Quando, no fim da vida de meu pai, procurei o que lhe chegara dos amores da Maria Baixota, fiquei apenas com meia história. E dela me desembaracei no capítulo precedente. Sem acrescento de jota.
Entretanto, daquela mulher, remanescera mais um episódio. “Muito mais pândego”, trazido pela boca da avó Mariana. Ligado aos bailes.
1994. Domingo de Agosto, tarde longa, propícia a conversas transviadas. As últimas, seguramente. Estávamos a caminho do Cabeço. Se atingíssemos o cimo, assim as forças a tanto se lhe prestassem, tinha meu pai um pedido a fazer-me: volvesse a casa, para lhe trazer a cadeira. De rodas, as pernas estavam esgotadas.
Depois de o acomodar, perguntou-me, para confirmar os seus débeis olhos:
- Lá ao fundo, a casa da ti’ Maria Baixota continua destelhada?
Que sim, desde um forte vendaval, Invernias atrás.
- Está como eu… Já ninguém lhe pode acudir.
- Ora essa…
- Não te assustes. As casas vão-se como as pessoas. Continuarão vivas, enquanto alguém delas falar.
Semi-abre os olhos, com a mão encarquilhada estendida mais para norte.
- Por onde segue aquela roda-viva, entre a Quinta Velha dos Gatos e o caminho das Lobas, era a casa da Tecedeira. Entre amendoeiras. Ana tecedeira, amiga da avó Mariana.
Mais uma história, pensei.
Uma casa soterrada pela auto-estrada? No entanto, em garoto, cruzava eu aquele local com frequência, nas minhas errâncias, por via de ninhos, bicharada, fruta franca, sem nunca ter descortinado, nem ouvido sobre a existência de tal ruína. Amendoeiras, figueiras, abrunheiros, moldura contumaz de uma casa esbatida? Excepto essa hipótese, só me vinha à memória terra agrícola, nua, castigada pelo tempo e pelas searas. Mais uns ditos acerca dos lobisomens, aliás os blisomens, troteando entre o entroncamento da Oliveira Santíssima e o poço do …
- Era o poço do… Ai, raios partam esta cabeça, exasperava-se meu pai.
Faltava-lhe o nome do homem que lá se fora afogar.
Imprevidência a minha, ter arriscado o retorno ao assunto do suicídio! Sobre isso, estávamos entendidos. Mudemos de rumo:
- Pronto, pai, havemos de esclarecer isso com a mãe.
A mãe tinha as coisas arrumadas: a auto-estrada passou sobre o preciso sítio onde morara a última tecedeira das redondezas. Na sua meninice, ela deslocara-se a essa casa com a sua avó Perpétua, que lá mandava fazer obra. Outro ermo, não muito longe dos Casais da Labaça, onde minha mãe fora nascida e criada.
O primeiro abalo sofrido pela habitação da tecedeira viera do António dos Gatos que, pela violência, reclamara a posse plena da sua propriedade, alegando rendas em atraso. Indiferente à privação de abrigo da artesã. Contra o rigor de uma tal exigência, protestava a avó Perpétua, desde o dia em que vira a tecedeira ser arrastada pelo senhorio, até ao fundo da escadaria do prédio. Sem valimento. A rendeira morreu; o António dos Gatos mandou demolir. Caída a casa, caiu a causa…
- De que família era a artesã?
- Ana Tecedeira, sogra do Calqueres…
O Calqueres, de quem eu mal me lembrava, tinha sido capataz da lavoura do meu avô Marona.
- Onde isso já vai, mãe!
- Pois é para que saibas: o teu pai está de todo, só fala do passado, dos seus avós. Ao que nós chegamos, nós os velhos…
Voltemos então aos bailes da Maria Baixota.
Numa noite de festança, o companheiro dela, um a quem chamavam o Almoster, surpreendeu por oferecer petisco à rapaziada. Pouco, mas de boa vontade, não se armassem em glutões.
Saladinha de orelha. Grelhada na véspera, talvez com algum esturro, admitia, mas temperada a preceito: sal, cebola, alho, coentros, bom vinagre e melhor azeite. Cornichos ou pimenta, se preferissem pitéu mais puxavante. Por sorte que o vinho era farto. Espetaram-se garfos e navalhas. Escorria molho pelos dedos e queixos.
- Mas, ó diabo, isto é orelha de quê, ti’ Almoster?
- De porco, r’paz, não te sabe bem?! Apanhou calor a mais, mas por este preço…
A carne era oferta, quem entrava na roda só pagava pão e vinho. Ajudando nas custas do petróleo.
Muito embora de invulgar sabor, bem demolhada nos temperos e na pinga, estava a orelha um pitéu, acabaram todos por concordar. Só restou o prato. Enxuto.
O prato, e uma dúvida: onde é que se escondia a marosca do Zé d’Almoster? No regresso do baile, geraram-se rumores.
Que poucas horas depois, ao lusco-fusco da madrugada, foram conprovados. O João Carolo e um vizinho, petisqueiros vorazes, voltaram, ocultos por balças e valados, à Besteira. Perto da casa da Maria Baixota, no Cerrado do João Trigoso, afastaram as palhas e silvas: ali seria. Tinham vindo apetrechados para cabal esquadrinhamento.
Não foi preciso muito esforço. Meia dúzia de pazadas de terra fora, o dito ficou escancarado: mal cheiroso, sem orelhas e asno.
Patifório do Almoster!