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sexta-feira, 25 de outubro de 2013

A guizeira


 Chegaram-me repetidas notícias daquele cavalicoque do avô Joaquim Henriques. Teria o garrano, de jarretes nervosos e rijos, ficado a substituir a mula assustadiça? Aquela azémola emperrada pelo terror taurino, à Carne Coita? Fantasio pela positiva, querida Til, querendo reviver os dias serenos dos nossos bisas Henriques.
Do cavalo também me chegou a guizeira. Acompanha-me há mais de cinquenta anos; passou por Coimbra. Nunca a pendurei ao pescoço de animal nem lhe dei outro préstimo, conforme à sua função primeira. Pendurada sim, na parede: peça de um museu a-haver. Mais uma extravagância dos vinte anos. Quantos objectos de então – e quantas quimeras – se perderam?
Dirás: ficou a cinta… E pouco mais, acrescento. A guizeira extraviou-se. Saiu do prego, para pintar a parede, e por aí anda, entre livros. À mistura com um bico de escamisar da minha bisa Perpétua, mais uma caneta de marfim. De um lavrado finíssimo, afiada num extremo, onde recebia a pena de pato. Bugigangas do meu escritório? Não, peças anárquicas neste gabinete de curiosidades, sedeado na memória.
Da caneta, acrescentarei ainda a proveniência: a quinta dos Sampayos. Onde aquela minha bisa, chegou com uma filha nos braços, para ser ama de leite. Ali casou com Jacinto Marona, teve mais três crianças e viveu até à mudança de proprietário. Por outras palavras, da quinta dos Anjos foram os Maronas residir para os Casais da Labaça. Apago isto? Não apago! Flutue o parágrafo, enquanto lhe não dou seguimento. Porque a minha  presente obrigação é falar do tal cavalicoque.
 Retomando a  crónica ouvida ao seu cuidador.
Por muito exausto que a voltasse da oficina, não descartava o Tonico a incumbência de zelar por água, palha, ração devidas ao bicho. Também volteio, no pequeno lote que o nosso bisa adquiriu, por aforamento da quinta dos Pinheiros. Atrevia-se a jogos hípicos, motivado pelas recentes rivalidades de cavaleiros célebres.
  Antes de mais, uma corrida em osso, no lombo do cavalinho. Circuito fechado, saindo do palheiro, descendo a azinhaga pelo lado da propriedade do avô Francisco Hipólito, a que se viria a chamar o “Bairro Azul”, e entrando, para poente, na fazenda da quinta dos Pinheiros. A galope o bicho, grito de encorajamento a um voo sobre a valinha de drenagem daqueles foros. Que mais queria um rapazola, com fumaças de Zé Tanganho, montado num cavalo sempre tão dócil? Ou quase.
 Uma ocasião, lançado a galope, nega-se o quadrúpede ao salto, passa-lhe o cavaleiro por cima das orelhas, para aterrar, de rabo, além do obstáculo. Sem lesão de osso, por sorte.
Normalmente o giro completava-se contornando a propriedade do Zé Beja. Um nico de caminho, se comparado com o apaixonante volta nacional de 1925. Ganha por José Tanganho; não pela velocidade, antes pela inteligência e respeito do cavaleiro para com a montada.
Ao comando da carroça, Tonico aprendia com o avô a ser igualmente respeitador do animal da casa. Evitando o esfalfá-lo em aventurosas correrias.
Pela manhã, António desatava-o da manjedoura; na rua, oferecia-lhe umas favas na palma da mão, depois punha-lhe o arreio, atrelava-o à carroça da venda.”Tudo em ordem!” , concluía o avô, atento. Apertada ao pescoço do garrano, lá estava a “coleira dos dezoito guizos”, música suficiente tal gente e tal sítio. Estava pronta a "carroça da venda".
Mas onde é que eu fui encafuar o diabo da guizeira? Há-de aparecer, quando menos se espera. Prometo que voltarei a limpar os guizos. Tentando de novo uma explicação para o facto de todas aquelas ruidosas esferas terem sido fundidas para uso de equinos militares, conquanto provenientes de diversos regimentos. A correia estará ressequidíssima, há-de levar sebo. Depois, tiro-lhe uma fotografia e - por que não?- ponho no Facebook. Curto!
A venda dos produtos da horta, foi continuada, na praça ou pelos arredores, pela nossa avó Otília, quando os sogros envelheceram. Com o mesmo cavalinho. Será por um tempo em que o meu pai rompe com o seu. A tia Piedade, tua mãe, me deu razões, não vindo agora ao caso. Tonico passa a viver com os avós Caréus. Por força de um grito de rebelião, a paredes-meias com a habitação paterna. Talvez o carinho com que a avó Mariana tratava aquele primeiro neto, desde garoto, o empurrasse para essa mudança. Que em nada alterou a ligação com os pais e irmãos: sempre cordial e solidário, embora sem ceder no protesto. Contra o excessivo consumo de vinho do seu pai. Aliado a indolência de trabalhador. “Quantas vezes a minha mãe teve de desempenhar o papel da mulher e do homem da casa?” – perguntará a tua mãe.



Sei, no entanto que, além  da avó Mariana, o avô Joaquim Caréu lhe era do mesmo modo querido. Foi ele que o convenceu a ir aprender o ofício de segeiro, na oficina do mestre Carlos do Samuel.
Tonico, no fim da infância, acompanhava este avô, pelo S. João, às Caldas da Rainha, para o banho tradicional. O avô enfarpelado no fato do seu casamento: jaqueta, colete, calça à boca-de-sino; cinza-azulado, padrão de xadrezinho miúdo. Para cumprir a devoção que, em vez de lhe aliviar os queixumes reumáticos, o expunha a um  ano de galhofa. Como poderiam, repetia a avó, a fé no santo, mais um par de encharcadelas nas termas, remediar as dores do seu homem? Talvez as senhorias, que pelas Caldas preguiçavam semanas, fossem mais favorecidos pelas virtudes termais.
 Segundo a avó, tinham de mudar de destino. Atravessar a serra, pois claro, mas chegar à beira-mar. Levar as crianças, por dois ou três dias, à Nazaré. A olhos vistos viriam saradas das escrófulas, mais desemborradas. Quanto ao reumatismo do avô, experimentasse os banhos quentes da praia, nada que se comparasse às águas das Caldas, era o que diziam. Como todos mal cabiam na carroça, ela, Mariana sugeria que fossem de charabã. Não, não ficava barato, pois não; olha: vão-se os anéis sobram os dedos.
O serviço de charabãs, entre a Nazaré e Santarém, trouxera as peixeiras. Uma tarde, apareceu em casa da avó Mariana a peixeira a quem, de manhã,  passaram a comprar. Tão fresco como o peixe que chegava, de galera, ao mercado. Mais barato. Depressa a vendedora despachava as duas canastras.
Por desencontro com o charabã de regresso, viu-se a peixeira sem saber onde passar a noite. Tendo  ido pedir cómodos  aos Caréus,  responderam-lhe com  ceia e mantas, dormiu no palheiro. Satisfeita, ao café do dia seguinte, ofereceu acolhimento em sua casa,  quando aquela família  fosse à praia. Se os pobres  e remediados deste mundo mutualizassem os pertences, não haveria ricos.Aí estava mais uma razão para a Avó levar os netos a banhos. O Tonico, a Lucinda e o Manel. Quando nasceu a Piedade, não sei se foi incluída no grupo de banhistas.

Meu pai, mesmo partilhando das dúvidas da avó Mariana, não perdia oportunidade de estimular o seu avô a realizar, só com ele, a viagem anual às Caldas. Via-se incumbido da condução, mas também, na véspera, de uma passagem pela oficina do mestre Carlos, para lubrificação de rodas e rosca do travão.
- Levamos a guizeira, não é, avô?
- Nem a carroça andava, se o cavalo não tivesse charanga!
Até durante os raids fantásticos do Tonico, à volta da casa, a guizeira era atada ao pescoço do cavalo.
Daqui estou a ouvir meu pai, muitos anos depois, a outras velocidades, no velho Vauxhall-14 conduzindo-nos para a Nazaré. Apontando os fontanários onde o cavalo se dessedentava, o número de carroças ultrapassadas. De outros banhistas do S. João, a caminho das Caldas, com tiro de bestas mais ronceiro.
 Ocasionalmente, no primeiro de Setembro, o avô, saindo como sempre de madrugada, com lanterna acesa, ficava-se na feira de Rio Maio; por umas arrobas de cebolas, um pipo para agua-pé. Viagem muito menos emocionante, confessava o meu pai.
É que, passado Rio Maior, no Alto da Serra, atravessavam “uns ermos medonhos”, onde quadrilhas  acoitadas  nas furnas, por cima da estrada, atacavam outrora  os passantes. Sem deixar às vítimas oportunidade para se irem dali contar desgraças. Terrores antigos, felizmente. Muitos anos mais tarde, mesmo de automóvel, esses medos ainda me contagiavam, pela  voz do  meu pai. Minha mãe apontava nomes de chefes quadrilheiros, alguns a quem a justiça nunca conseguiu deitar mão.
Por mais que o avô lhe garantisse a segurança do caminho, Tonico tudo fazia para que o cavalo dali os levasse depressa. Mas a carroça parecia não andar, nunca mais chegavam ao destino.
Adiante, cavalinho.
- Valha-me Deus, avô Caréu. Segeiro é ofício sem futuro.
Queria, sim, ser mecânico de automóveis. Fascínio inexplicável. Contrariava o pai:
- Ainda és muito novo para ires aprender outro ofício em Santarém.
Que se aguentasse. Até um dia.
Agora eu. Pelos meus dezassete anos, regressava da quinta dos Pinheiros, com uma carroçada de milho-basto: forragem para o gado. Em frente da sua casa, o avô António pediu-me que parasse. Disse com voz roufenha - quantas onças de  Superior já tinha queimado? - que aquilo era uma oferta para eu estimar.
Aquilo era a guizeira.
- …do cavalo do meu pai, neto… Fica sabendo que teu pai gostava muito desse animal.
Rio de Mouro, Setembro-Outubro de 2013

terça-feira, 17 de setembro de 2013

O Petisco do Almoster



Quando, no fim da vida de meu pai, procurei o que lhe chegara dos amores da Maria Baixota, fiquei apenas com meia história. E dela me desembaracei no capítulo precedente. Sem acrescento de jota.

Entretanto, daquela mulher, remanescera mais um episódio. “Muito mais pândego”, trazido pela boca da avó Mariana. Ligado aos bailes.

1994. Domingo de Agosto, tarde longa, propícia a conversas transviadas. As últimas, seguramente. Estávamos a caminho do Cabeço. Se atingíssemos o cimo, assim as forças a tanto se lhe prestassem, tinha meu pai um pedido a fazer-me: volvesse a casa, para lhe trazer a cadeira. De rodas, as pernas estavam esgotadas.


 Depois de o acomodar, perguntou-me, para confirmar os seus débeis olhos:
- Lá ao fundo, a casa da ti’ Maria Baixota continua destelhada?
Que sim, desde um forte vendaval, Invernias atrás.
        - Está como eu… Já ninguém lhe pode acudir.
- Ora essa…
- Não te assustes. As casas vão-se como as pessoas. Continuarão vivas, enquanto alguém delas falar.

Semi-abre os olhos, com a mão encarquilhada estendida  mais para norte.
-  Por onde segue aquela roda-viva, entre a Quinta Velha dos Gatos e o caminho das Lobas, era a casa da Tecedeira. Entre amendoeiras. Ana tecedeira, amiga da avó Mariana.
Mais uma história, pensei.

Uma casa soterrada pela auto-estrada? No entanto, em garoto, cruzava eu aquele local com frequência, nas minhas errâncias, por via de ninhos, bicharada, fruta franca, sem nunca ter descortinado, nem ouvido sobre a existência de tal ruína. Amendoeiras, figueiras, abrunheiros, moldura contumaz de uma casa esbatida? Excepto essa hipótese, só me vinha à memória terra agrícola, nua, castigada pelo tempo e pelas searas. Mais uns ditos acerca dos lobisomens, aliás os blisomens, troteando entre o entroncamento da Oliveira Santíssima  e o  poço do
- Era o poço do… Ai, raios partam esta cabeça, exasperava-se meu pai.

Faltava-lhe o nome do homem que lá se fora afogar.
Imprevidência a minha, ter arriscado o retorno ao assunto do suicídio! Sobre isso, estávamos entendidos. Mudemos de rumo:

- Pronto, pai, havemos de esclarecer isso com a mãe.

A mãe tinha as coisas arrumadas: a auto-estrada passou sobre o preciso sítio onde morara a última tecedeira das redondezas. Na sua meninice, ela deslocara-se a essa casa com a sua avó Perpétua, que lá mandava fazer obra. Outro ermo, não muito longe dos Casais da Labaça, onde minha mãe fora nascida e criada.
O primeiro abalo sofrido pela habitação da tecedeira viera do António dos Gatos que, pela violência, reclamara a posse plena da sua propriedade, alegando rendas em atraso. Indiferente à privação de abrigo da artesã. Contra o rigor de uma tal exigência, protestava a avó Perpétua, desde o dia em que vira a tecedeira ser arrastada pelo senhorio, até ao fundo da escadaria do prédio. Sem valimento. A rendeira morreu; o António dos Gatos mandou demolir. Caída a casa, caiu a causa…
- De que família era a artesã?
- Ana Tecedeira, sogra do Calqueres…
O Calqueres, de quem eu mal me lembrava, tinha sido capataz da lavoura do meu avô Marona.
- Onde isso já vai, mãe!
- Pois é para que saibas: o teu pai está de todo, só fala do passado, dos seus avós. Ao que nós chegamos, nós os velhos…

Voltemos então aos bailes da Maria Baixota.

Numa noite de festança, o companheiro dela, um a quem chamavam o Almoster, surpreendeu por oferecer petisco à rapaziada. Pouco, mas de boa vontade, não se armassem em glutões.
Saladinha de orelha. Grelhada na véspera, talvez com algum esturro, admitia, mas temperada a preceito: sal, cebola, alho, coentros, bom vinagre e melhor azeite. Cornichos ou pimenta, se preferissem pitéu mais puxavante. Por sorte que o vinho era farto. Espetaram-se garfos e navalhas. Escorria molho pelos dedos e queixos.

- Mas, ó diabo, isto é orelha de quê, ti’ Almoster?
- De porco, r’paz, não te sabe bem?! Apanhou calor a mais, mas por este preço…

A carne era oferta, quem entrava na roda só pagava pão e vinho. Ajudando nas custas do petróleo.

Muito embora de invulgar sabor, bem demolhada nos temperos e na pinga, estava a orelha um pitéu, acabaram todos por concordar. Só restou o prato. Enxuto.

O prato, e uma dúvida: onde é que se escondia a marosca do Zé d’Almoster? No regresso do baile, geraram-se rumores.

Que poucas horas depois, ao lusco-fusco da madrugada, foram conprovados. O João Carolo e um vizinho, petisqueiros vorazes, voltaram, ocultos por balças e valados, à Besteira. Perto da casa da Maria Baixota, no Cerrado do João Trigoso, afastaram as palhas e silvas: ali seria. Tinham vindo apetrechados para cabal esquadrinhamento.
 Não foi preciso muito esforço. Meia dúzia de pazadas de terra fora, o dito ficou escancarado: mal cheiroso, sem orelhas e asno.
Patifório do Almoster!

sábado, 24 de agosto de 2013

O primeiro baile da pinha

  Tonico avançou pela escuridão, procurando evitar lamaçais e poças das últimas chuvas, com o fito no ponto luminoso, ao fundo da azinhaga: a janela da sociedade.

 Já chegara à Cidade - pois então! - a electricidade, contudo quando desceria aos arrabaldes? Em Pernes, com produção hidráulica própria, a iluminação pública, desde há vários anos, ia arrumando a noite para um canto. Apesar de sede do concelho, Santarém teve de aguardar melhor oportunidade.

Ele mesmo viria, dentro de poucos anos, a trabalhar em Pernes: senhor António, chofer do senhor Pimentel. Dois cavalheiros que se prezaram. Ali se lhe abriram novos horizontes. Ouvi-lo-emos, mais tarde?

A sociedade, para os bailes de Carnaval, havia investido em modernos candeeiros a petróleo. Dois Petromax. Por força de pressão, ofereciam ao recinto de festas uma nunca vista luminosidade. Petróleo, sem dúvida, mas fossem lá comparar com as lâmpadas das praças da cidade, e ver quem levava a melhor. Da primeira vez que foi, com a nora e a neta Lucinda, ver como o seu Tonico gastava o tempo, a avó Mariana voltou deslumbrada. Com tais lampiões, tendo à mão o  açafate da costura, podia-se enfiar uma agulha, em qualquer lugar da sala. Aquilo, além de um luxo, tornava-se, segundo pais de família, garante de bons costumes nos contidos volteios da mocidade. Pois já se sabe que fogo e estopa, nem precisam que o Diabo bufe.

Tonico, nas poucas modas que lhe calhou dançar – ser director de uma sociedade recreativa não é uma benesse para ninguém – achou-se mais nos olhos do seu par, na grande alegria da remexida Emília Mecheira. Um corridinho de doidos
Gostaria de voltar a vê-los – pensava a avó – assim tão certinhos, bailar a moda da pinha, no dia seguinte. Ora! Acabou por afastar a ideia: afinal tais assuntos não lhe diziam respeito. “Quem melhor cama fizer…”


Tudo muito diferente do tempo dela Mariana, e mesmo da geração que se lhe seguiu.

Voltou a lembrar-se dos bailes da Besteira, onde nunca fora, mas de que ouvira. Haveria de falar disso ao neto...

Em casa da Maria Pequena.
Tudo indica  não ter existido ninguém com esse nome; houve, sim, uma Maria Baixota. À  fé de quem reconta!
Levada da breca. Sabia-se que andara de manta e almofada, pelas encostas do Cervato e  Vale de Lobos, com o Comendador Paulino; daí, se aventurara a entrar, à sorrelfa nos celeiros e cómodos das duas quintas dele. Ou a deixar-se esperar por uma horita de folga do vereador, numa hospedaria da cidade, terminado que fosse o despacho na Câmara. Tranquilidade de muitas tardes, numa casa que o Comendador lhe pusera no Bairro do Pereiro. Só um contratempo. Paulino estreara-a, sem a prevenir de que as décadas lhe iam consumindo o desejo. Maria Baixota começou a desconfiar que os atrasos, nas reuniões municipais, eram  mais fastio do que desculpa.

Há males que trazem o bem. Ajudam a curar.

Não a procurava o Comendador? Estaria por nascer quem lhe ouvisse uma queixa. Olha ali aquele rapaz, da sua criação, o Joaquim dos Casais da Labaça. Com ele, Maria Baixota continuaria o regalório, até atingir complicadas consequências.

Da troca, soube logo o povo do lugar. E muito antes do teatro e do cinema trazerem, à sociedade recreativa, histórias de ciúme e vingança , correram pelos campos, tabernas, mercearias, bancas do mercado, notícias do grande confronto passional.
Primeira visada, a Baixota. Uma tarde, Paulino, como nos tempos tórridos da paixão, esperava-a no corredor. Tronco nu, alheio à friagem. Que ela se despisse, logo. E ela não tardou, sem já sentir o fresco da rua. Ilusão imediata. Quando a última peça de roupa lhe caiu aos pés, O Comendador atirou-lhe, possesso.
Maria Baixota foi corrida a pontapé. Nua na calçada. Graças a uma vizinha, enfarpelou uma saia e blusa velhas, que lhe disfarçaram a humilhação no regresso à Besteira.
Na rua do Pereiro, ficou o cheiro  a roupa queimada, atirada para o fogão pelo Paulino


 Mais.De noite, os homens do Paulino vinham incendiar o Casal da Labaça, donde eram escorraçados a tiro de caçadeira. Com duas espingardas, o Labaça Novo procurava responder, pela fresta de um palheiro. Gertudes, sem queixume nem revolta, tirava munições das cartucheiras e passava a arma recarregada ao seu homem. Iriam ali morrer, levados pelas chamas ou varados pelos tiros da noite?

Obrigado a enfrentar o lavrador, Joaquim da Labaça, tivera de assumir toda a mal disfarçada verdade amorosa, perante Gertrudes, a  rapariga com quem casara. Mesmo assim, ela ficou do lado do seu homem.
Mariana nem sabia o que dizer do destemor e resignação da Gertrudes Hipólito, meia-irmã de Otília, a sua nora, mãe do Tonico.



Nem tudo era brilho nos bailes da sociedade. No baile  de domingo-gordo, uma das luminárias caprichara.   Houve que ser desmontada, o que  desmobilizou parte dos convivas. Mas aos rapazes da direcção sobravam habilidades para acudir  naquela ou em qualquer avaria.


Já quanto a armar a pinha, para o dia seguinte…

Pela primeira vez se dava baile da pinhata no Cruz de Cristo, Do tesoureiro, feitas as contas veio a confirmação: podia-se encomendar uma pinha nova. Sem necessidade de pedinchar empréstimo, nas colectividades dos arredores. Ainda que fosse um objecto apenas usado uma vez por ano, justificava o investimento. Foi-se ao Grémio Operário, consultar o modelo. Primeiro. passou por lá o António Marcelino, latoeiro e mestre. Atento, fez por igual, na forma, capacidade e sistema de abertura.

Quantos gomos abriam, na tua pinha de palavras, meu pai sorridente? Ouvi-te, a mais de sessenta anos de distância, reviver os preparativos do baile.

-Quatro ou seis… Já não sei bem, pá?
- Que importância isso tem, pai? Continue.
- Claro que tem, pá: Olha qu’essa! Quando um homem se esquece destas coisas da sua mocidade, também se lhe varre o modo de como se atam os sapatos ou se leva a colher à boca.
- Pois é…
Não tardaram muito os dias em que tínhamos de te dar o comer em mão, que os chinelos já não precisavam de atacadores.


António continuava.
- O marmanjo que foi ao Grémio aprender os truques de abertura da pinha, não juntava os carretos todos. Não sabia aprender. Dizia ‘tá bem, ‘tá bem, ‘tá bem, sem se dar ao trabalho de ouvir. Assim: «‘tá bem, ‘tá bem, ‘tá bem,  ‘tou a ver, não diga mais… Faço já um desenho da coisa.»
Mais risco, mais gatafunho, uns números com umas notas, numa letra que só o gajo era capaz de decifrar...Estava tudo ali. Não havia que enganar.

Depressa virou costas, meteu o papel no bolso do jaleco e pôs-se a caminho da Portela. Nada que enganar. Mais fácil do que toda a gente dizia.

O latoeiro trouxera a pinha. Folha-de-Flandres, igual em tudo ao modelo, fora e dentro, até nas dobradiças, nos ilhós e nos pontos de solda. Gémea! Faltava montar-lhe o sistema de cordéis, para que só um, um dos muitos fios caídos,  a pudesse abrir.
Mãos de fada da rapariga com tal sorte. Ao puxão da sorte, soltava-se o casal de pombos, explodiam palmas e vivas. Coroavam-se o rei e a rainha do ano. Digam lá que não anda aqui engendro do Santo Espírito.

Quando o Tonico entrou na sociedade, já o caldo estava a ficar entornado. O homem dos cordéis estava enredado, nos ditos, e  naquilo que todos dele esperavam.
Claro que sim, tinha feito um esquema, mas para quê?, se tinha tudo ali, e de dar palmadas na testa. Era só cortar os fios, prendê-los à pinha, puxar. Prender como? Não seria esse o busílis?
“Qual busílis! Tenho tudo aqui” E mais uma palmada na testa.

Ata-desata, abre-não abre, encrava-se mais uma vez. Raios e coriscos.
O tempo a passar. Bonito serviço!

Tonico parado. Escaldado pela doença e pela cura. Não queria tirar o varino. Sem vontade, nem garganta para intervir naquele falatório de azelhas. Que fazer? Voltar para casa, os outros que se amolassem? Não se quadrava com o seu feitio. Optou por aliviar-se do varino, deixando-o dobrado em cima de uma cadeira, ao lado de outra para onde já alguém atirara com agasalhos.

Um papel caído. Desdobrou: eram os apontamentos trazidos do Grémio Operário. Estava ali a chave do problema. Todavia, ficassem os outros a rabiar mais um pouco. Afastado da confusão em torno da pinha, deu-se conta de como devia funcionar a abertura, de quais as voltas dos múltiplos fios. Ninguém reparou no achado.
António, discreto, contido, guardou a folha no bolso das calças.

Quando o desespero paralisou os outros, pediu que o deixassem experimentar. Fez correr os fios. Quem sabe se…

Abriu! Repetiram, para confirmar. Só podia ser assim. Aprovado.
-Era isso mesmo que eu tinha no papel. Querem ver?- disparava o especialista em nós.
Procurou, procuraram, e o papel escondido no bolso do António.

Garantido o  baile da pinha.
António voltou para casa, dorido, com calafrios. A avó, ao ouvi-lo:
-Vens melhor, filho?
Que talvez.
Talvez não! Passou o domingo na cama, falhando o primeiro baile da pinha do Cruz de Cristo.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Anginas


Sábado à noite,  véspera de baile da pinha, na nova sociedade. Pesava a responsabilidade. E ardia a garganta de António, mas não pensava faltar ao combinado.
A avó Mariana insistia: ficasse em casa. Saindo, não deixasse de ir agasalhado com o varino do avô, só depois de ela lhe aplicar a mezinha. 

-Está bem, minha avó, duvido que isso me tire as dores.

Gargarejos mornos, uma infusão  de diabelha e agrimónia, mais a enxúndia de galinha. Pena já não ter mentol, nem gota para uma zaragatoa.

E papel? Onde iria a avó encontrá-lo ou a quem pedi-lo àquela hora? Lembrou-se do que forrava a gaveta dos talheres, pardo, mesmo a calhar. Com a tesoura cortou duas tiras, deviam chegar

-Alcança-me o frasco da enxúndia. Ali, no alto da prateleira.

-Que ideia minha avó, essa besuntice só me….
-Vais ver que te faz bem.
Impregnou o papel com a gordura, aqueceu as tiras junto ao vidro da lanterna. Depois, enrolou-as ao pescoço do neto, ajustadas com um farrapo de lençol velho.

Só faltava o cachené. E a última recomendação
- Andas com isto até voltares para casa. Tenho o sono leve, quando te ouvir, venho cuidar de ti.
Não  se  esquecesse de levar  o varino do avô Joaquim

Mariana sabia que os Henriques não tinham a rijeza dos Bejas. O marido e o filho lamuriavam dores reumáticas durante todo o ano. O neto, embora com a genica dos Hipólitos, à menor corrente de ar, ficava naquele estado.
Não devia ter saído.

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No fundo, a avó concordava com a tenção. Com outros rapazes da Portela - o Adelino Carolo, o Méu, o Tonim das Neves, um dos Pagantes… - queriam fundar uma sociedade recreativa. Na casa onde fora o armazém de cereais e rações dos senhores Campos. Bom cabimento para sala de baile, teatros – havia por lá gente cheia de jeito. Tonico ajudava nos ensaios, soprava na caixa do ponto, à falta de actor, subia ao palco. E cinema? Talvez, Mariana não havia de morrer sem ver uma fita. Bailes e ensaios eram quase a única oportunidade de convívio entre rapazes e raparigas. Fora isso, ficavam elas em casa e eles marchavam para a taberna.

Entretanto, António ocultara à avó que o projecto também tinha muito a ver com jogos de bola.

Meu pai esclarecia-me ser o futebol um pretexto para contornar os entraves legais ao associativismo, dada a política restritiva de liberdades. Estava-se no arranque da década de 1930. Os clubes conhecidos de Lisboa, com interesse na criação de “sucursais”, pela província, competiam entre si na prestação, ainda que simbólica, de apoios.
 Assim surgiu, na Portela, o Cruz de Cristo Futebol Clube. A cruz de Belém. Como reconhecimento do novato clube por umas já suadas camisolas do Belenenses. Que acabariam de se esfiampar em renhidos desafios, no improvisado Stádio do Casalinho.

 Por empenho do estarola D. Caetano, fora posta uma parcela, pouco produtiva, da Quinta do Casalinho, à disposição da rapaziada. Sol de pouca dura.
 Na sua propriedade de devaneio, D. Caetano de Noronha não dispunha de área cedível, daí que tivesse abordado o lavrador vizinho, com vista à cedência do campo de jogos. Rejubilava, sentindo a sua gente, de hábitos urbanos, acamaradar, em tempo de férias, com operários e camponeses da Portela. Todos iguais atrás de bolas, mais ou menos, trapeiras, vociferando palavras inglesas e vernáculos impropérios.

Ora, uma tarde, visitantes e visitados pegaram-se  à bulha.  Pretexto suficiente para o dono do stádio, mesmo sem dar satisfação ao D. Caetano, revogar a cedência. Assim como antes mandara o boieiro Tito Botelho gradar, e compactar o piso a rolo de pedra, ordenou ao mesmo lhe metesse charrua, após as primeiras chuvas de fim do Verão. Acabava-se a bola, por alegadas faltas de respeito. E só na mocidade dos bisnetos de Mariana, os rapazes da. Portela voltaram a dispor de lugar apropriado para chutos e cabeçadas na bola..

Agora bailes, numa sala decente? Isso sim, velha era ela, Mariana, mas havia de lá ir com as netas.
Lembrava-se, desde garota, dos bailes que se iam dando, principalmente em casas onde havia raparigas. Se os pais fossem de as ver casadas, o que nem sempre acontecia. Filha casada podia ser uma perda de mão-de-obra.

 No casal do Dr. Pombo, estava, uma noite, o tocador a embalar a mocidade, quando o vinho se fez ouvir: «Ò Mestre Pedro, pare já com esse fado!» Quem mandava? Teimoso, o guitarrista só se deteve quando um cachaporro derrubou o candeeiro. Seguiu-se balbúrdia. Na escuridão, de que mal se aproveitaram alguns pares, desandou toda a gente em direcção ao poço, a fim de dar combate ao incêndio. Sentado no bordo do poço, o toucador continuava com a mesma música.
 Anote-se que o nome deste Mestre Pedro me chegou  pela boca do velho Manuel Barra, muitos anos após o  falecimento da bisavó Mariana.

A Taia, calceteira de homens, embora nunca lhes  tomando as medidas pelo corpo, satisfazia-os pelo acerto na costura. A partir de uma peça usada. E pelo modo como organizava decentes funções dançantes, na casa que depois havia de ser comprada pelo Camilo Gomes, fabricante de gelados, barquilhos de canela, e assador de castanhas.

Mais acima, na Besteira, bailava-se em casa da Maria Pequena ou, com mais recato, na casa do Augusto do Marmelal.

Contente por virem a ter, com a ajuda do seu Tonico, uma sociedade, a dois passos de casa, Mariana deixou-se passar pelas brasas. Resistiu, no entanto, a ir para a cama, antes da chegada do rapaz.

terça-feira, 16 de julho de 2013

A almofada

Cachené ou cachiné? Pela  voz do meu pai: «o lenço cachiné da minha avó Mariana». Dará para a conversa de hoje? Começando já pela questão: a peça para tais usos há-de ter sempre nome francês? Ele é écharpe, ele é cachecol, ele será cachenez, pois faz-me espécie. Tapa-boca, conforme propõem os puristas, ah, nem pensar! Deixem-nos protestar, que abundam as razões. Bem basta o sufoco do passado

Lenço vermelho, malha de lã, inseparável agasalho da avó Mariana, nas idas à horta, às lojas, vender ao mercado.

Naquela noite impunha ela que o neto, rapazola de dezoito anos,  tão amigo do trabalho como da folia, não saísse de casa sem o varino do avô,  mas  sobretudo sem o  cachené. Desde garoto, enfermiço da garganta, podia-se ir assim com umas anginas, e não seria o primeiro. Mais: antes de ele sair, ainda havia de lhe aplicar a mezinha:

«Tonico, vou-te besuntar o pescoço com enxúndia de galinha. Depois, enrolas o lenço e só o tiras quando entrares àquela porta.»
« Temos muito que fazer esta noite.Volto tarde, minha avó.
«Mais razão para te cuidares.»

Encargo premente, na Sociedade, bota que ninguém sabia descalçar. Véspera de baile da pinha. E o pior...

Concordou com a avó. Lembrando-se de quando, anos atrás, ao sair da escola, ela   tinha ido levá-lo, pelo nascer do sol, ao primeiro trabalho. Na estrada, junto à taberna do Melro. Andava-se a atamancar o macadame, quase impraticável, por somadas incúrias. De repente, alguém mandara deitar mãos à obra, veio um empreiteiro não se sabe de onde, contratou-se pessoal das imediações, tudo a calhar. A Portela ajudava a zelar pela sua estrada, ignorando que quanto mais viável a tornasse, mais custos em vidas lhe seriam devidos. Adiemos este ponto.

Tonico Caréu teria ali o seu primeiro trabalho remunerado. Não se queixasse, pois muitos da sua idade, mesmo sem a escolaridade concluída, já andavam pelos campos a amargar.

«Qual trabalho infantil, qual léria! Quem é que então falava em direitos da crianças?» comentará o avô António aos seus netos.

Contrafeita, a avó Mariana entregou-o ao capataz. Que fizesse do rapaz um homem, nunca um escravo. Certamente que assim desejava, num silêncio conformado. Sempre era um começo de vida.
Pedra da Atalaia, transportada em galeras e carros de bois. Qualquer rapaz sadio se poderia ocupar da britagem, a baixo custo. Para tanto, mais não precisava do que tomar assento num calhau menos rugoso e pegar nas ferramentas. Daí, marretada certeira, cabo firme na mão,  cuidado com os dedos e os olhos. Todo o dia, que o cascalho nunca demasiava para os buracos do caminho.
Quando ao fim da primeira manhã, foi a casa pelo almoço, estava a avó Mariana a acabar  a almofada.
«Não vou levar isso, minha avó. O que dirão os outros?»
«Não te rales, filho, que eu a levo»

Pouco depois do regresso à pedra, tocou-lhe a  avó no ombro. Tirou a almofada da alcofa e num gesto de quem se quer fazer ouvir, esclareceu os restantes britadores:
«Esta almofada é para o meu neto pôr debaixo do sim-senhor! Está entendido?

Ninguém abriu bico. Exemplo para que no dia seguinte, aparecessem  outros miúdos com sacas enchouriçadas de trapos, a fim de melhor aguentar a rudeza da tarefa.
Também para o dia seguinte, já a avó Mariana havia engenhocado outro alívio. Fizera ao neto, a partir de uns peúgos rotos, umas luvas, meias-luvas... Impregnadas com sebo de carneiro, para que as mãos se lhe calejassem, sem empolar. A lata do sebo, não continha apenas solução para botas e arreios do gado. E tal como se conservava o sebo, também não se deitava fora a enxúndia de galinha.

Na volta do Melro, mal saído da azinhaga onde nascera, Tonico venderia  o seu primeiro esforço. Venderia,  se o empreiteiro, finda a  primeira semana, não fosse dado como desaparecido. Obra embargada, estrada mais intransitável do que antes, pessoal praguejando sem salário.

Muitos anos mais tarde, António, a lavar o táxi, ouve o filho mais velho lendo no manual: “Salazar construiu hospitais, pontes, estradas…” Alto aí! O homem teria mandado construir, mas quem martelou? Quem lá deixou o suor?
“Quem  construiu Tebas a das sete portas…?” , perguntará o poeta alemão.

Ainda faltariam uns tempitos para o povo se pôr a elogiar os milagres do Estado Novo, quando o Tonico Caréu teve de abandonar o seu breve primeiro emprego, sem vintém. Que maçada para uns senhorecos que, entretanto, iam comprando o seu automóvel.
Meteu-se a almofada de permeio, acabei por não  nãotratar  do cachené. Irremediável, a minha deriva. Desculpado estarei?

sábado, 29 de junho de 2013

Carta com velhos trapos : a cinta genealógica


Carta de férias, junto ao Douro, como as que as tias escreviam, por conveniência social, nas raras tardes, se as tinham, de sol e lazer. Tinteiro, papel, caneta, de molhar ou de encher, mata-borrão.
“ Estimo que ao receberes desta, etc… na companhia de todos quantos estimas.” Aqui se lhes detinha a mão, numa de hoje falta de bateria no telemóvel. Inquietavam-se, as tias, fugindo-lhes o assunto. Que, afinal, se resumia a: estou aqui, tu não estás comigo.

Para esta carta de Aregos, Priminha, deu-me ontem o médico das termas o mote, deixando-me sem desculpa para não ta escrever: «Velhos são os trapos, senhor.» Que lhe teria eu atirado, para ele me replicar com tão diminuta originalidade clínica? Os trapos?! É verdade, não me posso esquecer de escrever à prima, sobre o cachené da nossa bisa Mariana Beja. Perfeito enlace entre afecto e objecto.

Diversos e reiterados objectos  me agitam o charco da memória. Do lado nos nossos bisas Caréus, além do dito tapa-boca - esta  não me cheira a francesismo-, hei-de dizer  do fato  do casório,  dele Joaquim Henriques. E da cinta, que me ocorreu neste entremez de panos, a minha cinta! Bons têxteis, asseguro. Então e o varino? Mais o varino.Trapos!


Lá fora, vai uma caloraça de eiras, própria dos trabalhos e dias daquelas nossas gentes mas, mesmo assim, veio a cinta à colação. A cinta do avô Caréu está cuidadosamente engavetada com as minhas roupas de Inverno. Dá-me conforto o seu uso. Pela qualidade da lã espinhada, atravessou todo o século vinte, sem traça nem pontos frouxos. Uma faixa preta, já não a asa de corvo da original tintagem, mas ainda de um negro muito apresentável, capaz de cumprir hoje, e na perfeição, o intento de quem a tirou do tear. Um palmo de largura, franjas em ambos os extremos; alegrada, antes de cada ponta, por quatro finas e vivas riscas vermelhas, transversais... Resistente.


Fornalha!!! Arregacemos as mangas, pois muito há para contar.

Qual das minhas netas, me perguntou sobre a origem da cinta?
 «Do nosso tetravô ?!»
Nem mais: tetravô. Pois, Marta, Sofia, tu também, Tiago, equilibrem-se aí nesse ramo da nossa árvore e vejam como o tempo escorre sob os nossos pés: no ramo logo a seguir, as vossas mães e pais; abaixo, o avô Quim e a avó Filó -Ai que o vento me leva! Não foi desta, uff! -; nos ramos inferiores, empoleiraram-se os bisa António e Maria, ele, filho dos vossos trisas António e Otília; e bem ao fundo, o tetra Joaquim Henriques, Caréu. Casado com a avó Mariana, dela nos chegou este apelido de Beja. Na nossa árvore, ainda há primos que guardam o apelido de  Henriques
Agora vamos fazer um teatrinho, meninas e menino.

"
 Vem o tetra Joaquim Henriques da feira da Piedade, onde comprara a cinta. Tira a jaqueta, perfila-se, à entrada da cozinha, mostra a novidade.
- Mariana, ó Mariana, olha-me só p’ra isto!
-Tu sempre compraste uma cinta!... Fica-te bem, está mal posta, homem. Vem cá, que ta componho.
Desenfaixou a magra cintura do marido. Contou, quatro, as voltas que o pano dava. Apreciou pormenores. Encostou o tecido à cara, não estava a cheirar, não senhor, mas a sentir-lhe  a macieza. Vagarosa, foi enrolando, até a cinta se reduzir apenas a um canudo negro.

- Jaquim, agora ficas aí, ao pé da mesa, até eu dizer.

Avançou para a porta da rua, fixou as franjas na trinqueta, esticou o pano até junto do homem, para lhe meter as outras franjas, na ilharga esquerda, entre calças e camisa.

-Agora, rodopias, até à porta. Ajusta, para não amarrotar.
-Assim?
-Isso mesmo. Fica quieto.
Faltava apenas ocultar as franjas, por debaixo da primeira volta da faixa.
Sentenciou:
-Homem que mostra as franjas é desleixado.
Joaquim Henriques sentiu o vigor, levantou o peito
-Sinto-me capaz de pegar um toiro!
-Deixa-te de valentias. Pega-me antes a mim.
Abraçaram-se. 

"


Terminaria esta cena com várias perguntas sobre os cuidados da avó Mariana, todavia decidi eliminá-las. Basta de porquês, se a resposta é oca.

De qualquer modo, a história da cinta pausa aqui. Transformada que um foi uma centenária roupeta em suporte de genealogia. Cinta genealógica, apetece dizer. Não creio que o avô Joaquim Henriques nem os homens que lhe sucederam na família lhe tenham dado muito uso. Caso contrário, não teria chegado à minha posse, assim tão utilizável.

Se eu me esquecer, lembrem-me que prometi falar do cachené, e não só.

Caldas de Aregos, Junho de 2013


sábado, 8 de junho de 2013

Segundo letreiro para uma figueira parida

«Ai ca raio!»
Então ainda não contou mais esta do Zeca Raio? Pois, desfiando para si mesmo, retarda a partilha. Está-lhe na massa do sangue. Valer-lhe-á de quê uma vida a patinhar num lodaçal de memórias?
Mas já nos falou do Cabeço, outeiro em cuja encosta nascente era a sua casa. Até já crismou tal ponto, quando um dia lhe vieram com a certeza documental de terem sido por ali uns Arneiros de S. Catarina. Que fossem, deu de barato.

Não calhava à Mãe que, na sua idade, ele se esquivasse para aquela propriedade da família. Sozinho num ermo, onde  umas quatro ou cinco casas, modestas, desapareciam, no Verão,  entre  frondejantes figueiras. Ah, mas dali, adivinhava o Tejo, não a água - excepto no tempo das cheias! Todo o vale, até onde lhe chegavam os olhos. Pelo poente do cabeço, tinha a estrada nova: quem passava, onde ia, quantos carros em dias de engarrafamentos? Sempre que as ovelhas do tio Juvenal ali vinham pastar, a razão para trepar a encosta, redobrava. Hoje não, não quer tornar às feridas de tal sítio.

Vamos então delimitar num triângulo: o Zeca Raio, ou tão-só o Zé das Ovelhas; a Mãe, inquieta com o que se dizia de certos hábitos do moiral; e a Figueira. Será que a árvore ainda lhes sobrevive? Mesmo que lá não esteja, figure como vassalo neste recordatório.

Ouviu chocalhos e campainhas, meteu-se à ladeira. Ia aprender com o Zeca Raio o que mais ninguém admitia ensinar-lhe ou ser por ele questionado. Naquele dia, encontrou o moiral agastado.
Tenho ali uma ovelha a parir,
Tu não me digas, ó Zé,
Vamos lá ver se não dá prò torto,
Porquê?
Ansioso. Nunca vira parir. Saltos do carneiro na Primavera, cobrindo, já não o perturbavam. Como é que haveriam de nascer borregos, sem aquela divertida trepa de macho sobre fêmea. O seu interesse de momento era saber daquele teatro com os humanos? O Zeca Raio não se cortava nas respostas. De experiência.
Que conversas tens tu com o Zé das Ovelhas?, a Mãe.
Coisas sem mal, mãe.

Então já conhecia o mal, nos seus oito anos? E soube esclarecer, sem rodeios, quando a Mãe o interpelou sobre ocorrência de abusos sexuais, ou tentativas, por parte do pastor. Com ele ou com outros…
Não. Nunca! À mínima, já teria avisado. Ficasse a Mãe tranquila.
Ouvira, sim, sobre o sestro do Zeca Raio, sem mais revelar sobre o falatório dos rapazes da escola.

A cabeça da ovelha parturiente, virava-se para os quartos traseiros. Contraía-se. Tinha dores?
Está a cria atravessada, concluía o moiral,
Precisava de meter as mãos. Fosse pedir à mãe uma garrafa de azeite, para untar a natureza do animal! Assim mesmo devia dar o recado.

 Frente à mãe, não se sentia à vontade. Atabalhoando: o mal-estar da ovelha, o Zeca Raio a pedir azeite…Para untar…
Rispidez materna. Já bastava de explicações. A Mãe iria ao Cabeço ver o que se passava. Não saísse ele de casa, até ela voltar, que o irmão dormia a sesta.
Aprestou o azeite, vertendo da almotolia uma porção num púcaro, e foi-se encosta acima.
Não costumava desobedecer, portanto não o levou a curiosidade para além do tanque. Dali ainda ouviria o irmão acordar. Esperou bastante, bastante lhe pareceu.


Até que voltou a Mãe de mangas arregaçadas, as mãos viscosas, ensanguentadas. Ensaboou-se enérgica, e mandou-o ir à cozinha por pano limpo.

 O borrego estava morto. Tinha de ir levar uma enxada, para que o pastor o enterrasse. Não demorasse por lá, nada mais havia para ver.

 
Custou-lhe subir a encosta devido ao peso da enxada.


Quando o pastor deu a primeira enxadada, a ovelha, afrouxada a vigilância, teimava em vir lamber o borreguinho e mordiscar aquilo. Aquilo tinha nome?
Segundinas, acrescentou o Zeca Raio.
Secundinas, confirmaria o Pai ao saber do caso

Silêncio, enquanto o moiral cavava. Silêncio quando, com a enxada, arrastava o corpo e a outra coisa para o fundo do buraco. Só os balidos da ovelha. Tristeza de morte, em gente, já ele sabia o que era.

Toda a terra reposta, o Zeca Raio cortou a canivete um ramo de figueira, fendeu-lhe a extremidade e enfiou-o a fundo a meio da cova.
Vamos lá ver se…
Se o quê, Zé?

No ano seguinte, quando as ovelhas voltaram ao pasto do Cabeço, Zeca Raio engendrou uma vedação, para proteger a folhagem do ramo. Íamos ter uma nova figueira. Um tanto desalinhada das parceiras, a árvore foi fazendo pela vida. “Ai ca raio!”

********
Juntem-se agora a esta história uns puxados quarenta anos. Regresso. Não me perguntem por favor o que, entretanto, fizeram às outras árvores da vizinhança. Na altura, parecia não haver melhor solução, mais tarde até o Pai se arrependeu da mudança que o Cabeço levara.

Como crescera a figueira! Primeiro ainda afastada do caminho de pé-posto, calcorreado por passantes no carrego de água, ou passageiros da carreira do Alto dos Anjos. Depois, a rua mais larga e asfaltada, aproximou árvore e frutos dos transeuntes.

Com o tempo, nem a Mãe se lembrava da origem daquela árvore. Recuou até ao caso do borrego nado morto, repetindo o dito do Zeca Raio: era uma figueira parida por uma ovelha!
O Zeca Raio? Não, ele não sabia nada sobre o antigo moiral.
E a mãe disse:
Enforcou-se há uns anos.
Ponto final

Mas o que a preocupava, além da solidão dos velhos, era a desfaçatez de quem passava pela agora rua de Santa Catarina e, tendo ali tanto figuinho pendente, não se coibia de ir tirando os mais apetitosos. Com que direito? Era roubo. Mais: aquela era a única figueira do Cabeço, onde ela, a Mãe, podia colher. A quem iria pedi-los, se para ela e para os seus nada sobejasse daquele constante cardanho? Tanta fartura e diversidade de fruta noutros tempos.

Por isso lhe pediu ela:
Fazes-me um letreiro?
Um letreiro, Mãe?...
Sim. Que denunciasse o atrevimento de quem passava e fazia mão-baixa, ou melhor, mão-alta sobre os ramos.
Calou-se, sem vontade de se meter em tal pendência.
Não queres? Faço eu!
Decidiu e executou.

Ela: Aqui tens, vais lá pendurar este letreiro…
?...
Ah também não?! Pois não fica por pendurar.
E coxeou pela encosta.
Com um pedaço de cartão de uma caixa de sapatos, escrito a negro de brasa apagada, foi engravatar a Figueira – “Na comão os figos Dêchem alguns prá dona. E voltou senhora de si.

Enterrando, agora o assunto: pudesse ele apartar a muralha do tempo, para:
Leia, Mãe, este segundo letreiro.


Rio de Mouro, Abril 2013