Badalisco?
A festa já não era pertença do povo, afinal. Contava a minha mãe que a
população perdera no tempo da Primeira Republica o consuetudinário livre acesso
à capela. A Quinta cedera terreno para a construção da escola primária mas assumiu a
salvaguarda do culto. Isto já foi redito.
Não é missão menor, essa de conservar o património cultural e afetivo de
uma comunidade. Obriga a critérios, investimentos, planos de ação, que não
dependem apenas do Estado. Para já não falar de outro encargo remetido para as
explorações agrícolas: a defesa da paisagem, dos ecossistemas... do verde. Daqui
lavemos as mãos.
A República laica, em muitos aspetos anticlerical e alvo do
obscurantismo religioso, na sua fase inicial e durante o Estado Novo, mais do
que construtora de escolas, foi também, sempre que a liberdade o permitiu,
promotora da alteridade democrática. Ao celebrarmos o centenário do regime, é
imperioso sublinhar o facto. Ainda que durante duas gerações se tenha permitido
tamanha promiscuidade entre poder político, económico, religioso e social.
Com a integração da capela, pertença afetiva e cultural da comunidade, no
património da Quinta, houve algum ressentimento popular. Já sem grande
repercussão, ao tempo da minha infância. A não ser quanto à tutela do Badalisco.
Não estou a referir-me a um santo, muito pelo contrário.
Lá se
ficou na mão de privados, o Badalisco. Se assim não fosse, ter-se-lhe-ia
perdido o rasto, estou certo. Disseram-me há alguns meses que, entretanto, só
se perdeu uma pata! Pergunto: quem se pôs a medir forças com o bicho? Onde
param as criaturas capazes de desfear ainda mais um, já duplamente punido, anjo
perverso? Perverso, mas filho do mesmo criador. Que pressa em extinguir toda a
diversidade. Na Terra e no Além. Não há direito!
Badalisco. Fera medonha. Saiu um dia ao caminho de um caçador, no bosque das imediações da Capela. E não seria a lenda apenas um terror para afastar caçadores furtivos de tais coitos? Desvairado, o pobre monteiro, mal teve fôlego para implorar a ajuda de Nossa Senhora dos Anjos. Naquela mesma toada do D. Fuas, no Sítio da Nazaré. Com a diferença: não houve tabelião que anotasse o nome do nosso monteiro.
Nem admito que a Maria Alzira retire de algum cartório prova contrária à minha afirmação.
Valha-me Nossa Senhora dos Anjos!
Aí vem a santinha, por cima dos pinheiros, (regressará séculos volvidos, a umas boas léguas dali, empalancada numa azinheira) para comandar os trabalhos de uma outra fera, a Serpente.
Obedecendo à Mulher, escrito está,
enrola-se a bicha no disforme Badalisco e lhe tolhe as garras. Como, entre
Serpente assanhada e a tal outra feia criatura, tivesse de vir o Diabo escolher
– o que redobraria as complicações em tais brenhas! – decide-se a Senhora dos
Anjos pela conversão em ferro das duas alimárias contendoras. Até à ruína dos
tempos!
Guardou-se na sacristia da capela a comprovativa estatuária. Ainda estava
por nascer, ouvi em menino, o valentaço capaz de levantar do chão tal ferro,
fundido pelo fogo dos céus.
Que eu saiba, não houve mais aparições pelas quintas e quintais das cercanias.
Embora línguas peçonhentas garantissem que D. Maria Alva implorava
ao Carlinhos da Asseiceira…. A ele que já apalavrara com a Senhora, lá para os
lados de Rio Maior, a repetição de um milagre nas terras dos Alvas. Honras
seriam tributadas com santuário e hossanas. Seguramente que Zé Alva
deixaria de beber. Isso sim, não seria milagre de somenos. Todavia os céus não
estavam de feição.
Na quinta dos Anjos. «E o caçador, mãe?», indagava eu, na mira de prolongar
a história. Mijara-se todo com a aparição do Badalisco! Já não me lembro se o
milagre incluía roupa lavada.
Com a estátua do monstro nunca fui medir forças, nem me lembro de lhe ter posto os olhos em cima. Isto é, a não ser pela Internet, em data bem recente.
Os
meninos da escola da Portela globalizaram o Badalisco. Esse meu encontro
virtual, a meio da noite, com o monstro, agora inofensivo, saldou-se por um
inexprimível conforto. Que alívio! Depois, caí na cama e dormi como um justo. O
Badalisco estava virtualmente eternizado.
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