CONTAS DO RECADO
1. CAFÉ
Ao contrário do Prévert
Atrás de cada mulher, está sempre uma xícara de café, garante, nas suas . mensagens visuais, a minha amiga Zé.
Acorda e manda regularmente, aos amigos um sugestivo boneco. Figurinha feminina, ensonada, seduzida por uma esfumante chávena. Inconfundíveis aromas... Pássaros, borboletas, flores elevam-se da milagrosa bebida. E quem aprecia repete com um escritor russo: "negro, escaldante, amargo"...
Ao contrário do 'Café du matin' do Prévert, lembrei um dia à minha amiga....Sem silêncios nem lágrimas.
1. A cafeteira
Pois deixa-me que te diga como minha mãe tinha sempre à mão, não mísera xícara ou caneca, mas um velho canecão! Que já lhe vinha de solteira . Reabastecido pela gigantesca cafeteira de esmalte.
Acho que ela espulgava os restos do sono, iluminando a cozinha com a fogueira que havia de mascarrar o esmalte da cafeteira. Por mais que fosse areada ...
Um senhor canecão!
Seria de mistura benigna: grão-de-bico, chicória, cevada e um quase nada de café, mas aquilo nunca falhava em cada madrugada. Trazia sustância ao dia, quanto mais não fosse pelo açucar.
O fogareiro
Já a mãe dela, sentada com um fogareiro entre as pernas, nas mortiças brasas requentava o seu "puc'ro" do café. Não carecia de açúcar, mas de calor. Mesmo no verão.
E a minha avó Gertrudes já não tinha mais nada a fazer. Senão reclamar à filha que mais café lhe trouxesse. E lhe avivasse as brasas...
Sem o seu puc'ro, dizia-se órfã. Aqui começaria outra história... Cala a boca, por ora.
Morreu aos 92. Sozinha. Encontraram-na a sorrir. Fogareiro frio, púcaro seco.
Uma coisa?!....
Ah! Que já me passava esta.
Augusta Bichaneira .Quem era? Mãe do nosso vizinho Filipe Henriques. Com banqueta de bate-sola, tombas-e-viras... duas ou três casas abaixo da nossa. Sapateiro e sábio, não fiquem dúvidas. Merece uma crónica, daquelas que nunca me vieram a eito.
Desde que vivia sozinha, por morte da irmã, a ti' Augusta fraquejava a olhos vistos. Recurvada, passada trôpega, arrastava-se pela azinhaga, até casa do filho.
Manhã. Estava eu a sair do quarto, ouvi a minha mãe:
-Ti' Augusta!... Está a ouvir-me, criatura?...
Que lhes valesse Deus!
E a aflição de minha mãe intimou-me: fosse chamar o Sr. Filipe. Depressa!
- Corre!
Porquê? Fosse logo! Dera uma ... à ti' Augusta. Uma quê, mãe?
-vai! Corre!
Cheguei sem fôlego à oficina.
- Mestre Filipe....Deu uma... à ti' Augusta !
Não pediu mais explicações. Partiu à minha frente.
No regresso ao pátio da minha casa, encontrei o sapateiro abraçado a minha mãe. Soluçava.
A velhota estava enrodilhada aos pés deles.
Depois minha mãe contou.
A ti' Augusta entrara sem razão, sentara-se num poial, à porta da cozinha e pedira um golinho de café.
"Que se passa?" , estranhou minha mãe.
Quando lhe estendia a caneca, a ti' Augusta gemeu a sorrir:
- Fiquem por cá todos muito bem, filha.
Ainda aceitou o café na mão...Mas deixou cair a caneca.
Dera-lhe uma coisa!
- Que coisa, mãe?
Março, 2022
Tão bom!
ResponderEliminarÉ sempre ler os teus textos tão espontâneos, mas sempre recheados de memórias.
Vou seguindo...
Obrigada