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quarta-feira, 9 de março de 2022

        CONTAS DO RECADO                                      

1. CAFÉ                 

Ao contrário do Prévert

Atrás de cada mulher, está sempre uma xícara de café,  garante,  nas suas . mensagens visuais, a minha amiga Zé.

Acorda e manda  regularmente, aos amigos um sugestivo boneco. Figurinha feminina, ensonada,  seduzida por uma esfumante chávena. Inconfundíveis aromas... Pássaros,  borboletas, flores elevam-se da milagrosa bebida. E quem aprecia repete com um escritor russo: "negro, escaldante, amargo"...

Ao contrário do 'Café du matin' do Prévert, lembrei um dia à minha amiga....Sem silêncios nem lágrimas. 


         1. A cafeteira


Pois deixa-me que te diga como minha mãe tinha sempre à mão, não  mísera xícara ou caneca, mas um velho canecão! Que já lhe vinha de solteira . Reabastecido  pela gigantesca cafeteira de esmalte. 

Acho que ela espulgava os restos do sono, iluminando a cozinha com a fogueira  que havia de mascarrar o esmalte da cafeteira.  Por mais que fosse areada ...

Um senhor canecão! 

Seria de mistura benigna: grão-de-bico, chicória, cevada e um quase nada de café, mas aquilo nunca falhava em cada madrugada. Trazia sustância ao dia, quanto mais  não fosse pelo açucar.

  

      O fogareiro

Já  a mãe dela, sentada com um fogareiro entre as pernas, nas mortiças brasas requentava o  seu "puc'ro" do café. Não carecia de açúcar, mas de calor. Mesmo no verão.

E a minha avó Gertrudes já não tinha mais nada a fazer. Senão reclamar à filha que mais café lhe trouxesse. E lhe avivasse as brasas...

Sem o seu puc'ro, dizia-se órfã. Aqui começaria outra história... Cala a boca, por ora. 

Morreu aos 92. Sozinha. Encontraram-na a sorrir. Fogareiro frio, púcaro seco.

         Uma coisa?!....

Ah! Que já me passava esta.

Augusta Bichaneira .Quem era? Mãe do nosso vizinho Filipe Henriques. Com banqueta de bate-sola, tombas-e-viras... duas ou três casas abaixo da nossa. Sapateiro e sábio, não fiquem dúvidas. Merece uma crónica, daquelas que nunca me vieram a eito.

Desde que vivia sozinha, por morte da irmã,  a ti' Augusta fraquejava a olhos vistos. Recurvada, passada trôpega, arrastava-se pela azinhaga, até casa do filho.

Manhã. Estava eu a sair do quarto, ouvi a minha mãe:

-Ti' Augusta!... Está a ouvir-me, criatura?...

Que lhes valesse Deus!

E a aflição de minha mãe intimou-me: fosse chamar o Sr. Filipe. Depressa!

- Corre!

Porquê? Fosse logo!  Dera uma ... à ti' Augusta. Uma quê, mãe?

-vai! Corre!

Cheguei sem fôlego à oficina.

- Mestre Filipe....Deu uma... à ti' Augusta !

Não  pediu mais explicações. Partiu à minha frente.

No regresso ao pátio da minha casa, encontrei o sapateiro abraçado a minha mãe. Soluçava.

A velhota estava enrodilhada aos pés deles. 

Depois minha mãe contou.

A ti' Augusta entrara sem razão, sentara-se num poial, à porta da cozinha e pedira um golinho de café.

"Que se passa?"  , estranhou minha mãe.

Quando  lhe estendia a caneca,  a ti' Augusta gemeu a sorrir:

- Fiquem por cá todos muito bem, filha.

Ainda aceitou o café na mão...Mas deixou cair a caneca.

Dera-lhe uma coisa!

- Que coisa, mãe?

                  Março, 2022








1 comentário:

  1. Tão bom!
    É sempre ler os teus textos tão espontâneos, mas sempre recheados de memórias.
    Vou seguindo...
    Obrigada

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