(Legenda: António e Maria da Conceição, com neta Catarina, 1972)
O que vale um nome , mesmo como nome de rua? Quem foi? Quando viveu? O
que fez, para que ali ficasse ao sol e à chuva?
Dizem-me por fotografias que o nome do meu pai
foi dado a uma artéria da Urbanização das Trigosas, em Santarém. Da
velha Texugueira - olival, figueiras, amêndoas, bandos de perdizes … - só resta uma autoestrada,
umas ruas com vivendas, automóveis… E pessoas que não conheço.
Numa das
ruas , nome do meu pai. Quem decidiu teve as suas razões que muito me agradaram.
Talvez a nota biográfica que então redigi, a pedido da Comissão de Toponímia, tenha aqui algum cabimento.
Nesse texto tive por justo sublinhar que se não fosse a minha mãe, Maria da Conceição Marona, a Rua
António Henriques Beja teria outras razões para receber aquele nome.
ANTÓNIO HENRIQUES BEJA JUNIOR
FILHO DE
ANTÓNIO HENRIQUES BEJA E DE OTILIA DA SILVA – NATURAL DE PORTELA, S. SALVADOR,
SANTARÉM – NASCEU A 19-11-1913 . FALECEU A 09-04-1995.
INFÂNCIA
Passou-a até
aos dez anos, na Quinta dos Pinheiros, acompanhado pelas avós Mariana (paterna), e Júlia (materna). Enquanto os pais se ocupavam da horta, donde tiravam a subsistência da família. António era o irmão mais velho de Lucinda, Manuel, Piedade.
As figuras dos avôs, Joaquim Henriques e
Francisco Hipólito, ficaram-lhe sempre no coração.
O avô
Henriques (paterno) queixava-se de reumatismo. Era fiel praticante de
três banhos, nas Caldas da Rainha, pelo S. João. Para ele não havia
melhor tratamento!
Meu pai acompanhou-o nalgumas dessas expedições. E para o garoto, o mais excitante era a aventura de desafiar o
assalto dos hipotéticos malfeitores, escondidos nas furnas do Alto da Serra, depois de Rio
Maior.
O avô Hipólito, deixou notícias de resistência a desmandos, emboscadas e
crimes, por parte de um patrão das quintas onde foi feitor. Republicano, sim, mas com o sidonismo no horizonte.
ESCOLARIDADE
Quatro
bem sucedidos anos, na escola da Portela, com a Professora D. Angélica de
Figueiredo, docente que permaneceu no posto de 1919 a 1954.
Situava-se meu pai entre
os melhores alunos, a par de outros socialmente mais privilegiados. O
sucesso merece-lhe o prémio de um livro de horticultura: A horta do Tomé,
de Motta Prego.
Na Primavera de 1978, António Beja reencontrou-se com a velha
mestra, numa homenagem promovida pelos antigos alunos.
PRIMEIRO EMPREGO
Aos
dez anos: foi britar pedra, no entroncamento da azinhaga da Quinta dos Pinheiros
com a estrada nacional 3.
Grande oportunidade! Para o meu pai e para a escalavrada via pública. Só que o empreiteiro abandonou a obra sem honrar o
contrato. O pequeno britador nunca viu a jorna a que, durante três
semanas, andara a fazer contas …“Foi para aquecer. Não para esquecer”, diria muito mais
tarde.
Nunca esqueceu , porém, a almofada que a avó Mariana lhe entregou no primeiro dia de trabalho. Foi quando, à hora do almoço, apareceu em casa com o estômago vazio, as mãos em brasa e as "cruzes abertas".
Retirada de uma cadeira da casa-de-fora, a almofada esfarrapou-se em poucos dias.
SEGEIRO, 1924-1934.
António insistia com o seu pai em ser mecânico daquelas máquinas modernas, os automóveis, que por vezes
ultrapassavam os carros de tração animal no mau piso da estrada, !
Réplica paterna: fosse antes para a oficina do segeiro, bem
perto do sítio onde, em vão, martelara a pedra.
Depressa aprendeu o trabalho do ferro e
da madeira. Dadas as suas capacidades intelectuais, o patrão confia-lhe tarefas de contabilidade e logística junto de clientes e
fornecedores.
Na experiência seguinte, o rapazote obteve autorização do pai para trabalhar numa carpintaria em Santa Clara. Foi uma promoção, aquela ida
diária à cidade, a passo rápido, de lancheira na mão. Ele e tantos outros da Portela.
Para comprar uma bicicleta teria de poupar do pouco que a mãe lhe devolvia da féria...
FUNDADOR DA SOCIEDADE RECREATIVA CRUZ
DE CRISTO FUTEBOL CLUB.
A Sociedade. Na fase inicial, foi apenas o pontapé-na-bola, num efémero campo de jogos, na quinta do Casalinho…
Depois, alguém
conseguiu uns equipamentos usados pelos jogadores d'Os Belenenses. Atrás das
camisolas, talvez viesse mais…
Não veio. Mas o símbolo do clube ficou. As
instalações da sociedade recreativa, permitram melhorar a qualidade dos bailes, manter em
actividade, enquanto a Censura permitiu e o cinema não usurpou, algumas
representações teatrais. O ensino da música haveria de ter o seu dia … Era o
projeto.
António Beja foi um dos mais empenhados fundadores, em 1930 ou 31(????)
MOTORISTA
Chofer… chauffeur, diziam as senhoras patroas.
1936… Tinha começado a Guerra de
Espanha, quando se orienta para a sua vocação de menino: o automóvel.
Tirou, em simultâneo, as cartas de ligeiros e pesados, o que lhe aumenta as
oportunidades de emprego, bem como o reconhecimento social.
Conduz durante dois ou três anos viaturas de um negociante de rações, farinhas,
azeites, vinhos…, -o senhor Pimentel, em Pernes. O patrão ajudou-o a compreender os valores da tolerância e do respeito, e ainda, o peso do humor e simpatia,
como máximas para uma vida digna. António Beja citá-lo-á, ao longo da existência.
Em Pernes, estreitou amizades, com gente da Música Nova e Música Velha, sem
alinhar nunca em estéreis rivalidades das duas coletividades.
Muitos anos mais
tarde, revoltar-se-ia com a “chafurda” provocada pelo desenvolvimento
industrial, no rio Alviela.
E logo aproveitava para escandir pela undécima vez a
tirada ciclística, Portela-Olhos de Água, numa tempestuosa quinta-feira de
Ascensão. “Os rapazes só fazem algma coisa certa por engano”, garantia.
Quando o Estado Novo quis preencher, com gente de confiança, as direções sindicais, recusou a disponibilidade, para o Sindicato dos Motoristas de
Santarém, deixando perplexo o autor do convite. Como é que um rapaz tão simpático não alinhava com a nova ordem corporativa?!
No final da década de trinta, ofereceram-lhe emprego, na Quinta da Besteira,
próximo da casa da namorada, Maria da Conceição
Marona.
Apercebeu-se desde cedo de que a atividade seria a prazo, dadas as
deficiências organizativas dos patrões, que chegaram a sugerir-lhe prescindir do salário acordado, visto que se ia casar com uma rapariga de família
dita abastada.
1939, 29 de Junho. Estava desempregado, quando
se casou com a filha de um médio proprietário rural da Portela. Joaquim da Silva
Marona. Tiveram dois filhos e com eles partilharam solidariamente todos os projetos de vida.
Considerar a memória de António é envolver Maria da
Conceição no mesmo ato.
AUTOMÓVEIS DE
ALUGUER: 1939-1959.
Não tardou porém em voltar à profissão de motorista.Nos primeiros tempos, empregou-se por conta
de um colega, o Batista, com quem aprendera a condução.
Entrou-se num novo tempo de
Guerra em que, apesar da escassez de combustível, os carros de praça se
tornavam os mais úteis meios de transporte, mesmo quando movidos a gasogénio.
Antes de 1944, já António Beja trabalhava por conta própria e começava a organizar uma
carteira de clientes de relativo nível social, na Cidade e arredores.
Ter uma clientela certa, não o
impedia de aceitar ser acordado a altas horas da noite, quando no fundo da
Azinhaga da Besteira, aparecia alguém implorando por um serviço de emergência:
doença súbita, parto, acidente…
Poder-se-iam exemplificar ocorrências de infortúnio em que
o António Beja foi a voz e o ombro de apoio para vários vizinhos.
Ria-se, quando recordava que alguns desses vizinhos tivessem adiado até ao dia de "São
Nunca" o pagamento do serviço.
A vida era dura. Mas continuava a apresentar-se-lhe
como um tempo de aprendizagem social: nunca lhe escapou a linha de separação entre
humilhados e arrogantes.
Sabia que havia quem arriscava a vida pela Liberdade. E teve a preocupação de ensinar os filhos a respeitar tais pessoas. Mesmo não compreendendo ou
não concordando com as todas razões delas.
AGRICULTOR
A partir de 1954. As
suas raízes camponesas permitiram-lhe uma fácil adaptação à atividade agrícola,
quando, sempre em conjunto com Maria da Conceição, passou a gerir a herança de Joaquim da Silva Marona.
O sogro falecera
em 1948. Os bens seriam agora geridos por dois proprietários, independentes, meu pai e o meu tio Joaquim.
Como agricultor integrou-se no ciclo de esperança-desespero
do trigo, azeite, vinho… Dentro da tradição agrícola local.
De empregado de terceiros, António chegara a trabalhador por conta própria e tornava-se, agora, empregador. Com a
mesma modéstia de sempre.
Embora o número de trabalhadores rurais fosse
variável e diversificado, em função da natureza das tarefas, nunca ocorreram
situações de rompimento entre as partes contratantes. Quando em 1974, com um
dos filhos teve uma conversa sobre a consciência social do patronato, em tempos
que se diziam de Revolução, concluiu com a serenidade do sexagenário:
“Nada me
pesa! Talvez não tenha pago o salário justo, mas posso garantir que sempre
paguei o ajustado.”
"E sempre em trabalho honesto”, sublinhou. Manteve a exploração
agrícola até aos anos 80.
Em 1958, não teve hesitações e
foi a correr votar no General Delgado, depois de ter vibrado com a visita do
candidato a Santarém.
COMERCIANTE:
1956-1986(+/-).
As primeiras experiências como
proprietário agrícola não foram economicamente tão compensadoras como as do
falecido sogro, nos anos de 1910-40.
A pequena agricultura confrontava-se com fortes
desafios. Começava rarear a mão-de-obra, a mecanização era ultradispendiosa, a Corporação da agricultura só apoiava os grandes empreendedores…
António Beja que,
entretanto, não deixara o trabalho na praça de automóveis, embora se tornasse
cada vez mais seletivo quanto aos clientes, decidiu enveredar por mais outra atividade
económica: o comércio de vinhos e seus derivados.
Para evitar o encerramento da taberna da
Besteira, adquiriu o alvará a um parente. Razão principal: escoar a produção
vinícola por um preço minimamente compensador da despesa de cultivo. Minha mãe não esteve logo de acordo com a abertura do negócio
Durante
trinta anos o estabelecimento forneceu os camponeses dos arredores, e foi ponto
de encontro de clientes vindos da Cidade, movidos pela simpatia do Beja e pela
qualidade do serviço e produtos. A cozinha de Maria da Conceição era uma das principais razões das preferências.
A certa altura, para que se considerasse a sua dupla
atividade de agricultor e comerciante, António Beja passou a referir-se à loja
como a Tasca do Fazendeiro.
Mais do que uma tasca, o comércio tornou-se uma espécie
de cantina para os rurais e um refúgio de boa cozinha para os petisqueiros citadinos.
Em 1959, negociou o
alvará de taxista, pondo termo à tal profissão.
PROMOTOR
IMOBILIÁRIO
Não se veja nesta designação qualquer objetivo
de lucro rápido. Havia uma propriedade de escassa valia agrícola, no Alto dos
Anjos, o Cabeço. Vendo-se sem segurança social para a velhice, meus pais decidiram promover um loteamento habitacional. Só por essa razão se resignaram ambos a
contribuir para a edificação de casas em chão de lavoura.
Foi a última
atividade que ocorre relembrar nestas notas.
NB: este texto foi redigido em 2010.