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domingo, 15 de fevereiro de 2015

Puxa, puxa, a vassoura da bruxa


Mensagem da Marta, no telemóvel:

«Avô, compras-me uma vassoura? »

Vamos lá tirar isto a limpo:

- Está, Marta?....

O que eu calculava. Vassoura de bruxa, quer mascarar-se na festa da Escola, amanhã sexta-feira. Vão desfilar pelas ruas de Sintra, antes da pausa do Carnaval. A mãe já lhe comprou a fantasia, só falta a vassoura.

E que posso eu fazer hoje,  neste dia a que a bisa Maria chamava quinta-feira de compadres?

Também havia uma  quinta-feira das comadres, ou seja, a penúltima antes de Terça-feira Gorda. 

-Não, Marta não vou maçar-te  com mais histórias da bisa. Quando um dia quiseres saber delas, já não terás modo de mas ouvir. Vamos à vassoura…

Então não lembro, menina, quando lengalengava contigo, para que comesses mais um colher de sopa: Puxa, puxa, a vassoura da bruxa!

Uma vassoura à  medida dos teus desejos, e dos meus, se possível .

***

Comecei pela loja dos chineses. Plásticos e mais plástico! De palha, já não  se fabrica. Quantos milhares de chineses vassoureiros  terão, entrementes, perecido sem deixar notícias da sua arte? Fez-se-me luz: e esteiras, têm esteiras? Desfeitas , forneceriam junco para a vassoura. Seria apenas uma questão de trabalho. Todavia:

- Só esteilas  plástico!

Não cedo. Ainda me resta a hipótese da drogaria, a última cá do bairro.

 

Já me custa subir esta calçada da Rinchoa, Marta. Ainda ontem por aqui andei a saltitar com a tua mãe e tios. Dava-me jeito ter agora à mão aquele meio cajado de madeira que, há uns tempos, eu destinava a futura bengala.  Está lá em casa, atrás da porta. E agora acabou-se: será cabo da tua vassoura. Tem altura e espessura ideal para o efeito.

Continua a faltar o principal, Marta. Aqui na drogaria, loja de ferragens, tintas e muitos desnecessários  etcs, há tudo, menos a vassoura ideal ou material para a sua feitoria. Não, não vou comprar-te aquele vassourão de piaçaba. Além de não poderes com ele, há de destoar com o teu vestido, vestido que ainda não vi, entenda-se.

 

Não se perca mais tempo. O que nos reserva a solução artesanal? Há um cabo, herdei o saber-fazer mas falta a palha. Que tristeza, nem um maço de ráfia se vende na drogaria dos etcs.

E a ráfia? Cujo último fornecimento fora adquirido, dias antes, por um cliente para enxertias, carregou-me no interruptor.

À falta de barbascos, ineixas ou giestas, com que se varriam pátios quintais e eiras, temos substituintes no quintal da vizinha Ana.

 

«Já está. Gostas,  Marta?» Foto em anexo.

Respondeu-me no fim das aulas:

- Iá, avô, tá o máximo. Que folhas são aquelas, pergunta a mãe.

Ramitos de cana da India misturados com folhas de iúca.

Tudo muito bem amarrado ao cabo, como fazia o bisa António. Com várias voltas de arame de zinco.

- A corda que se vê por fora é só para enfeitar, Marta…

- Beijinho, avô!

Ah se eu pudesse repartir esse beijito com quem me ensinou a fazer vassouras, quando eu tinha oito anos como tu.

terça-feira, 4 de março de 2014

Celestes com espargos


 

Que procuras nestas ruas? No cabide das sombras penduraste a Direita, a par da de S. Nicolau. Sempre que as percorres, por ti repassas.

Perguntas por lojas e lojistas do antigamente. Lembras-te dos inválidos do comércio? Nem esses te poderão facultar o rol. Tenta no talhão dos barbeiros, merceeiros, sapateiros e afins. A sul, sobre o rio, nas lápides do cemitério. Concordo, então não percas tempo e feitio, por esses lados. Volta ao empedrado das tuas ruas.  

Ignora estes avisos de ‘vende-se’, ‘aluga-se’; a sedução de reabertura num novo ramo. Aqui, como pelo país fora, figuram um sushi, armazéns de chinesices, negócios de telemóveis… A par de toda a quinquilharia das marcas estrangeiras, ou labregamente. Dás de barato?! Como te consegues aturar com esse feitio?

Optas pelo que te resta, na cauda do tempo? Aquela pastelaria persistente em adoçar os sentidos dos transeuntes.

 Entra, pelos celestes e conventuais. Quem dizia que a dúzia lhe parecia sempre seis? Avalia os maneios do empregado, enlaçando a encomenda. Como quando, um palmo abaixo do balcão, observavas, ao lado da tua mãe.

No salão, a esta hora ociosa, antes loteadas de vaidades e maledicência, apenas duas mesas ocupadas. Duas idosas, reclamando que lhes amornem as chávenas, com um cheirinho de conversa. “Já vai, dona”, enfada-se o outro empregado. Sais.

Atenção ao ressalto, rebaixaram o pavimento, com o intuito de exclusividade pedonal da rua. Estás no ponto onde deitavas os olhos, por cima do largo, que foi do Colégio e do Seminário. Desfruta, enquanto te não for vendado, o fugaz orgasmo do sol sobre o bronze heroico da estátua esverdeada. Ao fundo, detém-te nos fustigados mármores da igreja onde te batizaram. Só ali voltaste, depois, pela social razão de casamentos ou velórios. De terceiros.

Alto! A poucos passos, no primeiro portal, acocoradas junto de um alguidar… estas dirias que vendiam vassouras, aquelas duas mulheres. «Espargos, senhor!» Apanhados ao lusco-fusco da madrugada, na charneca de Muge. «Cortados por estas mãos.» Confessam que, após cada coleta, desencardem e retocam a gel. Verdes unhas, laivadas de violeta. Modo e atrair compradores. Sobrevida de quem ficou no desemprego. Selvagens – garantem- os espargos. Não fosse a invernia, também já poderiam trazer trufas.

Comprámos espargos, pois claro, contando com o resto da família. A vê-los dali na frigideira. Faltava a colher, para os revolver com cebola e ovos. Não dando para revolta, faça-se ao menos uma revuelta. Quanto à colher, procurássemos à boca da travessa do Postigo.

Precaríssima banca: artefactos de pinho. Colheres de pau, à maneira. Pois levem-se três!

Então e cordas para meninas saltitonas? Ou piões?

«É necessário que as nossas crianças voltem a saber jogar ao pião», sentencia o vendedor.

Boa! E as crianças, onde estão elas? 

 

 

 

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Pelo Natal, todos



Pelo Natal todos
Se chegam
Quem não se chega 
À nossa porta
É aconchegado
No nosso coração
Na nossa memória
Todos

Dizia mais ou menos a minha mãe. Quando me falava de uma manjedoura, berço da Justiça e da Alegria. Embora de pobreza.

Ela, que nada sabia da grande manjedoura
Onde se enfartam os cavalões
da troika
E se aviltam os seus aurigários.

domingo, 1 de dezembro de 2013

O Ferro-velho mais o Só Um dente



Não há muito mais a dizer sobre os bisas Caréus.
Trapeiro que me anunciei, terei, todavia, para concluir, de continuar a falar de trapos.

Antes, deixem-me, ligar o som dos ferros-velhos, dois ou três transeuntes irregulares, colectando, na saca de linhagem, desperdícios, pelas azinhagas da Portela. Ouçam:

É o ferro-velho!
Há pr’àí ferro velho queiram vender?
Peles de coelho?
Trapo?
 Metal?
Chumbo…?
Cera ou lã
Sarro!

Não garanto crédito à ordem dos elementos do pregão, conquanto assegure, com as mãos no lume, que “Cera ou lã” se ouvia –ciròlâ; sarro merecia um apelo à parte.

A passagem do ferro-velho gerava expectativa. Permitia a retirada condigna de materiais e objectos em fim de vida, sem o que ficariam inúteis pelos desvãos dos casais. Se as searas consumiam em estrume a maioria dos biodegradáveis, havia outros que tinham de ser afastados daquele meio. Agora falam todos de compostagem! Olha-me para eles… Se tivessem visto o esterco das fossas, trazido em carros de bois das lixeiras municipais, teriam mais cuidado ao tratar de tais modernices. «Faça uma horta na varanda, aprenda a fabricar o seu próprio composto.» Use correctamente o ecoponto; vá, não pergunte o que ganha com isso. Não ganha você, ganham os que lhe aprazaram estas urbanizações.
Como eu admirava aquele regenerador: o velho ferro-velho. Sim, reparei: repito  a palavra velho. No dia em que começaram a voar, entre carrascos e oliveiras, sacos de plástico, anunciou-se o fim deste agente social.

Trapo? Roupa usada, não ia normalmente parar à saca do ferro-velho. Refazia-se em casa – por pudor de se entregar a costureira ou alfaiate – a menos que a qualidade do tecido e a confecção da peça sucedânea o justificassem. Ou guardava-se para remendos – fundilhos, joelheiras, punhos e colarinhos, palmilhas…. Em último caso, aproveitava-se para mantas.

Vem isto a propósito de outro passante dos casais da Besteira: o tecelão do Arneiro das Milhariças. Metia aos córregos da azinhaga, em Vale de Lobos, com um burro alforgeado com obra acabada; no regresso, carregando trouxas ou sacas de matéria-prima. Andava a maior parte do dia visitando fregueses pelos arredores. Recolhendo tiras de roupas velhas. Rasgadas ao serão de Inverno. Voltava semanas mais tarde, com a encomenda, devidamente prensada no tear. Designávamo-lo por alcunha, ou nunca se lhe reteve o nome ou isso não pesava nas relações estabelecidas. Criatura completamente desdentada, mas a quem sobressaía, sobre o maxilar inferior, uma risonha raiz de incisivo. Era o Só-um-dente.
Solavancava-se tranquilo, sentado, à mulher, em cadeirinha, sobre albarda e alforges….Não permitia o bojo da carga que burricasse escarranchado.

O ferro-velho, o tecelão do Arneiro das Milhariças. Ecologistas, muito antes da palavra ter sido usada. Ai não, não pedantizo com uma de avant la lettre, mas por que não gente pr’à frentex?

E é dentro desta cultura da poupança – tanto ela nos ensinaria na crise dos nossos dias – que eu me vejo, pelos dez anos, na posse de uma samarra, talhada do varino do nosso bisavô Caréu.
Conforme já dito, andara tal abafo pelas costas do meu pai. Primeiro, por empréstimo; dele se apropriando por morte do proprietário. Agasalhara-o ainda em Pernes e nas gélidas noites dos primeiros anos de taxista.
Depois, depois de fervido num caldeiro, enxuto a preceito e aberto pelas costuras, foram os panos do varino levados ao Adriano Mendes ou ao Pedro, alfaiates, da Portela. Qual deles meteu naquilo tesoura para dali me acatitar a primeira samarra. Peça que me durou entre os dez e os doze anos. Quando, acanhadota nas mangas, passou ao meu irmão.

Vejo-me, no braço direito,  por algumas semanas, com o  fumo, do luto da nossa bisa Júlia. Rasgo negro, sobre lã cor-de-camelo. Quatro utilizadores, a bem contar! E, em fim de linha, foi a samarra desfeita em tiras e levado pelo Só-um-dente ?

Com as derivas, sinto-me obrigado a deixar para a próxima o outro trapo.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Tempos de segeiro

Cá estou, outra vez, na oficina do mestre Carlos do Samuel. Onde o meu pai aprendeu o primeiro ofício. Já nos esquecemos da sua triste experiência de britador de pedra, decorrida nas imediações deste lugar de fabrico e reparação de veículos de tracção animal: carroças e charretes, galeras e, até, o modernício  char-à-bancs
Sobre as galeras, registei que, entre outras missões mais vulgares, traziam, ao tempo, com muita chicotada e  várias mudas de parelhas, o peixe fresco, de Peniche. Fazia-se entreposto, em S. Pedro, no entroncamento da estrada de Rio Maior com a Nacional 3. As mulas espertas aproveitavam as paragens de descarga para, soerguendo alternadamente as patas, aliviarem os músculos do esforço da corrida. Também as pessoas deviam usar da mesma inteligência, para dar folga ao corpo, sem quebrar o rendimento do trabalho. Donde viria esta lição de meu pai?
O charabã? Pode-se perguntar à avó Google.  Se ela nos mostrar o boneco, logo me tira a vontade de mais escrever. Carro longo, dois relativamente cómodos bancos laterais, bagagens arrumadas por baixo dos assentos, entre as duas filas de passageiros…
 Mal comparado, como as carruagens do metropolitano de Lisboa, na linha do Aeroporto. A diferença: estas não têm cocheiro, trintanário, bestas e moscas. Digamos, numa primeira observação. Quanto aos cheiros, podem ser muito similares, depende da lotação.
Atenção! A nossa próxima paragem não será na Alameda ou nas Olaias, mas em Alcanede! Dêem tempo ao escrevenhador, nunca foi de mata-cavalos. Neste entrementes, troteja à média de uma página por semana.
Voltemos ao tal Carlos, mestre segeiro, filho do Samuel
Não conheci o Carlos nem o velho Samuel; deste apanhei umas luzes, pela boca da neta, uma senhora – ainda viva? -  da Portela,  a Maria Antónia, filha do pedreiro Brás, irmão do Carlos. Mestre Samuel fora carpinteiro da confiança do Alexandre Herculano, na Quinta de Vale de Lobos. Conforme ouvi, há um par de anos, num velório. Há pessoas que não suportam estar caladas nesses momentos.
Situava-se a oficina do segeiro, pelo que, mais tarde, se veio a chamar a volta do Melro. Uns dois passos da casa da nossa gente. Ferro e madeira tornaram-se materiais com que, cedo, o meu pai se familiarizou. Ter neto segeiro era o sonho dos Caréus. 
“ Tinha de arranjar uma maneira airosa de me safar dali”, recontava o meu pai. Não se libertava do desejo de ser aprendiz noutras oficinas; de automóveis, que se iam instalando pela cidade.
Embora não fosse escasso em habilidades, no segeiro: rodas, travões, molas, corte de madeiras, e mais o quê?... Também dava grande ajuda, na escrita, superando o próprio patrão na cobrança de dívidas. Por mais retardadas, o António sempre ia fazendo pingar para a bolsa do credor. Com frequência era mandado, com uma velha pasta, onde quer que houvesse um freguês atrasado. Transporte? Que se arranjasse, no vaivém dos carroceiros da estrada.
Andaria pelos quinze anos. Já tinha aquecido o lugar, quando o nosso avô lhe fez o reparo de, numa dada semana, ter saído todos os dias, de pasta. Meu pai não perdeu a oportunidade: ressentido, lembrou ao seu que não fazia sentido terem-no impedido de aprender mecânica de automóvel, em Santarém, – alegando a sua pouca idade, a distância entre a casa a cidade, as duvidosas companhias, estrada fora – se afinal passava o tempo em voltas mais largas.
Ora, estava dito, estava dito. Crescesse e aparecesse, talvez, com o tempo, as coisas mudassem.

Na oficina, as mais das vezes estava de ferreiro, junto da forja e da bigorna, malhando braçadeiras para as molas. Coisa tão simples como isto: tomar uma barra de ferro, aquecê-la ao rubro, dobrá-la de acordo com a espessura das lanças, arrefecê-la na água da selha; para, finalmente, lhe perfurar os orifícios por onde, mediante, parafuso e porca, abraçaria o jogo de lâminas de aço que amorteciam o veículo.
Sei como era, por ter visto alguém fazer esta operação, evitando assim que fosse meu pai a executá-la. Ocorreu durante uma avaria, quando seguíamos para a Nazaré. Por excesso de carga ou desequilíbrio na sua arrumação, numa curva, antes de Alcanede, o automóvel inclinou-se para a valeta. Mola partida.
Meu pai manteve a sua calma dos piores momentos. Continuámos, com todo o desespero da minha mãe e inquietação dos filhos - Chegaríamos a ver o mar?  Atravessámos  a localidade em archa lenta. Tinham-nos assinalado uma oficina de automóveis, na estrada para os Amiais. Tudo se resolveria.
Com mais entraves. O dono da oficina, ia fechar, já passava das cinco da tarde. Não tinha braçadeiras, a forja estava apagada e não sei mais quantas provas de desinteresse.
Na sua vez de falar, meu pai disse:
- Muito bem, pago-lhe o que for, não precisa de se incomodar, por favor, arranje-me ferro e carvão, eu faço a braçadeira. Se não, diga-me onde é o ferrador; tenho a certeza que o homem me há-de desenrascar.
Decisão e mangas arregaçadas, do lado meu pai. O outro aguentou o desafio:
- Não, eu trato disso.
Fosse  acendendo a forja, enquanto ele ia buscar o ferro, a um anexo da oficina.
Ao voltar, a forja estava ateada.
Depois vimos com quantas marretadas se fazia uma braçadeira. Em Alcanede, teria eu os meus catorze, dez o Titi. E a praia à nossa espera. 
Voltemos ao segeiro.
-Vamos visitar a oficina do Carlos, pai? – era o meu convite.
Entrávamos, farsantes:
- Olha ali ao fundo, a grande roda-de-balanço… E mais além, encostada à parede, a arca;  normalmente guardava feno, para o caso de algum animal precisar de penso. Por isso lhe chamávamos o caixão da palha.
- O caixão do galego?
- Pois é isso mesmo, “o caixão do galego”. Ah já ta contei? Contada está.
Não ma contara a mim, a do galego, ouvira-lhe uma tarde, repetida para gáudio da bisa Júlia, na casa-de-fora da avó Otília.
Parava, pela oficina, um galego, maltês dos sete ofícios, e mil destinos. Deixavam-no pernoitar, ou refazer-se com umas horas sono, durante o dia. Acomodado na palha. Quando acordava, berrava que ia dar a volta ao mundo, agradecia a todos los amigos e Hasta la próxima!
Acontecia que os aprendizes, por chufa, assim que o galego pegava no sono, baixavam a tampa da arca. Nem os ruídos da oficina o perturbavam nem o seu ressonar de trompa diminuía o compasso do trabalho.
Quando despertava, havia risota e palmas. Empurrava vagarosamente a tampa. Sorriso de santo malandreco, erguia o tronco e anunciava, com o sinal da cruz:
- Rixuxitei! Estan todos perdonados.
O Filho do Homem redivivo das palhas, segundo a revisão bíblica do meu pai.
A nossa bisa Júlia, numa alegria ofegante, pedia mais­­­­­­­­­­­­­:
- Ó Tonico, conta a outra. Que patifes vocês eram!
Começava a ouvir-se o ronco do galego, quando um aprendiz, não satisfeito por a arca já se encontrar fechada, refinou a partida:
Ó pessoal, ajudem-me a pôr aquela roda em cima da tampa.
Tratava-se de uma roda de nora, em ferro, cujos dentes tinham de ser rectificados, para poderem continuar a içar os alcatruzes da profundeza do poço.
Quatro esforçados pares de braços, assentaram a carga metálica. E voltaram às suas lidas.
Acordado, retido no interior da arca, berrava o galego por liberdade. Insultos, ameaças, rogos. Nada!
A certa altura, o drama:
Xá estói todo mixado!
-Ai Tonico. Cala-te, se não ficamos como esse coitado.

Outra imagem da oficina, guardada por meu pai até fim da vida era a da passagem dos carreiros de Alcobaça, para a feira da Piedade. Carros de bois, atulhados com cestos de maçãs. Saíam pouco depois do sol-posto de sexta-feira, seguiam por S. Jorge, Porto de Mós; venciam a serra; descendo  por Alcanede, Tremes… E paravam, no fim do sábado, em frente da oficina.
Ofereciam água ao gado, petiscavam com o pessoal, retomavam a caminhada. Até à feira. Deixavam maçãs-de-espelho, camoeses – um fartote –, esvaziavam uns púcaros de água-pé. Elogiavam a bebida e as azeitonas pisadas.
Prometiam voltar, no regresso. Por norma, não cumpriam. Com os carros aliviados, dois dias mais, tarde, rumavam por Rio Maior, até à terra de origem.
A serra dos Candeeiros não tinha altura suficiente para separar os povos  das suas encostas.

Nota: A 18 de Novembro de 2013, seria o centenário do meu pai.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

A guizeira


 Chegaram-me repetidas notícias daquele cavalicoque do avô Joaquim Henriques. Teria o garrano, de jarretes nervosos e rijos, ficado a substituir a mula assustadiça? Aquela azémola emperrada pelo terror taurino, à Carne Coita? Fantasio pela positiva, querida Til, querendo reviver os dias serenos dos nossos bisas Henriques.
Do cavalo também me chegou a guizeira. Acompanha-me há mais de cinquenta anos; passou por Coimbra. Nunca a pendurei ao pescoço de animal nem lhe dei outro préstimo, conforme à sua função primeira. Pendurada sim, na parede: peça de um museu a-haver. Mais uma extravagância dos vinte anos. Quantos objectos de então – e quantas quimeras – se perderam?
Dirás: ficou a cinta… E pouco mais, acrescento. A guizeira extraviou-se. Saiu do prego, para pintar a parede, e por aí anda, entre livros. À mistura com um bico de escamisar da minha bisa Perpétua, mais uma caneta de marfim. De um lavrado finíssimo, afiada num extremo, onde recebia a pena de pato. Bugigangas do meu escritório? Não, peças anárquicas neste gabinete de curiosidades, sedeado na memória.
Da caneta, acrescentarei ainda a proveniência: a quinta dos Sampayos. Onde aquela minha bisa, chegou com uma filha nos braços, para ser ama de leite. Ali casou com Jacinto Marona, teve mais três crianças e viveu até à mudança de proprietário. Por outras palavras, da quinta dos Anjos foram os Maronas residir para os Casais da Labaça. Apago isto? Não apago! Flutue o parágrafo, enquanto lhe não dou seguimento. Porque a minha  presente obrigação é falar do tal cavalicoque.
 Retomando a  crónica ouvida ao seu cuidador.
Por muito exausto que a voltasse da oficina, não descartava o Tonico a incumbência de zelar por água, palha, ração devidas ao bicho. Também volteio, no pequeno lote que o nosso bisa adquiriu, por aforamento da quinta dos Pinheiros. Atrevia-se a jogos hípicos, motivado pelas recentes rivalidades de cavaleiros célebres.
  Antes de mais, uma corrida em osso, no lombo do cavalinho. Circuito fechado, saindo do palheiro, descendo a azinhaga pelo lado da propriedade do avô Francisco Hipólito, a que se viria a chamar o “Bairro Azul”, e entrando, para poente, na fazenda da quinta dos Pinheiros. A galope o bicho, grito de encorajamento a um voo sobre a valinha de drenagem daqueles foros. Que mais queria um rapazola, com fumaças de Zé Tanganho, montado num cavalo sempre tão dócil? Ou quase.
 Uma ocasião, lançado a galope, nega-se o quadrúpede ao salto, passa-lhe o cavaleiro por cima das orelhas, para aterrar, de rabo, além do obstáculo. Sem lesão de osso, por sorte.
Normalmente o giro completava-se contornando a propriedade do Zé Beja. Um nico de caminho, se comparado com o apaixonante volta nacional de 1925. Ganha por José Tanganho; não pela velocidade, antes pela inteligência e respeito do cavaleiro para com a montada.
Ao comando da carroça, Tonico aprendia com o avô a ser igualmente respeitador do animal da casa. Evitando o esfalfá-lo em aventurosas correrias.
Pela manhã, António desatava-o da manjedoura; na rua, oferecia-lhe umas favas na palma da mão, depois punha-lhe o arreio, atrelava-o à carroça da venda.”Tudo em ordem!” , concluía o avô, atento. Apertada ao pescoço do garrano, lá estava a “coleira dos dezoito guizos”, música suficiente tal gente e tal sítio. Estava pronta a "carroça da venda".
Mas onde é que eu fui encafuar o diabo da guizeira? Há-de aparecer, quando menos se espera. Prometo que voltarei a limpar os guizos. Tentando de novo uma explicação para o facto de todas aquelas ruidosas esferas terem sido fundidas para uso de equinos militares, conquanto provenientes de diversos regimentos. A correia estará ressequidíssima, há-de levar sebo. Depois, tiro-lhe uma fotografia e - por que não?- ponho no Facebook. Curto!
A venda dos produtos da horta, foi continuada, na praça ou pelos arredores, pela nossa avó Otília, quando os sogros envelheceram. Com o mesmo cavalinho. Será por um tempo em que o meu pai rompe com o seu. A tia Piedade, tua mãe, me deu razões, não vindo agora ao caso. Tonico passa a viver com os avós Caréus. Por força de um grito de rebelião, a paredes-meias com a habitação paterna. Talvez o carinho com que a avó Mariana tratava aquele primeiro neto, desde garoto, o empurrasse para essa mudança. Que em nada alterou a ligação com os pais e irmãos: sempre cordial e solidário, embora sem ceder no protesto. Contra o excessivo consumo de vinho do seu pai. Aliado a indolência de trabalhador. “Quantas vezes a minha mãe teve de desempenhar o papel da mulher e do homem da casa?” – perguntará a tua mãe.



Sei, no entanto que, além  da avó Mariana, o avô Joaquim Caréu lhe era do mesmo modo querido. Foi ele que o convenceu a ir aprender o ofício de segeiro, na oficina do mestre Carlos do Samuel.
Tonico, no fim da infância, acompanhava este avô, pelo S. João, às Caldas da Rainha, para o banho tradicional. O avô enfarpelado no fato do seu casamento: jaqueta, colete, calça à boca-de-sino; cinza-azulado, padrão de xadrezinho miúdo. Para cumprir a devoção que, em vez de lhe aliviar os queixumes reumáticos, o expunha a um  ano de galhofa. Como poderiam, repetia a avó, a fé no santo, mais um par de encharcadelas nas termas, remediar as dores do seu homem? Talvez as senhorias, que pelas Caldas preguiçavam semanas, fossem mais favorecidos pelas virtudes termais.
 Segundo a avó, tinham de mudar de destino. Atravessar a serra, pois claro, mas chegar à beira-mar. Levar as crianças, por dois ou três dias, à Nazaré. A olhos vistos viriam saradas das escrófulas, mais desemborradas. Quanto ao reumatismo do avô, experimentasse os banhos quentes da praia, nada que se comparasse às águas das Caldas, era o que diziam. Como todos mal cabiam na carroça, ela, Mariana sugeria que fossem de charabã. Não, não ficava barato, pois não; olha: vão-se os anéis sobram os dedos.
O serviço de charabãs, entre a Nazaré e Santarém, trouxera as peixeiras. Uma tarde, apareceu em casa da avó Mariana a peixeira a quem, de manhã,  passaram a comprar. Tão fresco como o peixe que chegava, de galera, ao mercado. Mais barato. Depressa a vendedora despachava as duas canastras.
Por desencontro com o charabã de regresso, viu-se a peixeira sem saber onde passar a noite. Tendo  ido pedir cómodos  aos Caréus,  responderam-lhe com  ceia e mantas, dormiu no palheiro. Satisfeita, ao café do dia seguinte, ofereceu acolhimento em sua casa,  quando aquela família  fosse à praia. Se os pobres  e remediados deste mundo mutualizassem os pertences, não haveria ricos.Aí estava mais uma razão para a Avó levar os netos a banhos. O Tonico, a Lucinda e o Manel. Quando nasceu a Piedade, não sei se foi incluída no grupo de banhistas.

Meu pai, mesmo partilhando das dúvidas da avó Mariana, não perdia oportunidade de estimular o seu avô a realizar, só com ele, a viagem anual às Caldas. Via-se incumbido da condução, mas também, na véspera, de uma passagem pela oficina do mestre Carlos, para lubrificação de rodas e rosca do travão.
- Levamos a guizeira, não é, avô?
- Nem a carroça andava, se o cavalo não tivesse charanga!
Até durante os raids fantásticos do Tonico, à volta da casa, a guizeira era atada ao pescoço do cavalo.
Daqui estou a ouvir meu pai, muitos anos depois, a outras velocidades, no velho Vauxhall-14 conduzindo-nos para a Nazaré. Apontando os fontanários onde o cavalo se dessedentava, o número de carroças ultrapassadas. De outros banhistas do S. João, a caminho das Caldas, com tiro de bestas mais ronceiro.
 Ocasionalmente, no primeiro de Setembro, o avô, saindo como sempre de madrugada, com lanterna acesa, ficava-se na feira de Rio Maio; por umas arrobas de cebolas, um pipo para agua-pé. Viagem muito menos emocionante, confessava o meu pai.
É que, passado Rio Maior, no Alto da Serra, atravessavam “uns ermos medonhos”, onde quadrilhas  acoitadas  nas furnas, por cima da estrada, atacavam outrora  os passantes. Sem deixar às vítimas oportunidade para se irem dali contar desgraças. Terrores antigos, felizmente. Muitos anos mais tarde, mesmo de automóvel, esses medos ainda me contagiavam, pela  voz do  meu pai. Minha mãe apontava nomes de chefes quadrilheiros, alguns a quem a justiça nunca conseguiu deitar mão.
Por mais que o avô lhe garantisse a segurança do caminho, Tonico tudo fazia para que o cavalo dali os levasse depressa. Mas a carroça parecia não andar, nunca mais chegavam ao destino.
Adiante, cavalinho.
- Valha-me Deus, avô Caréu. Segeiro é ofício sem futuro.
Queria, sim, ser mecânico de automóveis. Fascínio inexplicável. Contrariava o pai:
- Ainda és muito novo para ires aprender outro ofício em Santarém.
Que se aguentasse. Até um dia.
Agora eu. Pelos meus dezassete anos, regressava da quinta dos Pinheiros, com uma carroçada de milho-basto: forragem para o gado. Em frente da sua casa, o avô António pediu-me que parasse. Disse com voz roufenha - quantas onças de  Superior já tinha queimado? - que aquilo era uma oferta para eu estimar.
Aquilo era a guizeira.
- …do cavalo do meu pai, neto… Fica sabendo que teu pai gostava muito desse animal.
Rio de Mouro, Setembro-Outubro de 2013

terça-feira, 17 de setembro de 2013

O Petisco do Almoster



Quando, no fim da vida de meu pai, procurei o que lhe chegara dos amores da Maria Baixota, fiquei apenas com meia história. E dela me desembaracei no capítulo precedente. Sem acrescento de jota.

Entretanto, daquela mulher, remanescera mais um episódio. “Muito mais pândego”, trazido pela boca da avó Mariana. Ligado aos bailes.

1994. Domingo de Agosto, tarde longa, propícia a conversas transviadas. As últimas, seguramente. Estávamos a caminho do Cabeço. Se atingíssemos o cimo, assim as forças a tanto se lhe prestassem, tinha meu pai um pedido a fazer-me: volvesse a casa, para lhe trazer a cadeira. De rodas, as pernas estavam esgotadas.


 Depois de o acomodar, perguntou-me, para confirmar os seus débeis olhos:
- Lá ao fundo, a casa da ti’ Maria Baixota continua destelhada?
Que sim, desde um forte vendaval, Invernias atrás.
        - Está como eu… Já ninguém lhe pode acudir.
- Ora essa…
- Não te assustes. As casas vão-se como as pessoas. Continuarão vivas, enquanto alguém delas falar.

Semi-abre os olhos, com a mão encarquilhada estendida  mais para norte.
-  Por onde segue aquela roda-viva, entre a Quinta Velha dos Gatos e o caminho das Lobas, era a casa da Tecedeira. Entre amendoeiras. Ana tecedeira, amiga da avó Mariana.
Mais uma história, pensei.

Uma casa soterrada pela auto-estrada? No entanto, em garoto, cruzava eu aquele local com frequência, nas minhas errâncias, por via de ninhos, bicharada, fruta franca, sem nunca ter descortinado, nem ouvido sobre a existência de tal ruína. Amendoeiras, figueiras, abrunheiros, moldura contumaz de uma casa esbatida? Excepto essa hipótese, só me vinha à memória terra agrícola, nua, castigada pelo tempo e pelas searas. Mais uns ditos acerca dos lobisomens, aliás os blisomens, troteando entre o entroncamento da Oliveira Santíssima  e o  poço do
- Era o poço do… Ai, raios partam esta cabeça, exasperava-se meu pai.

Faltava-lhe o nome do homem que lá se fora afogar.
Imprevidência a minha, ter arriscado o retorno ao assunto do suicídio! Sobre isso, estávamos entendidos. Mudemos de rumo:

- Pronto, pai, havemos de esclarecer isso com a mãe.

A mãe tinha as coisas arrumadas: a auto-estrada passou sobre o preciso sítio onde morara a última tecedeira das redondezas. Na sua meninice, ela deslocara-se a essa casa com a sua avó Perpétua, que lá mandava fazer obra. Outro ermo, não muito longe dos Casais da Labaça, onde minha mãe fora nascida e criada.
O primeiro abalo sofrido pela habitação da tecedeira viera do António dos Gatos que, pela violência, reclamara a posse plena da sua propriedade, alegando rendas em atraso. Indiferente à privação de abrigo da artesã. Contra o rigor de uma tal exigência, protestava a avó Perpétua, desde o dia em que vira a tecedeira ser arrastada pelo senhorio, até ao fundo da escadaria do prédio. Sem valimento. A rendeira morreu; o António dos Gatos mandou demolir. Caída a casa, caiu a causa…
- De que família era a artesã?
- Ana Tecedeira, sogra do Calqueres…
O Calqueres, de quem eu mal me lembrava, tinha sido capataz da lavoura do meu avô Marona.
- Onde isso já vai, mãe!
- Pois é para que saibas: o teu pai está de todo, só fala do passado, dos seus avós. Ao que nós chegamos, nós os velhos…

Voltemos então aos bailes da Maria Baixota.

Numa noite de festança, o companheiro dela, um a quem chamavam o Almoster, surpreendeu por oferecer petisco à rapaziada. Pouco, mas de boa vontade, não se armassem em glutões.
Saladinha de orelha. Grelhada na véspera, talvez com algum esturro, admitia, mas temperada a preceito: sal, cebola, alho, coentros, bom vinagre e melhor azeite. Cornichos ou pimenta, se preferissem pitéu mais puxavante. Por sorte que o vinho era farto. Espetaram-se garfos e navalhas. Escorria molho pelos dedos e queixos.

- Mas, ó diabo, isto é orelha de quê, ti’ Almoster?
- De porco, r’paz, não te sabe bem?! Apanhou calor a mais, mas por este preço…

A carne era oferta, quem entrava na roda só pagava pão e vinho. Ajudando nas custas do petróleo.

Muito embora de invulgar sabor, bem demolhada nos temperos e na pinga, estava a orelha um pitéu, acabaram todos por concordar. Só restou o prato. Enxuto.

O prato, e uma dúvida: onde é que se escondia a marosca do Zé d’Almoster? No regresso do baile, geraram-se rumores.

Que poucas horas depois, ao lusco-fusco da madrugada, foram conprovados. O João Carolo e um vizinho, petisqueiros vorazes, voltaram, ocultos por balças e valados, à Besteira. Perto da casa da Maria Baixota, no Cerrado do João Trigoso, afastaram as palhas e silvas: ali seria. Tinham vindo apetrechados para cabal esquadrinhamento.
 Não foi preciso muito esforço. Meia dúzia de pazadas de terra fora, o dito ficou escancarado: mal cheiroso, sem orelhas e asno.
Patifório do Almoster!