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quarta-feira, 18 de maio de 2022

ESCREVIV. 2.15 Branca e Alice, no alto dos Anjos

 Só atentos à realidade, poderemos ser surpreendidos pela fantasia.

 Como eu queria que esta parlenga trouxesse aqui, ao portão da Quinta dos Anjos, os poderes de três magos. A quem  crianças como vocês -Marta, Sofia ,Tiago...Álvaro, Pedro   - tanto devem. Já sem falar  dos que, antes e depois deles, temperaram tal  magia.

***

Agora,  voltando à  Portela e arredores. Sabem os meus leitores, se os tenho e se me assiste o direito de os incomodar com perguntas, quem foi o primeiro leiteiro-à-porta lá/cá do sítio?

 Esse mesmo, velhotes!

 Adílio Henriques, filho do cesteiro ti’ Manuel da Susana e da ti’ Maria Águeda.

Tinha ela, sim senhores, olhos de aço polido. Por injustiça e ignorância, assustadas mães lhe esquivavam as crianças de colo, não fosse a velha dar-lhes quebranto. Carcaça sofrida. Tuberculose, sanatório, morte de descendentes… cercaram-na de dramas. 

Teve ainda de assistir, noutros palcos, a chufas e dichotes:«Ai que estojo!!!». 

Farsas do acasalamento. Outros quebrantos, pois até no melhor pano… 

Ora, uma tarde, apareceu em minha casa, sem aviso prévio, o Adílio. Bata branca, bilha e caixa das medidas refulgindo higiene. Sorria garantias de qualidade. Futuramente seria ele a fornecer o leite, vendedor da Cooperativa. Interessados? À primeira vezada, tratava-se apenas de prospeção do mercado.

A bilha, vazia, falava por si. Querendo-se confirmar, bastava tirar a tampa e abrir a caixa das medidas. Tudo alumínio de primeira e  respetivas aferições. Tanto lustre por dentro como por fora. Coisa rigorosa. 

A partir do dia seguinte, todas as bilhas sairiam seladas da Cooperativa. Onde é que já alguma vez se tinha visto uma coisa assim?

Nem a ti’ Luísa Caréu da Quinta dos Anjos que, até então, assegurara uma venda  satisfatória. Secas que fossem as tetas do Gana ou do João Hipólito, salvo seja. Das suas vacas, está claro!!!!

A seu tempo se falará destes dois fornecedores sazonais. 

Já chega para atestar que, antes da Cooperativa, quem queria beber ou dar a beber leite fresco, tinha de se deslocar à fonte do dito. E por vezes voltar a casa com a vasilha vazia.

 Então e os magos  ? Tenham paciência, que a patranha demora, como dizia o meu amigo Joaquim Ferrador, enredado em histórias de caça.

O leite, para mim, «podia correr por uma telha», parecer da minha mãe. Para em cada manhã me deliciar com uma tigelada de sopas, salpicadas com café de mistura. Mesmo que se tratasse de leite gordo e enjoativo das ovelhas da minha avó Marona. Por uma telha!

 Levei anos até compreender os inconvenientes deste mata-bicho.

Quanto ao meu irmão, desde muito cedo que ficou dependente de leite artificial, passando posteriormente ao  de vaca, destemperado com água.

Daí que quando a Palmira foi servir para casa da minha avó incumbiram-na de ir, todas as tardes à Quinta dos Anjos, aviar-se do precioso alimento. Eu acompanhava-a, ou melhor, fazia parte do grupo de clientes.

***

 Subíamos ao cabeço dos Anjos, tomávamos o carreiro a que chamam hoje de rua de Santa Catarina. Atravessada a estrada, era só seguir pelo arruamento saibroso da Quinta...

 Perguntavam-me quando é que deixava aquele bibe de xadrezinho. Preto e branco, por luto do meu avô.

Apoiada numa cana, chocolateira de cobre na outra mão, encabeçava a fila, aos solavancos e gemidos, a ti’ Maria Pequena. Avó do Coquelim, tia-avó da Florinda… Chega de mais parentescos por agora.

Velha e coxa. Uma chaga incurável numa canela, abrigava-a, no regresso da quinta, a fazer pausa em casa irmã, a ti’ Júlia Boleeira. Para lhe fazer o penso.

Quando a Palmira deixou de trabalhar em casa da minha avó, eu mantive a ida diária à Quinta dos Anjos, agora entregue à Maria Pequena. Garrafa dentro de um saco de retalhos e juízo na cabeça!

Ufff! Nunca mais acabava a volta do leite. Depressa me fartei. Dos constantes lembretes sobre o meu comportamento, dos passinhos curtos da velhota, mais da conversa mole na paragem no sítio da ti’ Boleeira.

O casal era mesmo em frente do portão da Quinta dos Anjos. Evito agora pintá-lo, em verdes, vermelhão do saibro,  alvadio da casa…

Sim, e a charca! A charca das mil navegações, embalado pelo coaxar das rãs, enquanto à volta das espadanas me perseguiam monstros…

 Sosseguem, eram apenas cobras de água que eu avistava da margem, contemplativo entre as estevas. Adiante, para me poupar o coração.

 Só mais uma pincelada, desculpem. 

Sobre toda a propriedade da Júlia Boleeira, distinto de ambas as margens do Tejo, erguia-se o Pinheiro. Manso, rico de ninhos e pinhões. Gigante de harmonia e majestade,  no tronco e na copa. Nunca vi árvore assim entre as da sua espécie. Multissecular, figurava nos mapas.  Cheguei a deitar cálculos: quantas crianças seriam necessárias para, de mãos dadas, lhe abraçarmos aquele espesso tronco? 

Ai de quem se arriscasse  abatê-lo! - dizia-se.

Naquela tarde de Maio, estugávamos o passo, para não sermos apanhados pela trovoada. Eu queria correr, Maria Pequena ralhava-me, entre rezas a Sam Jirolme e Santa Barba. Que podia cair, entornar o leite, cortar-me nos vidros da garrafa. Aquilo eram só trovões! De momento. Íamos conseguir abrigo no casal, antes da chuvada grossa.

***

À justa! «Agora, que Deus a mande… Santa Barba e Sam Jirolme…»

Na sala, que servia de atelier de costura, estava uma menina desconhecida. A Florinda! Mais velha do que  eu. Indiferente aos receios com que a modista, a sua tia Constância, e a avó Júlia escondiam agulhas e tesouras. Não fosse um raio entrar pela casa dentro. 

Florinda folheava cadernetas de cromos.

 Sobre a casa caía um dilúvio, relampejava por todo o vale . Ramalhava ameaçador o grande pinheiro.

 Devido ao súbito escurecimento, acenderam dois candeeiros a petróleo, um dos quais foi colocado sobre a mesa onde a Florinda me começava a identificar os bonecos dos seus livros. Ela já sabia ler. E eu, aos cinco anos começava a sentir vontade de aprender. Quando?

Esquecido do mau tempo, entrei na primeira caderneta de cromos, A Branca de Neve. Inédita e doce ansiedade. 

 Posteriormente, quando a Florinda foi para a escola da Portela, e eu já me aventurava na leitura e nas visitas sozinho ao casal da avó Boleeira, pedi-lhe por empréstimo a caderneta da Branca de Neve. Então, ela avançou outra coleção que, entretanto, concluíra. Alice no País das Maravilhas.

Aqui está a chave dos meus três magos: dois irmãos Grimm mais o Lewis Carroll. Que disseram eles todos sabemos, o que quiseram dizer com aquelas personagens e peripécias,  fica por  nossa conta. Ainda hoje procuro ali significados escondidos.

 Releitor que revisita o local onde abriu pela primeira vez os livros.

***

Apagaram os candeeiros, porque  reclareava a tarde. Nesse caso,  que a Florinda me levasse  a ver os cachorrinhos. Sugeriram as adultas.

 Ela pegou-me pela mão e puxou-me para  o recanto onde a cadela tinha, horas antes, parido a ninhada. Tantos!

Mexer-lhes, nem pensar! Aviso de que a bicha estava sôfrega. Rosnadelas, olhos turvos.  

Dias depois compreendi que, à exceção de um, sempre o primeiro a ser abocanhado pela mãe, todos os outros tinham sido afogados. Pelo criado da avó Boleeira. Na pia dos carneiros e por que não na charca?

***

Era tempo de nos pormos a caminho. 

 A  meio do Cabeço, ouvi pássaros. Sacudidos dos ninhos pelo vento, piavam impotentes na boca de dois gatos que em vão espantei, sem conseguir libertar as vítimas.

Como se não tivessem bastado a trovoada e as maldades da rainha madrasta, a cadela  ameaçadora…

Branca e Alice, no alto dos Anjos. Aqui vo-las deixo.

Tudo soçobrou: pessoas, casas, matos… Terraplanaram a charca. Para construir ali um centro comercial, no ramo dos móveis importados.

Mas o pinheiro? Que lhe fizeram? Quem? 

Se me tivesses telefonado, teríamos cumprido a promessa de nos acorrentarmos ao tronco! Estava combinado, camandro!

  E o Rebelana fechou-se em copas.

 «Então, meu?» ,  gaguejei-lhe com a  faca no peito. 

«Não te disse nada. Não havia nada a fazer. Esquece.»

Tinhas razão, amigo.  Esquecer pode ser a chave.

Contudo nunca esqueci. Branca , Alice e  o Pinheiro.

Aqui tens, Florinda.

Novembro 10, 2010 

 

terça-feira, 10 de maio de 2022

ESCREVIVÊNCIAS 2.14 À unha! De caras

 

À unha! De caras!

O Marino, disposto a dar uma bem-vinda mãozinha escrevivente, nas estórias da Quinta dos Anjos. Instado pelo Alfredo.

Convicto, este, da minha completa ignorância, quanto a um pormenor da vida do Joaquim Caetano.  Meu já declarado amigo de infância e tratorista da Quinta.

Só faltava agora sabermos  tudo sobre a vida dos nossos amigos, meu irmão!


E o Alfredo invetivando-me:

 «Sabes tu, sabes tu de quem é este castelo?»

 Essa não!…Era de outra lenda. Lá para os lados de Barcelos.

 Peço desculpa. Em tempo, se corrige:

 «Sabes tu, como começou a promoção a tratorista do Joaquim Caetano?»

Contorci-me. Em branco, menino! Não sei, não vi, não estava lá.

Nunca, o mano Alfredo deixa sem resposta:  

«Ainda bem que lá não estavas, teria sobrado também uma cornada para ti. Conta lá, Marino!»


*


«Muito antes do Braga, que se arruinou nos amanhos da Quinta das Trigosas, esteve lá o João Caldas. Lembram-se?

Rendeiros.

Mas isso  já eu aduzi, metendo lavoura escrita na Texugueira, empoleirando, no valado da Oliveira Santíssima, a santinha da minha avó Gertrudes. Sem desfazer em mais nenhuma das outras avós do mundo. A berrar pelo neto.

Só que  a tal promoção do Joaquim Caetano dera-se uns anos antes. O mais certo até,  antes de eu ter nascido. Quando?...e o que é que isso importa!

Marino acredita, pela atenção do concílio dos primos, que a curiosidade rebenta.  Estávamos à mesa os netos da avó Otília, do avô António Caréu.

Então foi ele, Marino, com sete/oito anos a ouvir a gritaria da vizinha  Sapata... No sitio do Canto. Aquela nesga de modestas habitações, entre as Trigosas e o Casalinho.

 Que levavam ali, enrolado numas sacas, deitado e desmaiado ou morto, sabia-se lá, um rapaz boieiro do Caldas.   No lastro de um carro de bois. A caminho do hospital. Nunca mais lá há de chegar, se não vierem os bombeiros. 

Entrementes, alguém teria ido por eles, de bicicleta.

*

Joaquim Caetano. Por azedumes. Com um dos bois da junta que lhe fora atribuída. O boieiro recorrendo à aguilhada por dá-cá-aquela-palha, o bicho respondendo tão-só com olhar turvo.

Cada vez mais bistre e sanguíneo. Quem é que sabia ler o olhar de uma animal que até ali fora a pachorra, a moleza da lama,   a todas as vozes de comando. Sem castigo nem ralhos. Sem desconfianças de parte a parte. Ao tirar e pôr a canga ou a soga. Atrelado ao charrueco,   à grade, ao lamego, ao carro. A quatro ou de singelo.  

 À manjedoura nunca o bicho passava sem retribuir cuidados de postura alimentar ou de cardoa,  lambendo as mãos ao tratador.   Boi e boieiro como irmãos. Salvo seja. Até que… E vá-se lá saber a razão. Assim pode começar uma guerra!

 Verão, fim da sesta. A junta de bois remordia, por desfastio, uns ramos de freixo, pelas sombras, na frescura das várzeas da Ribeira Grande. Joaquim Caetano amodorrara um pouco para recobrar forças. Mas,

Ao trabalho! Era preciso voltar a meter os animais ao carro regressar à Quinta dos Anjos.  

Nesse momento. O boieiro teve a certeza: aquele bicho estava a pedi-las!. A coisa tinha de ser tirada a limpo. À unha! De caras!

Contava-se, depois do acidente, que o Caetano, sem se aperceber da gravidade, mudara o nome do animal. Três anos seguidos, Doirado isto, Doirado aquilo. Companheiros de trabalho, jorrando suor para a bolsa do mesmo patrão.  

Mas quando o animal se firmou em desafio. Na Ribeira Grande, já está dito. Bateu-lhe as palmas, o boeiro. Fez peito e saltitou. Eh Boi! 

«Eh Mal-capado!».

 Duplo e feio insulto. Tanto atinge o machorro como o emasculado. Ouvido por boi, nem por isso obriga a perdão ou desconto. Mesmo boi manso, pisado de trabalho. E já esquecido da pancada do malho, com que o do ferrador lhos moera. Pois é, mas tudo tem os seus limites.

É preciso chamar os bois pelos nomes, Joaquim Caetano. E tu devias saber isso desde os tempos de menino, lá em Óbidos. Quando com os da tua idade tocavam as juntas, para dar aos barcos aquilo que areia da praia lhes roubava. Movimento. Muito antes de chegares à Quinta dos Anjos.

Este boi não teria trapio nem cornamenta para ti? Cuidado!

Logo, o bicho se soltou da soga e levantou a cabeça. Ainda te dava uma oportunidade de corrigires. Cerejo, Ramalhete, Doirado, Cabano, Trigueiro, Formoso, Salgado, Castanho … eram nomes de boi. Quem não se lembra? E os bois gostavam de ser chamados pela sua graça. Só que, só que foste longe demais. Repetiste: 

Mal-capado!

Corrida breve para acolher o impacto. A tua última, sem perna desnocada. Vamos … Vai-te a ele. Embarbela-te, homem. Aguenta o derrote. Torce-lhe a cabeça, caraças!

 

Foste sacudido. Marrado, pisado… O Marino até garantiu que mordido! 

Não será fantasia, relato de rapazola de sete anos há-de ter seu fundo de verdade.

 E um remate a preceito: por fim, atirado ao ar!

Caiu o boieiro como uma pedra. Baque!

Tranquilo, o boi regressou aos ramos dos freixos. Por desfastio.

O resto já se sabe. Hospital, milagre dos médicos e das irmãzinhas da enfermaria.

Sobretudo, o bom coração da senhora D. Maria Romana. Insistindo para se conseguir a decisão soberana de João Caldas. Manter o Joaquim Caetano ao serviço da Quinta. Mandando-lhe tirar a carta e comprando um trator. 

A Nação precisava de trigo. E do suor do povo. Mandava o Chefe. 

Olá! O senhor dos Anjos era dele  incondicional

*

Tudo isto estava fora do meu conhecimento, Amigos!

 Obrigado, Marino e Alfredo. Aqui temos um trabalhinho de equipa. 

De facto, tratavam o Joaquim Caetano por Coxo.

 

segunda-feira, 2 de maio de 2022

ESCREVIVÊNCIAS 2. 13 Trigo!

Trigo, tanto trigo!

Queremos pão!

A grande lavoura. Estava-se ainda no auge dos três ciclos de produção. Trigo, azeite, vinho.

 Sustância para o corpo, linimento para a alma. 

As carências, da primeira metade do século, ditadas pelas guerras mundiais e pela sanguinária confrontação civil em Espanha, determinaram incentivos à produção. 

Particularmente quanto aos cereais panificáveis

Ganâncias e... fomes. 

Tanto trigo!

Queremos pão!

Por aqui nos ficamos, que isto não é requentada doutrina neo-realista.

 Nos finais de 40, o lavrador João Caldas trazia de renda a quinta das Trigosas e o lavrador José Ribeiro Tropa, dono da Granja, amanhava a Quinta da Besteira.

O empreendimento levava-os a investir fora dos seus domínios.

Produzir! Produzir! 

***

Segue ali, o semeador, com as balizas de caniço entaladas debaixo do braço, esquerdo, contra o sementeiro. Compasso a rigor. 

Parecia retirada do peito, aquela mão cheia de promessas. Recuada até os ossos rangerem, avançada de seguida, aberta e repartidora, em direção ao ombro esquerdo. Distribuindo o cereal em sucessivas meias luas. Regular. Nem ralo nem basto.

“Abençoada mão que fez este trabalho!” diriam as mondadeiras. 

Do mesmo modo, junho fora, as ceifeiras, os gadanheiros. Porque, às vezes, se reconhecia a  perfeição, mesmo quando as forças das gentes se esvaíam em suor e dor.

Julho, já com a colheita enceleirada, as debulhadoras dos Anjos e da Granja acudiam à produção dos pequenos e médios agricultores.

 “Quem não tem bois, ou antes ou depois” .

Provérbio de conformação de pobres e remediados.

***

Música Velha, Rebelana!

«Tu ‘tás-me a ouvir isto?» 

O quê, Rebelana? 

A conversa parecia já descarrilar, por efeito de um copo a mais.

 Sons vadios. Vadios? 

«Sobem do passado…» 

Eram os pregões do Có, do Pronto Caleiro, do peleiro, do Rica-Prima… 

Chega, Rebelana, apre! 

"' pera aí, pá!"

Faltava  ainda o  homem da enfardadeira!

Qual homem, Rebelas?

"Na 'tás a ouvir, gaita?


***

Às vezes, dava-lhe para comparar o som da corneta do João Macho com a do Francisquinho. Sardinheiros da Azoia, fornecedores da Besteira. 

Um alongado chifre de boi, aventado pelas bochechas de cântaro do João Macho. A par de um sopro tísico,  numa corneticha de metal, espremido pelo Francisquinho.

Mulheres a saírem dos quintais. Comprar para elas e para quem tivera de ir trabalhar mas fizera encomenda e deixara prato e pano. Para que as moscas não viessem logo pôr larvas nas sardinhas ou no chicharro. 

Mais do que peixe fresco, a carroça do João Macho trazia  novidades. 

De frescura garantida, numa manhã, sem jornais. Nem telefonia. Com um telefone, único e mais próximo, na dita Quinta dos Anjos.

***

A  debulhadora

Na Besteira nunca acontecia nada. Quase nunca, a bem dizer.

«Não é verdade!», contestava-me, pela década de 80,  o  meu amigo Rebelana, na taberna do Cunha.

Acontecia a chegada das debulhadoras!

Sempre à tardinha, de um dia tórrido. Quando a polícia de trânsito autorizava, sem que os rastos de ferro das máquinas estragassem ainda mais o alcatrão fundido pelo sol.

Vinham em primeiro lugar as galeras, puxadas a muares. Carregando bidões de combustível e lubrificante, correias de transmissão,  a balança, rolos de arame, o cavalete do esticador.

O esticador instalava-se na periferia da eira. Sabendo dos ventos, do curso do Sol, protegia-se, assim houvesse oliveira a jeito. Passava todo o dia: estica, enrola uma alheta na extremidade, corre à outra ponta do cavalete e guilhotina. Arame de ferro, dúctil e oxidado Atilhos de trefilaria para os fardos de palha.

 Aglomerava-se, vindo do cu-de-Judas, o primeiro rapazio, tomando posição para o resto do desfile. O alarme  correra pela Portela.  Esperem por mais! Chegava a debulhadora!

O segundo elemento do cortejo era a enfardadeira, puxada por uma junta de bois.

Tratava-se de uma máquina finalizadora do trabalho: comprimia a palha, aramava os fardos e expulsava-os. Para o chão, se os homens encarregados de os levarem ao ombro não ocorressem a tempo. 

Prensado o fardo, quem estava nessas funções dava duas pancadas com o alicate. Aviso duplo, para o carregador e para o homem que alimentava a palha. Pusesse mais um separador de madeira, fronteira de um novo fardo. 

O alicate contra um pedaço de folha de charrua. Aço contra aço.

Rebelana não tinha ali nada, na tasca do Cunha, para reproduzir os sons que lhe brigavam nos ouvidos.

Aquela estridência sobrepunha-se a todos os outros ruídos da eira. E afastava-se agressiva e monocórdica pelos campos de restolho. Com as revoadas de palhunça.

 Faz lá outra vez, Rebelana!

Se o Rebelana lesse hoje esta relação, já estaria a espingardar. Com razão, pois pus o pessoal a compactar os fardos, sem ter ainda instalado a maquinaria principal.

Faltavam debulhadora e fagulheiro. E ainda o trator, que os rebocava na estrada e accionaria todo o conjunto na eira.

No rabo do desfile, a pé ou empurrando bicicletas, atravancadas com bugigangas, seguiam os trabalhadores. 

Quinze, vinte? Um rancho! Mantas e alforges. Material de refeição. Seira de palma com talher, temperos, côdeas de pão, rodilhas. Caldeiras fuliginosas, as burras, ou sejam, as negras hastes de ferro em que as ditas caldeiras seriam suspensas sobre as chamas. Alguns também levavam frangos. Debicando de eira em eira, engordavam os bichos, a custo zero, para patuscada, no final da época.

A petizada, embasbacando-se com aquela tropa fandanga, nem dizia em casa para onde se ausentara. Voltariam, dos mais pequenos aos mais matulões, nos dias seguintes, à eira, fascinados com tanto avanço de maquinaria.

Calcadoiros, trilhos, uma parelha de éguas em rodopio, padeja de palhas e moinhas, impropérios contra os ventos, ora amainados ora em desalinho, eram obra do passado. Embora ainda usadas para as favas, o grão-de-bico, os chícharos…

Quem é que se vai lembrar do nome de todas as alfaias do trabalho nas eiras, daqui a cinquenta anos? Daquele seco martelar na relha com o alicate?

Que te poderia eu responder, Rebelana?

Santarém não tem hábitos, cultura, políticas de museologia. Nem orçamento nem vontade. Já lhe chega ter de armazenar os achados arqueológicos, sempre que escavam um arruamento.

Afora os azulejos do mercado municipal, muitos deles espelhos do labor desenrolado ali ao lado, no Campo Sá da Bandeira, o Concelho não honrou devidamente com um museu etnográfico, o trabalho. Quem lhes produziu riqueza nos  campos, no rio, nas oficinas  de artes e ofícios. Salvou-se a jaqueta do campino e viva o velho. Tanto mais absurdo quanto a cidade se quer, segundo alguns, conservadora, mas quase necrófila.

Na Portela, onde todos os utensílios de lavoura foram levados pelo caruncho e pelo ferro-velho, Rebelana foi, até aos seus últimos dias, um guardião de sonoridades. Desde a pancada do alicate, cadenciando o rendimento da enfardadeira, ao gorjeio de todo e qualquer passaroco. 

Tal como o Mané-Mané, foi o último assobiador, estrada-a baixo estrada-a cima.

«Tu ‘tás-me a ouvir este som?» 

De nada valia retorquir ao Rebelana que eram coisas do antigamente.

Música velha!


 


sexta-feira, 29 de abril de 2022

ESCREVIVÊNCIAS 2.12 Arranjei um amigo

 Saltei o valado!

Casal dos Labaças. Ou das labaças?  Já não importa ir procurar. Sítios que se deliram no meu imaginário. Sítios do nunca mais. Que alívio!

Era por ali a propriedade dos meus  avós Maronas, como já disse. 

Foi por ali e por lá comecei eu a ser criança. A sentir os limites do espaço e o apelo da debandada....À menor oportunidade.


Uma tarde, antes do casamento, da Ilda Direitinho com o  Joaquim Caetano.

O que era aquilo?

Saltei o valado da Texugueira, intrigado pelo ruído do tractor. Caminhei ao longo do rego da charrua, até que o Joaquim Caetano me descobriu, parou e convidou a trepar para a máquina. Dei uma volta, encantadora. Guardo dessa viagem um odor estranho de  leiva e combustível . Irrepetível!

 De repente, vejo a minha avó Gertrudes, a gesticular, no sítio da Oliveira Santíssima. Do palheiro dos bois, no casal dos meus avós, alguém me vira fazer aquela incursão na Texugueira. 

Rapazinho em fuga? Era só o que faltava!

Fui reencaminhado para os limites do terraço. Entre a casa-de-fora e a casa do forno. Que me contentasse com os relinchos, os mugidos, os cheiros dos animais.

Deixá-lo!

 Tinha acabado de confirmar um amigo. 

O Joaquim Caetano!

***

..

 


terça-feira, 26 de abril de 2022

ESCREVIVÊNCIAS 2.11 Os Direitinhos

A SEMENTEIRA

Na Quinta dos Anjos. Manhã de Inverno, talvez 1948-49. Frio e nevoeiro. 

A Ilda Direitinho, ainda solteira, era , por morte da mãe, Justina, a governanta da casa.  Mandou o irmão Fernando levar o almoço ao outro irmão, mais velho, o Mário Olho-de-Vidro, que andava na sementeira do trigo. 

Os Direitinhos viviam num quintal colado ao nosso. De muito pequeno, perdido-e-achado, era com eles que me distraía. E se surgia a oportunidade, logo me punha a caminho com aquela boa gente.

 Com o Fernando, entrámos  na Quinta, para o lado da eira, na folha  da Mafarra. 

De onde guardei, até hoje, imagens  da grande lavoura do  Caldas. Aliás do senhor Caldas! Respeitinho  era bonito!

 O trator, sempre conduzido pelo Joaquim Caetano, várias juntas de bois que gradavam, dois semeadores…

Parecia que a névoa apagava os semeadores,  sempre que se afastavam ; para os devolver,  nítidos, tempo depois. Quando retomavam a nossa direção e vinham reabastecer o saco sementeiro.

Enquanto eu os não avistava, disse-me o Fernando....

- Chamavam-lhe o Palã. Por ser claro  e diverso na conversa.  Paleio! -

... que aqueles homens andavam a semear trigo, nas nuvens!

Não me convenceu! Então, chamou-me perto  dos  bois e mostrou-me o vapor saindo-lhes das narinas. Aquele “fumo”, o nevoeiro e as nuvens eram tudo a mesma coisa, explicou. Bolinhas de água! 

Encolhi os ombros, indiferente a tanta sabedoria .

Empurrado pela friagem da manhã aproximei-me de uma fogueira. Alguém pusera pinhas ao calor, para soltar os pinhões. Atraído pelo aroma, tentei forçar a abertura das escamas de uma infrutescência.

 Ai! Queimei-me. Pior, fiquei com as mãos manchadas de resina, enegrecida pela poinha negra das sementes. E agora? 

Obrigaram-me a retomar o caminho de casa, de braços abertos, para não sujar a roupa. 

Foi a Ilda que, com um trapo embebido em petróleo, escorrido da torcida do candeeiro, me fez a primeira limpeza. Incompleta, para poupar.

O petróleo continuava caro e escasso.  O candeeiro era um luxo. Acendia-se excecionalmente, naquela casa. Bastava a candeia, aproveitando o  azeite  das frituras.

 De mãos limpas, já podia seguir para casa. Para ouvir ralhete por ter mexido onde não devia. 

Como se as crianças fossem estátuas!



O Casamento

A Ilda e o Joaquim Caetano casaram na capela dos Anjos. Fui assistir, a convite da noiva.  A minha mãe , fazendo das tripas coração,  confiou-me ao Coquelim.

 Com o encargo de me trazer de volta logo que a cerimónia acabasse. Que tivéssemos  juizinho, sobretudo ao atravessar a estrada, no Alto da Portela. Não era a primeira vez que me chamavam a atenção para o perigo de atropelamento naquela passagem. 

Eu andaria pelos cinco anos, o Coquelim teria aí uns dez. 

Após a cerimónia, o meu acompanhante esqueceu-se do compromisso. Virou costas e partiu, rumo à Besteira, com um bando de catraios mirones: um Toino Rocha, o Pampo e o Luís Pedro do Pagante , o Toino Bacalhau, o Nicolau da Sapata… Ah! E o Rebelana

Chegam, por hoje... Malta brava. Sombras, não mais.

 No alvoroço de calaceirar, sem convite, o copo-de-água. Sempre haviam de lhes atirar algumas sobras. Uns nacos de pão com carne. umas aparas dos bolos-ferradura, confeitos...

Corriam pela ladeira do Cabeço abaixo. Eu protestava: que não me deixassem para trás! Em vão. Sabiam que não me ia perder Por assim dizer, já estava em terreno da minha família.

 Quando a minha mãe me perguntou, se tinha ido dar o beijinho aos noivos, se gostara do que vira, respondi pela positiva. E avancei um pedido de esclarecimento:

 «Ó mãe, o que é que o Coquelim disse que os noivos vão fazer esta noite?» 

Não fui respondido!! 

E ainda ouvi ralhar.

sábado, 23 de abril de 2022

BASILISCO!...

Não seria correto continuar na companhia do tal Badalisco da Quinta dos Anjos, sem um breve e já tardio esclarecimento.

O termo certo é basilisco!  Por corruptela se chegou a badalisco. Ou se preferiu usar basalisco

Esta alteração fonética vai de paralelo com a mudança operada na onomástica, em que o nome de Basilisa passaria a soar popularmente como Badalisa . Ocorrência  registada na  região saloia. A propósito, podem ser referidos a capela  e o culto a Santa Basilisa e São  Julião, na Ericeira.

As notas abaixo completam esta clarificação. Não sendo portanto necessário perder mais tempo.

Só falta acrescentar que a reprodução da peça,  que foi pertença da Capela da Senhora dos Anjos,  aproximar-se-ia da imagem de Melchior Lorck. Se a memória não me falha.

Reconhecido pela vossa atenção.

1. « basilisco simbolizava a figura alegórica da morte, do medo, do diabo, do pecado ou do Anticristo. Entre os pecados mortais, em que o basilisco é muitas vezes comparado estão a cobiça, mas também a inveja e a arrogância. Jesus Cristo é representado muitas vezes esmagando o basilisco.»  in Google

2.


Melchior Lorck: Basilischus (basilisco), Radierung, 1548

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.



terça-feira, 5 de abril de 2022

ESCREVIVÊNCIAS 2.10 A bisa Perpétua

 A bisa Perpétua

Deixem acrescentar que o Badalisco dos Anjos era tão antigo na sabedoria da minha mãe como tudo o que, na infância, ela aprendeu com a sua avó paterna, Perpétua.

Perpétua Azevedo não viera de Alcanhões, para a Quinta, de mãos a abanar. Trazia-as ocupadas com uma filha de poucas semanas, enquanto na mente lhe laborava uma esperança: ficar ama de leite dos Sampaios, os proprietários antecessores dos Caldas. Perpétua esquivava-se à humilhação da família, por uma gravidez de macho desertor.

 Se Marta subira ao altar de Alcanhões com o seu ventre fecundado, Perpétua virou-lhe as costas na procura de um lugar onde a filha não ouvisse a vergonha de um tal ingresso neste mundo.

A figura desta mulher tinha, para a minha mãe, uma dimensão mítica. Fêmea capaz de construir o seu próprio destino, a avó Perpétua

Na Quinta dos Anjos, veio a jovem Perpétua encontrar dois desempenados moços de lavoura, Jacinto e José Marona. Rapazes de um Manuel da Romeira, Manuel António, já passados pela Quinta da Mafarra, ao que dizem os papéis da Maria Alzira. Com qual dos dois havia Perpétua de ficar, já que ambos não escondiam o desejo de casar com ela, sem se preocuparem com o facto de ter sido usada e pejada.

Perpétua também caíra no agrado dos patrões, que a mantiveram no serviço da casa, quando deixou de amamentar. Não tinha pressa em escolher um dos dois Maronas.

O José era o mais atiradiço. Atribuíam-lhe a fama de sementão de algumas barrigas da Gaia, que lhe ia pela calada da noite aquecer as mantas. Guio-me pelo repertório da minha mãe, muito embora me pareça mais plausível o relato da Maria Alzira, sobre Maronas e Gaios. 

“Filhos do cunhado” e “Filhos do palheiro!”, distinguia a minha bisavó, condoída com a sorte das crianças. Ela lá sabia.

Perpétua Azevedo acabou por casar com o Jacinto Marona.

Uns casando no altar da capela, outros, não muito longe dali, na tarimba do estábulo. Era um "vê se te avias! A maneira mais prática de pôr um fim a estas coisas que, de outro modo, se desejariam para sempre. Enquanto durassem!...

 Destes dois irmãos vêm os Maronas da Portela. Alguns dos Gaios também tomaram o nome de Marona. A mãe Gaia saberia melhor do que ninguém. Ponto final.

Isto há cada uma! Entrei na Quinta dos Anjos para fazer um pedido ao atual proprietário, sobre a conservação da sua propriedade e, agora, não sou capaz de virar costas. 

Como ele ainda não me convidou a sair, volto à minha festa.

Naquela festa dos Anjos, minha mãe limitou-se a ir à missa. À saída da capela, mão habilidosa roubou-lhe um broche de ouro e brilhantes. Ficou inconformada, toda a vida. Embora o meu pai lhe tenha oferecido, assim que as economias o permitiram, uma peça muito semelhante, nunca mais deixou de sentir a afronta. Sempre que a segunda jóia cativava o apreço de alguém, lá vinha a minha mãe lembrar-se do furto. Perdas insubstituíveis!

 E o que  a perda dos objetos comparada com a das pessoas? Badaliscos, joias, alfaias litúrgicas e agrícolas de antanho… Incluo no rol, a propósito, o bico de escamisar da avó Perpétua. Onde é que raios eu o guardei, que lhe perdi o tino? 

Fossem-se os anéis mas ficassem as pessoas! Com a sua memória fresca, o tal  brilhozinho nos olhos e o coração tolerante. Cuidado, viver sempre também cansa, amigo!

E já que isto tem parte de crónica familiar, possa a minha prima Bia, afilhada da minha mãe, gozar-se por muitos anos daquela joia, que a madrinha fez questão em lhe destinar, no momento de partilha dos seus pertences pessoais.

            Não foi a minha mãe a única vítima da festa. Durante a noite, os amigos do alheio tinham levado a caixa registadora do João Melro, merceeiro da Portela, que instalara barraca de comes-e-bebes, no arraial. Tratava-se de uma pequena caixa vermelha de manivela, depressa localizada no meio das tojeiras do pinhal. Vazia!

Acabaram-se os fundos. E por hoje o narrador despede-se, sem cheta.

 Já está habituado, não faz mal.

(C