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segunda-feira, 28 de março de 2022

ESCREVIVÊNCIAS 2.9 O badalisco

  

 

Badalisco?


A festa já não era pertença do povo, afinal. Contava a minha mãe que a população perdera no tempo da Primeira Republica o consuetudinário livre acesso à capela. A Quinta cedera terreno para a construção da escola primária mas assumiu a salvaguarda do  culto. Isto já foi redito.

Não é missão menor, essa de conservar o património cultural e afetivo de uma comunidade. Obriga a critérios, investimentos, planos de ação, que não dependem apenas do Estado. Para já não falar de outro encargo remetido para as explorações agrícolas: a defesa da paisagem, dos ecossistemas... do verde. Daqui lavemos as mãos.

 A República laica, em muitos aspetos anticlerical e alvo do obscurantismo religioso, na sua fase inicial e durante o Estado Novo, mais do que construtora de escolas, foi também, sempre que a liberdade o permitiu, promotora da alteridade democrática. Ao celebrarmos o centenário do regime, é imperioso sublinhar o facto. Ainda que durante duas gerações se tenha permitido tamanha promiscuidade entre poder político, económico, religioso e social.

Com a integração da capela, pertença afetiva e cultural da comunidade, no património da Quinta, houve algum ressentimento popular. Já sem grande repercussão, ao tempo da minha infância. A não ser quanto à tutela do Badalisco. Não estou a referir-me a um santo, muito pelo contrário.

            Lá se ficou na mão de privados, o Badalisco. Se assim não fosse, ter-se-lhe-ia perdido o rasto, estou certo. Disseram-me há alguns meses que, entretanto, só se perdeu uma pata! Pergunto: quem se pôs a medir forças com o bicho? Onde param as criaturas capazes de desfear ainda mais um, já duplamente punido, anjo perverso? Perverso, mas filho do mesmo criador. Que pressa em extinguir toda a diversidade. Na Terra e no Além. Não há direito!

            Badalisco. Fera medonha. Saiu um dia ao caminho de um caçador, no bosque das imediações da Capela. E não seria a lenda apenas um terror para afastar caçadores furtivos de tais coitos? Desvairado, o pobre monteiro, mal teve fôlego para implorar a ajuda de Nossa Senhora dos Anjos. Naquela mesma toada do D. Fuas, no Sítio da Nazaré. Com a diferença: não houve tabelião que anotasse o nome do nosso monteiro. 

Nem admito que a Maria Alzira retire de algum cartório prova contrária à minha afirmação. 

Valha-me Nossa Senhora dos Anjos!

 Aí vem a santinha, por cima dos pinheiros, (regressará séculos volvidos, a umas boas léguas dali, empalancada numa azinheira) para comandar os trabalhos de uma outra fera, a Serpente.

 Obedecendo à Mulher, escrito está, enrola-se a bicha no disforme Badalisco e lhe tolhe as garras. Como, entre Serpente assanhada e a tal outra feia criatura, tivesse de vir o Diabo escolher – o que redobraria as complicações em tais brenhas! – decide-se a Senhora dos Anjos pela conversão em ferro das duas alimárias contendoras. Até à ruína dos tempos!

Guardou-se na sacristia da capela a comprovativa estatuária. Ainda estava por nascer, ouvi em menino, o valentaço capaz de levantar do chão tal ferro, fundido pelo fogo dos céus.

Que eu saiba, não houve mais aparições pelas quintas e quintais das cercanias. 

Embora línguas peçonhentas garantissem que D. Maria Alva implorava ao Carlinhos da Asseiceira…. A ele que já apalavrara com a Senhora, lá para os lados de Rio Maior, a repetição de um milagre nas terras dos Alvas. Honras seriam tributadas com santuário e hossanas. Seguramente que Zé Alva deixaria de beber. Isso sim, não seria milagre de somenos. Todavia os céus não estavam de feição.

Na quinta dos Anjos. «E o caçador, mãe?», indagava eu, na mira de prolongar a história. Mijara-se todo com a aparição do Badalisco! Já não me lembro se o milagre incluía roupa lavada.

 Com a estátua do monstro nunca fui medir forças, nem me lembro de lhe ter posto os olhos em cima. Isto é, a não ser pela Internet, em data bem recente.

 Os meninos da escola da Portela globalizaram o Badalisco. Esse meu encontro virtual, a meio da noite, com o monstro, agora inofensivo, saldou-se por um inexprimível conforto. Que alívio! Depois, caí na cama e dormi como um justo. O Badalisco estava virtualmente eternizado.

Ai, se a surdez da minha mãe me tivesse deixado contar-lhe! 
Quando as suas últimas memórias giravam pela capela dos Anjos, perguntou-me, um dia, inquieta: «Ó filho, sempre teria sido verdade que a senhora D. Maria Romana deu o Badalisco ao lingrinhas do….?» Com a pergunta veio logo a resposta e pôs-se uma pedra sobre: «Olha qu’essa! E depois como é que aquele fanico de gente o levava para casa!» 
D. Maria Romana era a respeitabilíssima proprietária da Quinta dos Anjos.
Temia pela segurança da estátua, a minha mãe. Grande erro teria sido se tivessem arrancado o monstro ao território onde as forças celestes o haviam consignado. 
A matéria estava fora das minhas competências! Só me faltava, agora, tropeçar nessa criatura.

* Nota: este texto foi redigido em 2010.

(Continua)

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