, uns números com umas notas, numa letra que só o gajo era capaz de decifrar...Estava tudo ali. Não havia que enganar.
Depressa virou costas, meteu o papel no bolso do jaleco e pôs-se a caminho da Portela. Nada que enganar. Mais fácil do que toda a gente dizia.
O latoeiro trouxera a pinha. Folha-de-Flandres, igual em tudo ao modelo, fora e dentro, até nas dobradiças, nos ilhós e nos pontos de solda. Gémea! Faltava montar-lhe o sistema de cordéis, para que só um, um dos muitos fios caídos, a pudesse abrir.
Mãos de fada da rapariga com tal sorte. Ao puxão da sorte, soltava-se o casal de pombos, explodiam palmas e vivas. Coroavam-se o rei e a rainha do ano. Digam lá que não anda aqui engendro do Santo Espírito.
Quando o Tonico entrou na sociedade, já o caldo estava a ficar entornado. O homem dos cordéis estava enredado, nos ditos, e naquilo que todos dele esperavam.
Claro que sim, tinha feito um esquema, mas para quê?, se tinha tudo ali, e de dar palmadas na testa. Era só cortar os fios, prendê-los à pinha, puxar. Prender como? Não seria esse o busílis?
“Qual busílis! Tenho tudo aqui” E mais uma palmada na testa.
Ata-desata, abre-não abre, encrava-se mais uma vez. Raios e coriscos.
O tempo a passar. Bonito serviço!
Tonico parado. Escaldado pela doença e pela cura. Não queria tirar o varino. Sem vontade, nem garganta para intervir naquele falatório de azelhas. Que fazer? Voltar para casa, os outros que se amolassem? Não se quadrava com o seu feitio. Optou por aliviar-se do varino, deixando-o dobrado em cima de uma cadeira, ao lado de outra para onde já alguém atirara com agasalhos.
Um papel caído. Desdobrou: eram os apontamentos trazidos do Grémio Operário. Estava ali a chave do problema. Todavia, ficassem os outros a rabiar mais um pouco. Afastado da confusão em torno da pinha, deu-se conta de como devia funcionar a abertura, de quais as voltas dos múltiplos fios. Ninguém reparou no achado.
António, discreto, contido, guardou a folha no bolso das calças.
Quando o desespero paralisou os outros, pediu que o deixassem experimentar. Fez correr os fios. Quem sabe se…
Abriu! Repetiram, para confirmar. Só podia ser assim. Aprovado.
-Era isso mesmo que eu tinha no papel. Querem ver?- disparava o especialista em nós.
Procurou, procuraram, e o papel escondido no bolso do António.
Garantido o baile da pinha.
António voltou para casa, dorido, com calafrios. A avó, ao ouvi-lo:
-Vens melhor, filho?
Que talvez.
Talvez não! Passou o domingo na cama, falhando o primeiro baile da pinha do Cruz de Cristo.