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quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

 

ESCREVIVÈNCIAS  

(2ª SÉRIE)

1.Quem se mete em atalhos...

 Encurtava por ali caminho, passante que, do lado norte, a pé, se destinasse à cidade de Santarém. Desde que tivesse coragem de abandonar a estrada nacional, sob o frondoso arvoredo de Vale de Lobos, a quinta-refúgio Alexandre Herculano. Quem se mete em atalhos…

 Houve um tempo em que  J. admitia uma intenção de viagem ao invés do historiador. Deprimia-o aquela representação do agricultor abatido sobre um cesto de vime emborcado. Insistia em ouvir, dos velhos da Portela e Azóia, relatos    difusos, da passagem de Herculano pela quinta. E mais nada sabia sobre a personagem.

 Coragem para a solidão do caminho. O imprevisto de uma espera. «Veem-se as moita, não quem atrás delas se esconde?, na filosofia rural

Coragem para o esforço da subida. Nesse seu primeiro troço, a azinhaga mais não era do que um córrego castigado pelas invernias. Sem restauro nem zelador. Pedregoso, por sucessivas descombras. Péssimo piso de pé-posto, até para o gado que por ali se conduzia às feiras.

. Retinha o deslizamento das encostas, o raizedo de espécies selvagens ali confinadas pela vizinhança das lavouras. Resistente a pastoreios e queimadas. Carreiro de “onde pões o pé, pões o nariz”, se não te agarras ao ramedo dos carvalhos, zambujeiros, freixos, aroeiras, murtas, carrascos…

 

E destes restos do bosque medieval sobravam ecos da extinta ou já escassa fauna, nos topónimos de parcelas cultivadas. Além dos Lobos, as Lobas, o Cervato, a Texugueira…


 Caminhemos, que já chegámos ao Carreiro do Caracol. Sim, a conduta do Alviela , que se cruzava , no ponto em que o caminho se tornava mais transitável. Para carroças e carros de bois, então.

O que é que isto tem a ver com a Escola da Portela?

 Tem. Minha mãe me explicou. E eu vos direi, na próxima.


Atenção, se enfastiar, avisem. Comentem.


Nota de publicação

Os textos desta série não são originais.  Foram por mim publicados num blogue de grupo dos Antigos Alunos de uma escola primária, nos arredores de Santarém. De onde os retirei, para arquivo pessoal, por razões que não vêm ao caso, Nunca foram renegados. sempre lhes tive afeto.

Daí que, passada uma duzia de anos, os deposite neste painel, para não caírem já no esquecimento. Gostaria que fossem merecedores de leitura, pelo menos por parte das minhas netas e dos meus netos.

domingo, 1 de março de 2015

PRENDA BRECHTIANA

Acordei de pernas para o ar. São mesmo 71? Essa agora; são apenas 17.

Console-me aquela desculpa de que ninguém tem a mínima sageza aos 17 anos. Idem, digo eu, se fizer o pino aos algarismos.

Por necessidade de  reencontrar  acontecimentos de 1961, tinha eu,  aí sim, os meus sisudos 17 anos, dei comigo a carrear para aqui sabedoria de Brecht.

Que reparto com quem, de boa memória e coração gentil,  hoje me telefonou.

Obrigado.





"Todas as artes contribuem para a maior de todas as artes, a arte de viver."

Bertold Brecht



"LOUVOR DO ESQUECIMENTO

Bom é o esquecimento.
Senão como é que
O filho deixaria a mãe que o amamentou?
Que lhe deu a força dos membros e
O retém para os experimentar.

Ou como havia o discípulo de abandonar o mestre
Que lhe deu o saber?
Quando o saber está dado
O discípulo tem de se pôr a caminho.

Na velha casa
Entram os novos moradores.
Se os que a construíram ainda lá estivessem
A casa seria pequena de mais.

O fogão aquece. O oleiro que o fez
Já ninguém o conhece. O lavrador
Não reconhece a broa de pão.

Como se levantaria, sem o esquecimento
Da noite que apaga os rastos, o homem de manhã?
Como é que o que foi espancado seis vezes
Se ergueria do chão à sétima
Pra lavrar o pedregal, pra voar
Ao céu perigoso?

A fraqueza da memória dá
Fortaleza aos homens."

Bertold Brecht, in 'Lendas, Parábolas, Crónicas, Sátiras e outros Poemas'
Tradução de Paulo Quintela 
     

 

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Puxa, puxa, a vassoura da bruxa


Mensagem da Marta, no telemóvel:

«Avô, compras-me uma vassoura? »

Vamos lá tirar isto a limpo:

- Está, Marta?....

O que eu calculava. Vassoura de bruxa, quer mascarar-se na festa da Escola, amanhã sexta-feira. Vão desfilar pelas ruas de Sintra, antes da pausa do Carnaval. A mãe já lhe comprou a fantasia, só falta a vassoura.

E que posso eu fazer hoje,  neste dia a que a bisa Maria chamava quinta-feira de compadres?

Também havia uma  quinta-feira das comadres, ou seja, a penúltima antes de Terça-feira Gorda. 

-Não, Marta não vou maçar-te  com mais histórias da bisa. Quando um dia quiseres saber delas, já não terás modo de mas ouvir. Vamos à vassoura…

Então não lembro, menina, quando lengalengava contigo, para que comesses mais um colher de sopa: Puxa, puxa, a vassoura da bruxa!

Uma vassoura à  medida dos teus desejos, e dos meus, se possível .

***

Comecei pela loja dos chineses. Plásticos e mais plástico! De palha, já não  se fabrica. Quantos milhares de chineses vassoureiros  terão, entrementes, perecido sem deixar notícias da sua arte? Fez-se-me luz: e esteiras, têm esteiras? Desfeitas , forneceriam junco para a vassoura. Seria apenas uma questão de trabalho. Todavia:

- Só esteilas  plástico!

Não cedo. Ainda me resta a hipótese da drogaria, a última cá do bairro.

 

Já me custa subir esta calçada da Rinchoa, Marta. Ainda ontem por aqui andei a saltitar com a tua mãe e tios. Dava-me jeito ter agora à mão aquele meio cajado de madeira que, há uns tempos, eu destinava a futura bengala.  Está lá em casa, atrás da porta. E agora acabou-se: será cabo da tua vassoura. Tem altura e espessura ideal para o efeito.

Continua a faltar o principal, Marta. Aqui na drogaria, loja de ferragens, tintas e muitos desnecessários  etcs, há tudo, menos a vassoura ideal ou material para a sua feitoria. Não, não vou comprar-te aquele vassourão de piaçaba. Além de não poderes com ele, há de destoar com o teu vestido, vestido que ainda não vi, entenda-se.

 

Não se perca mais tempo. O que nos reserva a solução artesanal? Há um cabo, herdei o saber-fazer mas falta a palha. Que tristeza, nem um maço de ráfia se vende na drogaria dos etcs.

E a ráfia? Cujo último fornecimento fora adquirido, dias antes, por um cliente para enxertias, carregou-me no interruptor.

À falta de barbascos, ineixas ou giestas, com que se varriam pátios quintais e eiras, temos substituintes no quintal da vizinha Ana.

 

«Já está. Gostas,  Marta?» Foto em anexo.

Respondeu-me no fim das aulas:

- Iá, avô, tá o máximo. Que folhas são aquelas, pergunta a mãe.

Ramitos de cana da India misturados com folhas de iúca.

Tudo muito bem amarrado ao cabo, como fazia o bisa António. Com várias voltas de arame de zinco.

- A corda que se vê por fora é só para enfeitar, Marta…

- Beijinho, avô!

Ah se eu pudesse repartir esse beijito com quem me ensinou a fazer vassouras, quando eu tinha oito anos como tu.

terça-feira, 4 de março de 2014

Celestes com espargos


 

Que procuras nestas ruas? No cabide das sombras penduraste a Direita, a par da de S. Nicolau. Sempre que as percorres, por ti repassas.

Perguntas por lojas e lojistas do antigamente. Lembras-te dos inválidos do comércio? Nem esses te poderão facultar o rol. Tenta no talhão dos barbeiros, merceeiros, sapateiros e afins. A sul, sobre o rio, nas lápides do cemitério. Concordo, então não percas tempo e feitio, por esses lados. Volta ao empedrado das tuas ruas.  

Ignora estes avisos de ‘vende-se’, ‘aluga-se’; a sedução de reabertura num novo ramo. Aqui, como pelo país fora, figuram um sushi, armazéns de chinesices, negócios de telemóveis… A par de toda a quinquilharia das marcas estrangeiras, ou labregamente. Dás de barato?! Como te consegues aturar com esse feitio?

Optas pelo que te resta, na cauda do tempo? Aquela pastelaria persistente em adoçar os sentidos dos transeuntes.

 Entra, pelos celestes e conventuais. Quem dizia que a dúzia lhe parecia sempre seis? Avalia os maneios do empregado, enlaçando a encomenda. Como quando, um palmo abaixo do balcão, observavas, ao lado da tua mãe.

No salão, a esta hora ociosa, antes loteadas de vaidades e maledicência, apenas duas mesas ocupadas. Duas idosas, reclamando que lhes amornem as chávenas, com um cheirinho de conversa. “Já vai, dona”, enfada-se o outro empregado. Sais.

Atenção ao ressalto, rebaixaram o pavimento, com o intuito de exclusividade pedonal da rua. Estás no ponto onde deitavas os olhos, por cima do largo, que foi do Colégio e do Seminário. Desfruta, enquanto te não for vendado, o fugaz orgasmo do sol sobre o bronze heroico da estátua esverdeada. Ao fundo, detém-te nos fustigados mármores da igreja onde te batizaram. Só ali voltaste, depois, pela social razão de casamentos ou velórios. De terceiros.

Alto! A poucos passos, no primeiro portal, acocoradas junto de um alguidar… estas dirias que vendiam vassouras, aquelas duas mulheres. «Espargos, senhor!» Apanhados ao lusco-fusco da madrugada, na charneca de Muge. «Cortados por estas mãos.» Confessam que, após cada coleta, desencardem e retocam a gel. Verdes unhas, laivadas de violeta. Modo e atrair compradores. Sobrevida de quem ficou no desemprego. Selvagens – garantem- os espargos. Não fosse a invernia, também já poderiam trazer trufas.

Comprámos espargos, pois claro, contando com o resto da família. A vê-los dali na frigideira. Faltava a colher, para os revolver com cebola e ovos. Não dando para revolta, faça-se ao menos uma revuelta. Quanto à colher, procurássemos à boca da travessa do Postigo.

Precaríssima banca: artefactos de pinho. Colheres de pau, à maneira. Pois levem-se três!

Então e cordas para meninas saltitonas? Ou piões?

«É necessário que as nossas crianças voltem a saber jogar ao pião», sentencia o vendedor.

Boa! E as crianças, onde estão elas? 

 

 

 

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Pelo Natal, todos



Pelo Natal todos
Se chegam
Quem não se chega 
À nossa porta
É aconchegado
No nosso coração
Na nossa memória
Todos

Dizia mais ou menos a minha mãe. Quando me falava de uma manjedoura, berço da Justiça e da Alegria. Embora de pobreza.

Ela, que nada sabia da grande manjedoura
Onde se enfartam os cavalões
da troika
E se aviltam os seus aurigários.

domingo, 1 de dezembro de 2013

O Ferro-velho mais o Só Um dente



Não há muito mais a dizer sobre os bisas Caréus.
Trapeiro que me anunciei, terei, todavia, para concluir, de continuar a falar de trapos.

Antes, deixem-me, ligar o som dos ferros-velhos, dois ou três transeuntes irregulares, colectando, na saca de linhagem, desperdícios, pelas azinhagas da Portela. Ouçam:

É o ferro-velho!
Há pr’àí ferro velho queiram vender?
Peles de coelho?
Trapo?
 Metal?
Chumbo…?
Cera ou lã
Sarro!

Não garanto crédito à ordem dos elementos do pregão, conquanto assegure, com as mãos no lume, que “Cera ou lã” se ouvia –ciròlâ; sarro merecia um apelo à parte.

A passagem do ferro-velho gerava expectativa. Permitia a retirada condigna de materiais e objectos em fim de vida, sem o que ficariam inúteis pelos desvãos dos casais. Se as searas consumiam em estrume a maioria dos biodegradáveis, havia outros que tinham de ser afastados daquele meio. Agora falam todos de compostagem! Olha-me para eles… Se tivessem visto o esterco das fossas, trazido em carros de bois das lixeiras municipais, teriam mais cuidado ao tratar de tais modernices. «Faça uma horta na varanda, aprenda a fabricar o seu próprio composto.» Use correctamente o ecoponto; vá, não pergunte o que ganha com isso. Não ganha você, ganham os que lhe aprazaram estas urbanizações.
Como eu admirava aquele regenerador: o velho ferro-velho. Sim, reparei: repito  a palavra velho. No dia em que começaram a voar, entre carrascos e oliveiras, sacos de plástico, anunciou-se o fim deste agente social.

Trapo? Roupa usada, não ia normalmente parar à saca do ferro-velho. Refazia-se em casa – por pudor de se entregar a costureira ou alfaiate – a menos que a qualidade do tecido e a confecção da peça sucedânea o justificassem. Ou guardava-se para remendos – fundilhos, joelheiras, punhos e colarinhos, palmilhas…. Em último caso, aproveitava-se para mantas.

Vem isto a propósito de outro passante dos casais da Besteira: o tecelão do Arneiro das Milhariças. Metia aos córregos da azinhaga, em Vale de Lobos, com um burro alforgeado com obra acabada; no regresso, carregando trouxas ou sacas de matéria-prima. Andava a maior parte do dia visitando fregueses pelos arredores. Recolhendo tiras de roupas velhas. Rasgadas ao serão de Inverno. Voltava semanas mais tarde, com a encomenda, devidamente prensada no tear. Designávamo-lo por alcunha, ou nunca se lhe reteve o nome ou isso não pesava nas relações estabelecidas. Criatura completamente desdentada, mas a quem sobressaía, sobre o maxilar inferior, uma risonha raiz de incisivo. Era o Só-um-dente.
Solavancava-se tranquilo, sentado, à mulher, em cadeirinha, sobre albarda e alforges….Não permitia o bojo da carga que burricasse escarranchado.

O ferro-velho, o tecelão do Arneiro das Milhariças. Ecologistas, muito antes da palavra ter sido usada. Ai não, não pedantizo com uma de avant la lettre, mas por que não gente pr’à frentex?

E é dentro desta cultura da poupança – tanto ela nos ensinaria na crise dos nossos dias – que eu me vejo, pelos dez anos, na posse de uma samarra, talhada do varino do nosso bisavô Caréu.
Conforme já dito, andara tal abafo pelas costas do meu pai. Primeiro, por empréstimo; dele se apropriando por morte do proprietário. Agasalhara-o ainda em Pernes e nas gélidas noites dos primeiros anos de taxista.
Depois, depois de fervido num caldeiro, enxuto a preceito e aberto pelas costuras, foram os panos do varino levados ao Adriano Mendes ou ao Pedro, alfaiates, da Portela. Qual deles meteu naquilo tesoura para dali me acatitar a primeira samarra. Peça que me durou entre os dez e os doze anos. Quando, acanhadota nas mangas, passou ao meu irmão.

Vejo-me, no braço direito,  por algumas semanas, com o  fumo, do luto da nossa bisa Júlia. Rasgo negro, sobre lã cor-de-camelo. Quatro utilizadores, a bem contar! E, em fim de linha, foi a samarra desfeita em tiras e levado pelo Só-um-dente ?

Com as derivas, sinto-me obrigado a deixar para a próxima o outro trapo.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Tempos de segeiro

Cá estou, outra vez, na oficina do mestre Carlos do Samuel. Onde o meu pai aprendeu o primeiro ofício. Já nos esquecemos da sua triste experiência de britador de pedra, decorrida nas imediações deste lugar de fabrico e reparação de veículos de tracção animal: carroças e charretes, galeras e, até, o modernício  char-à-bancs
Sobre as galeras, registei que, entre outras missões mais vulgares, traziam, ao tempo, com muita chicotada e  várias mudas de parelhas, o peixe fresco, de Peniche. Fazia-se entreposto, em S. Pedro, no entroncamento da estrada de Rio Maior com a Nacional 3. As mulas espertas aproveitavam as paragens de descarga para, soerguendo alternadamente as patas, aliviarem os músculos do esforço da corrida. Também as pessoas deviam usar da mesma inteligência, para dar folga ao corpo, sem quebrar o rendimento do trabalho. Donde viria esta lição de meu pai?
O charabã? Pode-se perguntar à avó Google.  Se ela nos mostrar o boneco, logo me tira a vontade de mais escrever. Carro longo, dois relativamente cómodos bancos laterais, bagagens arrumadas por baixo dos assentos, entre as duas filas de passageiros…
 Mal comparado, como as carruagens do metropolitano de Lisboa, na linha do Aeroporto. A diferença: estas não têm cocheiro, trintanário, bestas e moscas. Digamos, numa primeira observação. Quanto aos cheiros, podem ser muito similares, depende da lotação.
Atenção! A nossa próxima paragem não será na Alameda ou nas Olaias, mas em Alcanede! Dêem tempo ao escrevenhador, nunca foi de mata-cavalos. Neste entrementes, troteja à média de uma página por semana.
Voltemos ao tal Carlos, mestre segeiro, filho do Samuel
Não conheci o Carlos nem o velho Samuel; deste apanhei umas luzes, pela boca da neta, uma senhora – ainda viva? -  da Portela,  a Maria Antónia, filha do pedreiro Brás, irmão do Carlos. Mestre Samuel fora carpinteiro da confiança do Alexandre Herculano, na Quinta de Vale de Lobos. Conforme ouvi, há um par de anos, num velório. Há pessoas que não suportam estar caladas nesses momentos.
Situava-se a oficina do segeiro, pelo que, mais tarde, se veio a chamar a volta do Melro. Uns dois passos da casa da nossa gente. Ferro e madeira tornaram-se materiais com que, cedo, o meu pai se familiarizou. Ter neto segeiro era o sonho dos Caréus. 
“ Tinha de arranjar uma maneira airosa de me safar dali”, recontava o meu pai. Não se libertava do desejo de ser aprendiz noutras oficinas; de automóveis, que se iam instalando pela cidade.
Embora não fosse escasso em habilidades, no segeiro: rodas, travões, molas, corte de madeiras, e mais o quê?... Também dava grande ajuda, na escrita, superando o próprio patrão na cobrança de dívidas. Por mais retardadas, o António sempre ia fazendo pingar para a bolsa do credor. Com frequência era mandado, com uma velha pasta, onde quer que houvesse um freguês atrasado. Transporte? Que se arranjasse, no vaivém dos carroceiros da estrada.
Andaria pelos quinze anos. Já tinha aquecido o lugar, quando o nosso avô lhe fez o reparo de, numa dada semana, ter saído todos os dias, de pasta. Meu pai não perdeu a oportunidade: ressentido, lembrou ao seu que não fazia sentido terem-no impedido de aprender mecânica de automóvel, em Santarém, – alegando a sua pouca idade, a distância entre a casa a cidade, as duvidosas companhias, estrada fora – se afinal passava o tempo em voltas mais largas.
Ora, estava dito, estava dito. Crescesse e aparecesse, talvez, com o tempo, as coisas mudassem.

Na oficina, as mais das vezes estava de ferreiro, junto da forja e da bigorna, malhando braçadeiras para as molas. Coisa tão simples como isto: tomar uma barra de ferro, aquecê-la ao rubro, dobrá-la de acordo com a espessura das lanças, arrefecê-la na água da selha; para, finalmente, lhe perfurar os orifícios por onde, mediante, parafuso e porca, abraçaria o jogo de lâminas de aço que amorteciam o veículo.
Sei como era, por ter visto alguém fazer esta operação, evitando assim que fosse meu pai a executá-la. Ocorreu durante uma avaria, quando seguíamos para a Nazaré. Por excesso de carga ou desequilíbrio na sua arrumação, numa curva, antes de Alcanede, o automóvel inclinou-se para a valeta. Mola partida.
Meu pai manteve a sua calma dos piores momentos. Continuámos, com todo o desespero da minha mãe e inquietação dos filhos - Chegaríamos a ver o mar?  Atravessámos  a localidade em archa lenta. Tinham-nos assinalado uma oficina de automóveis, na estrada para os Amiais. Tudo se resolveria.
Com mais entraves. O dono da oficina, ia fechar, já passava das cinco da tarde. Não tinha braçadeiras, a forja estava apagada e não sei mais quantas provas de desinteresse.
Na sua vez de falar, meu pai disse:
- Muito bem, pago-lhe o que for, não precisa de se incomodar, por favor, arranje-me ferro e carvão, eu faço a braçadeira. Se não, diga-me onde é o ferrador; tenho a certeza que o homem me há-de desenrascar.
Decisão e mangas arregaçadas, do lado meu pai. O outro aguentou o desafio:
- Não, eu trato disso.
Fosse  acendendo a forja, enquanto ele ia buscar o ferro, a um anexo da oficina.
Ao voltar, a forja estava ateada.
Depois vimos com quantas marretadas se fazia uma braçadeira. Em Alcanede, teria eu os meus catorze, dez o Titi. E a praia à nossa espera. 
Voltemos ao segeiro.
-Vamos visitar a oficina do Carlos, pai? – era o meu convite.
Entrávamos, farsantes:
- Olha ali ao fundo, a grande roda-de-balanço… E mais além, encostada à parede, a arca;  normalmente guardava feno, para o caso de algum animal precisar de penso. Por isso lhe chamávamos o caixão da palha.
- O caixão do galego?
- Pois é isso mesmo, “o caixão do galego”. Ah já ta contei? Contada está.
Não ma contara a mim, a do galego, ouvira-lhe uma tarde, repetida para gáudio da bisa Júlia, na casa-de-fora da avó Otília.
Parava, pela oficina, um galego, maltês dos sete ofícios, e mil destinos. Deixavam-no pernoitar, ou refazer-se com umas horas sono, durante o dia. Acomodado na palha. Quando acordava, berrava que ia dar a volta ao mundo, agradecia a todos los amigos e Hasta la próxima!
Acontecia que os aprendizes, por chufa, assim que o galego pegava no sono, baixavam a tampa da arca. Nem os ruídos da oficina o perturbavam nem o seu ressonar de trompa diminuía o compasso do trabalho.
Quando despertava, havia risota e palmas. Empurrava vagarosamente a tampa. Sorriso de santo malandreco, erguia o tronco e anunciava, com o sinal da cruz:
- Rixuxitei! Estan todos perdonados.
O Filho do Homem redivivo das palhas, segundo a revisão bíblica do meu pai.
A nossa bisa Júlia, numa alegria ofegante, pedia mais­­­­­­­­­­­­­:
- Ó Tonico, conta a outra. Que patifes vocês eram!
Começava a ouvir-se o ronco do galego, quando um aprendiz, não satisfeito por a arca já se encontrar fechada, refinou a partida:
Ó pessoal, ajudem-me a pôr aquela roda em cima da tampa.
Tratava-se de uma roda de nora, em ferro, cujos dentes tinham de ser rectificados, para poderem continuar a içar os alcatruzes da profundeza do poço.
Quatro esforçados pares de braços, assentaram a carga metálica. E voltaram às suas lidas.
Acordado, retido no interior da arca, berrava o galego por liberdade. Insultos, ameaças, rogos. Nada!
A certa altura, o drama:
Xá estói todo mixado!
-Ai Tonico. Cala-te, se não ficamos como esse coitado.

Outra imagem da oficina, guardada por meu pai até fim da vida era a da passagem dos carreiros de Alcobaça, para a feira da Piedade. Carros de bois, atulhados com cestos de maçãs. Saíam pouco depois do sol-posto de sexta-feira, seguiam por S. Jorge, Porto de Mós; venciam a serra; descendo  por Alcanede, Tremes… E paravam, no fim do sábado, em frente da oficina.
Ofereciam água ao gado, petiscavam com o pessoal, retomavam a caminhada. Até à feira. Deixavam maçãs-de-espelho, camoeses – um fartote –, esvaziavam uns púcaros de água-pé. Elogiavam a bebida e as azeitonas pisadas.
Prometiam voltar, no regresso. Por norma, não cumpriam. Com os carros aliviados, dois dias mais, tarde, rumavam por Rio Maior, até à terra de origem.
A serra dos Candeeiros não tinha altura suficiente para separar os povos  das suas encostas.

Nota: A 18 de Novembro de 2013, seria o centenário do meu pai.